A campanha Pirilampo Mágico deste ano já está na fase final e isso pode significar uma outra vida para o Centro de Educação para o Cidadão com Deficiência (CECD) de Mira Sintra. “O nosso resultado deste ano será usado para construir uma nova unidade residencial”, conta Martha Xavier, 51 anos, a diretora da valência educativa daquela cooperativa de solidariedade social que dá apoio a mais de 2 mil pessoas, dos 25 aos 60 anos.
São quase cinco da tarde e ainda a casa está meia deserta quando chegam Leonel, um dos residentes mais novos, e Carlos, do grupo dos mais velhos. Todos a cumprimentam calorosamente. À sua volta, há um bicho a dar ao rabo, um grande e meigo cão preto a quem chamam Tommy, adotado há um par de anos a pedido do grupo. De facto, o ambiente ali não podia ser mais familiar, olhando em volta da sala, onde uns jogam às cartas, outros conversam, outros vêm televisão – ao lado da parte que acolhe um calendário com os aniversários de todos, funcionários incluídos.
“Sou assistente social porque gosto de justiça; sempre fui defensora dos outros, dos excluídos, das minorias”, apresenta-se Martha – que nasceu em Viseu, onde o pai administrava as termas do Inatel (ou Fnat, como era conhecida à época a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho). Haveria ainda de viver em Entre-os-Rios até aos sete anos e depois a família mudou-se para Sintra. Estudou num colégio católico e quando acabou o liceu ainda sondou os mistérios do Direito, mas depois descobriu o serviço social e não hesitou. “Sou assim uma espécie de advogada social, não é?”, interpela-nos, a insistir que não se podem ver aquelas pessoas diferentes como coitadinhos.
Martha, que teve uma prima surda, por culpa de uma meningite, sabe até linguagem gestual e chegou a fazer estágio na associação de surdos de Lisboa. Até chegar onde está hoje, passou pela Misericórdia de Sintra e pelo apoio a desempregados de longa duração, apoiando a criação de projetos de vida e criação do próprio emprego. Eram os tempos da guerra do Kosovo e foi assim que Martha se viu a acompanhar um grupo de refugiados, instalados na zona da Praia das Maçãs. Ao todo, eram 96 pessoas, embora três tenham acabado por fugir daquela ajuda desinteressada. “Ligaram-nos, depois, a dizer para onde tinham ido e que estava tudo bem.” No fim daquele interregno que foi aquela guerra, a maioria quis voltar ao país de origem – e a vida daquela assistente social haveria de dar outra volta.
Foi quando recebeu o telefonema do CECD a dizer que precisavam de alguém com valências que lhe assentavam na perfeição: infância, intervenção precoce e educação especial. E de repente passaram 21 anos, tempo em que, por várias vezes, acumulou funções, desde substituir colegas a representar a área da deficiência na Comissão de Proteção de Menores daquela área. Até que surgiu o convite para dirigir a valência educativa da instituição, um desafio acrescido desde que a nova lei ditou o fim das escolas de educação especial, integrando aquela população na escola regular.
Agora, nos centros de recursos para a inclusão, atendem-se 600 jovens, em seis escolas do concelho de Sintra, e no centro de atividades ocupacionais, o atendimento está aberto a partir dos 16 anos e sem limite de idade, apoiando o mais dependente, mas também quem consegue estar integrado numa atividade socialmente útil.
“Na lógica da inclusão, trabalhamos o mais para fora possível, embora também gostemos que a sociedade venha cá dentro.” Como quem diz que se considera mais um recurso da comunidade ao serviço de todos, sejam as terapêuticas da clínica ao bar, onde muita outra gente do bairro já vai beber o seu cafezinho.
A ideia-base é não manter aquelas pessoas fechadas no seu mundo, já que “os que têm capacidade são muito funcionais”, defende Martha – apesar de haver quem não goste disso, nem de barulho ou estranhos, e isso, claro, também se respeita.
Há, assim, quem esteja a prestar serviço de lavandaria, fazendo recolha e entrega da roupa, seja a particulares a empresas, com farmacêuticas ou cabeleireiros. E há ainda outro grupo a fazer manutenção de jardins no Instituto Gulbenkian de Ciência, no Taguspark ou no Palácio da Pena, tudo nas redondezas. E um coro inclusivo, em que estão inscritos também alguns dos funcionários e outros representantes da comunidade.
“Já fomos até ao Parlamento Europeu para eles contarem como se sentem e do que são capazes”, assinala Martha, sempre a lembrar que o seu papel ali é apoiar cada um a fazer o seu projeto de vida, mesmo que seja só aprender a pintar, andar de avião ou conhecer outro país. “Tentamos sempre ir ao seu encontro, embora às vezes seja preciso adaptar o sonho. Por exemplo, dizem-nos ‘ai, eu gostava era de ser veterinário. Nós até sabemos que não consegue, mas podemos ajudá-lo a ser auxiliar numa clínica de animais…”
Martha aproveita para meter a colher a falar das situações que mais a emocionaram – e exemplos não lhe faltam. Há aquele caso que entrou no centro ao mesmo tempo do que ela. Vinha de uma família desestruturada, tinha uma grande dependência de álcool, além de uma mãe pouco interventiva como do pai violento. O rapaz ainda tentou manter-se em casa, depois de arranjar um emprego, mas voltou a bater-lhes à porta e agora já não quer sair dali. Mantém uma série de amigos fora da instituição, grupo que o ajuda nesta caminhada, que até bebe, mas controlando-o. “Para nós, umas bejecas, para ti, um ginger ale”.
Houve também aquele caso de um miúdo criado por uma avó que era extremamente meiga, mas muito frágil e com uma casa sem condições de habitabilidade. Daí que ele fugisse muito – sobretudo para as bermas do IC19. “Quando fomos lá a casa, não faltavam ratazanas a passarem-nos debaixo dos pés…”, recorda Martha, para a seguir contar que, depois de alguma conversa, essa avó lá acabou por concordar que ele estaria melhor no centro. “Prometem que nunca o vão largar?”
Outra vez, receberam uma rapariga de etnia cigana, a cumprir pena à comunidade. Correu tudo bem até que um dia trouxe uma prima consigo. E depois um homem, dono de uma barba enorme, daquelas que mete respeito, que vinha fazer um pedido muito especial: tinha uma mãe com uma doença incapacitante e lembrou-se de ir ali perguntar se os podiam ajudar.
“Ainda nem sabia o que ele queria quando apareceu um dos rapazes aqui do centro e me pôs o braço por cima dos ombros, num gesto protetor. Até que lhe disse: “Está tudo bem, este senhor é nosso amigo.”
Há ainda outro residente que tem muitas saudades dos pais que já morreram – e que chora muito. “Para o sossegar, digo-lhe que está lá com o meu, à conversa e que agora olha são as nossas estrelas.” E depois lá o distrai, convidando-o a ir comer uma bola de Berlim ou a ver o mar… “Outras vezes, pomos a tocar a música do Roberto Carlos, porque ele diz que lhe lembra o pai.”
Martha, que costuma dizer que tem três filhos biológicos e 35 de coração – aqueles que estão agora a viver na residência do centro – põe as mãos no fogo a considerar que eles acabam por ser mais felizes do que as famílias, porque estas chegaram a ter aquele sonho de ter um filho saudável e muito poucas conseguem fazer esse luto e olhar para o filho que têm como pessoa inteira.
Segue-se o único momento em que deixa escapar as suas palavras mais duras, direitinhas para a gestão pouco cuidada das questões das pessoas com deficiência e das suas famílias. “As equipas médicas não querem alimentar falsas expectativas, mas acabam a contribuir para mais ansiedade. Dizem coisas como ‘ai se calhar o seu filho não vai falar, não vai andar…”, aproveitando para falar do caso da filha do conhecido jornalista Mário Augusto, que bem se lembrade lhe dizerem que ela não deveria conseguir nem andar nem falar – e agora até já lançou um livro. “Aqui dizemos que tem de ser um dia de cada vez.”
E esse apresente como o melhor caminho – sobretudo agora que se ergue um outro desafio à sua frente, que é o envelhecimento daquela população e o das suas famílias, que começam a ter medo de morrer e não saber o que lhes vai acontecer. “Acabam a depositar em nós essa confiança, até porque muitos destes nossos utentes sentem-se um peso para o resto da família. E aqui vivem entre amigos.”