A meio da manhã do dia 11 de fevereiro, uma carrinha pick-up com dois trabalhadores caiu dentro de um fosso de cerca de 40 metros na mina de Feitais, em Aljustrel. Joaquim Guerreiro, 46 anos, três filhos, um dos quais menor, morreu no local do acidente. João Corte Negra, 26 anos, ficou gravemente ferido e encontra-se ainda em recuperação. O buraco, uma frente de desmonte de minério, não estaria sinalizado nem vedado, segundo o testemunho de mineiros ouvidos pela VISÃO. Enganados pela escuridão, o condutor e o ocupante da viatura terão caído no vazio sem que se tivessem apercebido do perigo. Eram ambos funcionários da área de manutenção mecânica da EPDM – Empresa de Perfuração e Desenvolvimento Mineiro, uma empresa controlada pelos acionistas da Almina, a concessionária da mina.
Cerca de um mês depois, na tarde do dia 7 de março, um novo acidente de trabalho causou a morte de Nuno Pinto, 35 anos, funcionário da Biniter, uma empresa de aluguer de máquinas de terraplanagens subcontratada pela Almina. Nuno encontrava-se à superfície, a manobrar um trator com tanque de água, quando uma peça de roupa que vestia terá ficado presa no veio de tomada de força da máquina. Há indícios de que essa parte do equipamento não estaria protegida por um simples tubo, desrespeitando as normas de segurança. Embora a máquina fosse de um subempreiteiro, o dono da obra é responsável pela certificação da maquinaria existente no complexo mineiro.
Os meios de socorro foram de novo acionados a 17 de junho, quando um acidente à superfície, durante o manuseamento de um tubo de ar comprimido, provocou ferimentos num trabalhador, embora sem gravidade. No final do mês, foram noticiados dois incêndios na lavaria industrial, o mesmo local onde, na última segunda-feira, 8, um trabalhador da Efacec, contratado para fazer a manutenção dos equipamentos, sofreu ferimentos graves por eletrocussão naquele que foi o quarto acidente de trabalho registado na Almina desde o início de 2019. No rescaldo dos acontecimentos, a direção do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Mineira denunciou, uma vez mais, a existência de falhas graves na Almina. “Não há uma verdadeira cultura de segurança. Há muitos acidentes que são ocultados. O medo persiste, os trabalhadores têm receio de perder o emprego e na maior parte das vezes não falam”, diz o coordenador Luís Cavaco, prometendo continuar a divulgar as irregularidades para que a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), a Direção- Geral de Energia e Geologia (DGEG) e os ministérios do Ambiente, da Economia e do Trabalho “atuem mais ativamente” no que respeita à segurança.
Os inquéritos abertos pela unidade de Beja da ACT, com a participação da DGEG, ainda se encontram em segredo de justiça e assim vão continuar, pelo menos até à existência de uma decisão judicial. Poderá demorar meses até que os processos sejam concluídos, a avaliar pelo desfecho de dois outros acidentes mortais ocorridos em 2010 e 2015. Em ambos os casos, os familiares das vítimas foram indemnizados mas o Ministério Público arquivou os processos-crime contra a Almina, por falta de indícios, embora os autos da ACT, que a VISÃO consultou, atribuíssem responsabilidades à empresa.
Estatística fatal
Desde a reabertura que as minas de Aljustrel suscitam preocupações muito graves em termos de segurança, conhecidas tanto da ACT como da DGEG, a entidade licenciadora e fiscalizadora da atividade mineira em Portugal. Estatisticamente, o número de mortes está acima dos valores registados nos outros dois grandes complexos mineiros em atividade. Na última década, ocorreram três acidentes com vítimas mortais na mina da Panasqueira, no Fundão (em 2010, 2011 e 2012), e um na mina de Neves Corvo, em Castro Verde (em 2015). Em Aljustrel, registaram-se quatro trabalhadores mortos desde a reabertura: um em 2010, outro em 2015 e dois em 2019. Dos acidentes ocorridos em fevereiro e na passada segunda-feira, resultaram também dois feridos graves. Antes, em outubro de 2017, uma colisão entre um dumper (camião basculante) e uma carrinha pick-up, a 200 metros de profundidade, deixou o condutor de 48 anos com ferimentos graves. As declarações feitas pelo sindicalista Luís Cavaco, no dia deste acidente, valeram-lhe um processo-crime movido pela Almina. O julgamento está marcado para outubro.
Ao receber a VISÃO na delegação do sindicato, Luís Cavaco mostra as fotos de uma greve que afetou as minas durante três dias, em 2017. Falta de formação “adequada e obrigatória por lei”, equipamentos “velhos e obsoletos”, “poeiras em suspensão”, “frentes de trabalho com teores de humidade de 80%” e “temperaturas de 35oC a 40oC”, sem “extração e renovação do ar”, são as dificuldades que os trabalhadores da Almina enfrentam quase diariamente (ver caixa sobre irregularidades). Na comunidade mineira, há relatos sobre desabamentos constantes no interior das minas, que ainda no final de junho deixaram soterrada uma máquina com cerca de 10 metros (pá carregadora). “Quem reclama é posto de parte”, sustenta o sindicalista, acrescentando que são poucos os que participaram na greve de há dois anos que ainda não perderam o posto de trabalho. “Aqueles que tinham contrato a prazo foram dispensados e aqueles que estavam no quadro têm sido convidados a sair. Não há qualquer hipótese de diálogo com a administração das minas”, esclarece Luís Cavaco.
Pedro Madeira, comandante dos Bombeiros Voluntários de Aljustrel, foi mineiro durante 12 anos na Almina. Saiu numa das últimas vagas de rescisões amigáveis, já depois da greve de 2017. A partir do seu posto de comando, assegura o transporte em ambulância dos acidentados que necessitam de tratamento hospitalar. “Em média, somos chamados às minas umas duas vezes por mês”, diz à VISÃO. Apesar da urgência em socorrer os feridos, nem sempre o acesso ao complexo tem sido facilitado pela administração, liderada por Humberto da Costa Leite. “Houve alturas em que quiseram barrar-nos a entrada, a nós e à GNR”, sublinha.
Em matéria de segurança, o bombeiro diz que as minas “deixam muito a desejar. Há muito desmazelo. Os responsáveis [da direção técnica] pressionam os trabalhadores e estes arriscam. Há uma cultura que leva a que isso aconteça”, acrescenta. Atuais e antigos mineiros da Almina, que não quiseram ser identificados, relataram à VISÃO diversas situações de más condições de trabalho. “O risco é ignorado. Os seguranças avisam, mas não param os trabalhos. Onde é que já se viu frentes [de desmonte do minério] de 80 metros com falta de sustimento? Quando acontece algo, a culpa é sempre do trabalhador”, indignou-se um dos entrevistados.
Dumper “difícil de manobrar”
Na memória dos trabalhadores da Almina, estão ainda as circunstâncias em que ocorreram os acidentes que, em 2010 e em 2015, causaram as mortes, respetivamente, de Carlos Vaz e de Joaquim Saramago Gomes. A VISÃO consultou os dois processos judiciais, arquivados no Tribunal do Trabalho de Beja, para apurar os pormenores do que se passou.
Carlos Alberto Peixeiro Vaz, 31 anos, mineiro e filho de mineiro, trabalhava na Almina há três anos. Tinha entrado para o quadro de efetivos há um mês, com o vencimento-base de €750 acrescido de subsídios. No dia 1 de setembro de 2010, desceu à mina do Moinho no turno das 9h. Duas horas depois, conduzia um dumper (camião basculante) de 28 toneladas, a 200 metros de profundidade, para efetuar uma operação de carregamento de lamas secas. Ao fazer marcha-atrás, perdeu o controlo da viatura, deslizou pela rampa e embateu nas paredes da galeria da mina durante uma extensão de cerca de 200 metros. O óbito foi declarado perto das 13h, e a autópsia apontou, como causa de morte, lesões resultantes de “traumatismo crânio-meníngeo encefálico”.
O relatório de peritagem técnica da Atlas Copco Portugal, fabricante do dumper com 22 anos de existência, concluiu que o estado do equipamento era “razoável”, encontrando-se “em condições adequadas para ser manobrado”. Apontou o “desgaste acentuado nas pastilhas de travão de parque, a necessitarem de ser substituídas”, embora ressalvando que o sistema de travagem estava “operacional”. Detetou também o “pedal de acelerador partido, muito possivelmente devido à presença de uma manilha no chão, que travou o seu curso normal”. Nenhuma explicação foi dada para o aparecimento do objeto na cabina do dumper acidentado.
No relatório da ACT, assinado pela inspetora Vanda Reis e pela técnica da DGEG, Patrícia Falé e Costa, foi mencionada uma “falha técnica relatada na folha do turno anterior”, relacionada com os travões, que não foi valorizada nem reportada ao turno de Carlos Vaz. Mineiros ouvidos pelas duas responsáveis afirmaram que o dumper era “pouco usado”, “difícil de manobrar”, e atribuíram o acidente a uma eventual “paragem do motor” que teria desativado o sistema de travagem e “impedido o controlo do veículo”. Mas as técnicas concluíram que “a existência de uma manilha”, estranha ao equipamento, “alojada sob o pedal do acelerador” e “a travar o seu curso normal”, terá sido “determinante para a ocorrência do acidente”. Informações não confirmadas sobre alegados problemas de saúde de Carlos Vaz, assim como os resultados dos exames toxicológicos ao cadáver da vítima, são também referidos no processo judicial, embora de forma inconclusiva.
Das medidas recomendadas pela ACT à Almina, constam a “verificação mais eficaz” dos equipamentos, no início e no fim de cada turno, e também uma formação adequada, já que a que foi dada ao mineiro falecido, “por colegas e não por entidades certificadas”, e à superfície, foi considerada “insuficiente”.
O acidente de trabalho foi investigado pelo Ministério Público de Beja, mas a queixa foi arquivada por “insuficiência de indícios” criminais e falta de “meios de prova efetivos” para responsabilizar o empregador.
Um alarme que não tocou
Joaquim Alberto Saramago Gomes, 49 anos, serralheiro mecânico, desceu à britagem da mina de Feitais pouco depois das 8h do dia 19 de maio de 2015, ao serviço do subempreiteiro Manuel Banza. Como das vezes anteriores, esperava-o a reparação de uma tela de transporte de minério e a substituição de um raspador. Assim que saltou para cima da tela, um dos colegas avisou-o para sair imediatamente. Repetiu o aviso, mas Joaquim respondeu que não corria perigo porque a tela estava parada. Mas, sem que o sinal sonoro de arranque do equipamento tivesse funcionado, a tela movimentou-se e Joaquim foi “arrastado”, caindo de uma altura de seis metros para o interior de um silo de depósito do minério. Foi socorrido com vida, mas não resistiu aos ferimentos. A morte ocorreu por “graves lesões traumáticas”.
Chamada para apurar as causas do acidente, em colaboração da DGEG, a ACT concluiu que “não foi acautelada” a paragem do equipamento, nem o arranque impedido “por sistema adequado”. Apontou culpas ao “sistema de bloqueio desadequado” e ao “sistema de alarme defeituoso”, assim como à “falta de supervisão”, de “planificação” e de “coordenação dos trabalhos” e de “comunicação adequada entre os grupos de trabalho”. A “tomada de decisões incorretas” e a “formação insuficiente” dos trabalhadores foram também salientadas.
Acusando a Almina de “negligência”, a ACT aplicou-lhe uma contraordenação “muito grave”, sancionada com uma coima de €25 mil, e uma “contraordenação grave”, sancionada com outra coima de €2 500, mas a empresa mineira impugnou as decisões junto do tribunal. A 12 de julho de 2016, o juiz Rui Matos Alexandre deu os factos como não provados e absolveu a empresa do pagamento das multas. Considerando que o acidente não poderia ter sido evitado pela Almina, concluiu que “em nenhuma circunstância e em nenhuma unidade empresarial se consegue controlar um movimento ou ato pessoal praticado à revelia das regras”.
Também dessa vez foi aberta investigação pelo Ministério Público de Ourique, que viria a ser arquivada por insuficiência de indícios.
O silêncio das autoridades
Na sequência desta investigação, a VISÃO dirigiu um pedido de entrevista ao presidente da Almina, Humberto da Costa Leite, mas uma funcionária da empresa respondeu que “neste momento não existe disponibilidade”. Por email, esclareceu que, em relação aos acidentes ocorridos, “foi aberto inquérito interno” e foram “notificadas as entidades competentes, das quais aguardamos conclusões dos processos de averiguações”.
A ACT, a entidade à qual compete averiguar as causas dos acidentes de trabalho e enviar as conclusões ao Ministério Público, invoca o “segredo de justiça” para não fornecer informação. Sobre os acidentes mortais de 2010 e 2015, uma porta-voz da ACT disse que os inquéritos permitiram identificar “como causas, entre outras, as associadas ao funcionamento e à utilização dos equipamentos envolvidos nos acidentes, conjugadas com as características físicas dos locais de trabalho”. O pedido da VISÃO para obter mais detalhes junto do diretor da unidade de Beja da ACT, Carlos Graça, ficou sem resposta.
Da parte da DGEG, as explicações também são pouco claras. Depois do acidente mortal de 2010, um assessor do Ministério do Ambiente, que tutela a entidade, afirmou que a Almina procedeu “a diversas ações de sensibilização e de formação quanto à existência de objetos soltos nas cabines dos equipamentos, sendo que nas várias ações de fiscalização a DGEG tem verificado a eficácia das ações tomadas”. Em relação ao acidente de 2015, informou que a Almina procedeu “à alteração do procedimento de consignação [sistema de segurança que impede o acionamento acidental dos equipamentos] no plano de segurança e saúde, sendo que nas várias ações de fiscalização a DGEG tem vindo a verificar a eficácia dessa atualização do procedimento e a validar sempre que se verifica a adequação do mesmo”. Os acidentes mais recentes não foram objeto de comentário por se encontrarem ainda em investigação. Até serem conhecidas as conclusões, a palavra de ordem é silêncio.