Estamos no gabinete da diretora do serviço social do Hospital Fernando da Fonseca, uma das maiores instituições hospitalares do País e popularmente conhecido como Amadora-Sintra em referência às populações que serve, e a nossa entrevista de uma hora demora o dobro do tempo a ser gravada, tal é o número de interrupções a requisitar a sua presença – seja à porta ou ao telefone.
Adélia Gomes, 53 anos, mantem sempre a voz baixa e calma, pedindo desculpas quando precisa parar para dar atenção a outro assunto, sempre que é preciso. “A nossa missão é garantir que a continuidade dos cuidados é assegurada aos nossos utentes”, nota, a lembrar que as mais de 20 assistentes sociais que tem no serviço cobrem áreas tão diversas como a obstétrica e a pediátrica, do internamento de adultos ao ambulatório, da psiquiatria à urgência geral.
Só em 2018, passaram pelo serviço social cerca de 7 700 utentes ( de um total de mais de 200 mil que aquele hospital atendeu no ano passado) e a maior parte – 54% – são idosos. Falamos de pessoas isoladas ou que vivem com o cônjuge idoso, e este não consegue garantir os cuidados que o doente precisa no pós-alta. “E isto é um problema porque exige que as famílias se reorganizem para esse cuidado. Nem todas sabem como o fazer, conseguem, ou querem…”.
Não se trata de lhes ir dar apoio a casa. Primeiro, é preciso avaliar com a equipa de saúde os cuidados que aquela pessoa vai precisar. Se for transitória, pode ter só uma resposta da equipa do centro de saúde. “Pode ser só apoio domiciliário, mas pode ser uma pessoa isolada e esse apoio a alguém acamado é insuficiente – e então vai para a rede de cuidados continuados na vertente de internamento…”, explica.
O número de especialistas para fazer este trabalho, aqui no Amadora-Sintra, até cresceu, nos últimos anos, mas hoje, dadas as solicitações, sentem-se muito poucos – até porque, das 21 pessoas adstritas a esse serviço, 5 estão na saúde mental, quatro na área de adultos, um outro na psiquiatria, e fora do hospital, nos agrupamentos de centros de saúde, além de dois em permanência na urgência (de segunda a sexta, das 8 às 21 horas e ao sábado do meio-dia às 19 horas). “Claro que, com isto tudo, é muito frequente sairmos para lá da hora.”
Além de procurarem respostas para garantir que quem tem alta continuará a ter o apoio de que precisa, muitas vezes só informar é uma enorme ajuda – e isso é também um papel do serviço social, porque há recursos que as pessoas não conhecem.
A prioridade é sempre dada aos menores – “sobretudo aqueles que chegam aqui com suspeitas de maus-tratos, abuso sexual, agressão… Intervém o assistente social, mas nunca o faz sozinho: a observação do médico é fundamental, o trabalho tem de ser em rede e cooperação, para se acionarem os meios de verificação destes casos. “Não vou dizer que é todos os dias, mas…”, assinala.
Frequente também é a entrada de idosos que já são conhecidos há anos dos técnicos do hospital – e esses casos também não são nada fáceis de resolver. Pessoas que vivem sozinhas em condições frágeis, que vão indo para casa por períodos, mas acabam por retornar…” E estes são mesmo todos os dias.”
De momento, há entre 20 e 25 utentes com alta protelada – além dos que estão em camas externas, a aguardar resposta da segurança social para terem vaga e apoio financeiro em regime de lar. “Há ainda 28 em camas que o hospital teve de contratualizar fora porque aqui não tinha espaço. Quando vagam esses lugares, há sempre mais candidatos …”
As razões para tudo isto são mais que muitas. Há filhos que não têm meios para cuidar, outras vezes tomam a postura de que o Estado é que tem a obrigação, apesar de Adélia lhes explicar que “o Estado somos nós” e que os recursos são finitos
Outros dizem mesmo que não vão levar esses seus familiares, “Ah, vocês são assistentes sociais, agora resolvam’, desabafa Adélia, revelando um pouco do teor do último telefonema que nos interrompeu a conversa. “Ainda agora uma colega ligava a pedir ajuda: ‘Podes vir? É que só estou a ter recusas’. E quando há recusas atrás de recusas tudo isto se torna muito difícil de gerir.”
Adélia sabe que também há muitas famílias que se esforçam, mas acabam por ficar em situação de exaustão – e isso é um outro problema, a tornar-se cada vez mais grave.
“A pouco e pouco há cada vez mais casos… Nós somos mediadores, estamos aqui para facilitar, mas nem sempre conseguimos ir ao encontro das necessidades das famílias.”
Há ainda o caso das pessoas sem abrigo, que são encaminhados para centros de acolhimentos. “Mas neste momento estamos a ter uma maior afluência e menos resposta. Passam-se semanas à espera, para não dizer mais”.
O que explica este aumento? A teoria que por ali corre tem a ver com o desalojamento e a procura de casa fora da cidade de gente que acaba a ficar na rua. O grande problema é a resposta do acolhimento imediato. Depois, muitos têm consumos aditivos de álcool e outras substâncias, e isso faz com que não sejam aceites. Sem qualquer rede famiiar, muitos também acabam por ficar a viver no hospital. Veja-se, por ali, o paciente internado com alta mais antiga data de 2015 – embora esse seja também um caso particular porque está em lista para lar, mas a equipa de Adélia não o consegue encaminhar porque o familiar mais próximo não atende…
”Há os que então deixam de atender o telefone, de responder aos emails, ou então que mudam de número…” Situações que seguem depois obrigatoriamente para o Ministério Público, embora mesmo assim demorem sempre imenso tempo – anos – a resolver.
“Há quem responda que “se tivesse acesso aos bens, então era mais fácil”, denuncia ainda aquela assistente social, aludindo aos casos de quem quer ficar com a reforma e outros dinheiros do familiar doente.
E há ainda os indocumentados – que precisam de quem lhes trate dos papéis, porque só assim conseguem apoios, desde segurança social às finanças, além do contacto para as embaixadas. Tudo para receberam a autorização de residência, para poderem ter cartão de utente, para depois candidatarem-se ao dito apoio.
“Além disso, vai-se a ver e vêm aqui parar porque alguém lhes falou de um familiar da Amadora ou do Cacém, que nem por isso existe. Ou então essa morada que lhes deram é de um estaleiro de obra….”
Adélia relata tudo isto em modo contínuo entre a dor de alma e a indignação, mas sem sair do tom. Tem cada vez mais pedidos, o trabalho é muito, e o seu papel é também dar apoio psicossocial: “as pessoas também precisam de alguém que os possa ouvir. E cá estamos nós”.
Às vezes, saem de lá com laços reforçados. Às vezes, vão ali só desabafar, descontentes com as saídas que lhes foram apontadas pelo gabinete do utente. Às vezes, nota ainda Adélia, ela nem disse nada a mais do que a outra colega, mas bastou-lhe falar das várias opções para resolver o problema que lhe apresentam – e tudo fica mais calmo.
Na equipa do Hospital Amadora Sintra desde o início, quando as portas ainda nem tinham aberto, Adélia somou aquela experiência a outras pelo concelho, pelos bairros a céu aberto, com os pés na lama – no âmbito dos primeiros projetos de luta contra a pobreza – além de uma passagem no Centro das Taipas, que dava apoio a toxicodependentes. “É muito bom ter vivências diversificadas e gosto muito do que faço.”
Por tudo isto, claro que leva problemas para casa, porque é imensa dificuldade em se desvincular, mas também leva alegrias. Foi o que aconteceu há mais ou menos um ano, quando uma senhora foi lá à sua procura para lhe agradecer. Era familiar de um paciente que estava no estrangeiro e que contactou o serviço pelo telefone porque estava em cuidados para tratar da mãe. “Sentiu que tinha sido ouvida e que o que ouvira a encaminhara na direção certa – e prometeu que um dia viria cá para me agradecer pessoalmente. E no fundo estou cá para isto”, remata Adélia, a sorrir.
E assim se afastam as nuvens negras, dos dias em que é preciso redigir protocolos por causa de casos de maus tratos e afins em menores, ou é preciso não valorizar demasiado as ameaças que recebem, quando não vão de acordo ao que as famílias pretendem. “Estamos sujeitos a tudo, mas não há de ser nada.”