Um roast ao povo português? Era o que faltava. Nem seria elegante eu vir para uma revista dizer mal do patrão. Foi o povo português que, em estreita colaboração com o Movimento das Forças Armadas, criou há 45 anos as condições para que hoje eu tivesse este emprego. Por isso, estou-lhe grato – além de ter um fraquinho por ele. É um povo com o qual é fácil simpatizar porque até os seus defeitos são encantadores. Sei disso porque os tenho a todos, e encanto é o que não me falta. Ainda na semana passada aconteceu de novo: eu estava noutro país da Europa, mais a norte, aproximei-me de uma passadeira de peões e havia dois grandes grupos de cidadãos estrangeiros, de cada lado da estrada, todos muito civilizados, esperando que o sinal ficasse verde. Na estrada, nem um carro. Passaram alguns segundos. E então, evidentemente, eu atravessei sozinho. Sentindo-me, aliás, mais português do que nunca. Primeiro, os estrangeiros sustiveram a respiração. O que fazia aquele bárbaro? Com que desfaçatez transgredia a regra, desrespeitava a autoridade da luz vermelha? Quereria ele fazer ruir toda a civilização? E porque é que ele era tão bonito? Estrangeiros sabem analisar situações muito bem. Mais alguns segundos passaram. Depois, primeiro hesitantes mas logo decididas, as pessoas civilizadas começaram a atravessar a estrada ignorando o sinal. Havia surpresa nelas mas, pareceu-me, também aquela forma de alegria que só a fruição da liberdade proporciona. E depois veio um carro e atropelou três. Mentira. Correu tudo bem.
Não foi a primeira vez que eu libertei estrangeiros do jugo da luz vermelha em estradas desertas, atenção. Quase sempre que atravesso estradas noutros países sou Simão Bolívar de peões oprimidos. E a felicidade com que eles atravessam a estrada é comovente, porque se trata do momento em que estrangeiros têm um pequeno vislumbre do que significa ser português, como cegos que vêem pela primeira vez as cores.
Não é uma característica exclusiva de portugueses, mas pode ser exclusiva de quem fala português. É uma atitude que a gente exportou através da língua, até porque uma maneira de falar é – estou cada vez mais convencido disso – uma maneira de viver. Uma vez, em São Paulo, eu conversava com um amigo brasileiro sobre a quantidade de carros com todos os vidros fumados. “Em Portugal isto é proibido”, disse eu. “É, aqui também”, disse ele. Sem nenhuma sombra de surpresa ou indignação, diga-se. Nunca ficou tão claro para mim que, de facto, portugueses e brasileiros são povos irmãos. Para nós, as regras são, digamos, uma referência. Claro que a gente quer cumpri-las – e cumpre, a maior parte das vezes. Mas desconfiamos delas, adaptamo-las, tornamo-las um pouco mais humanas. A rigidez não nos agrada.
Dizem que Júlio César, o imperador romano, terá escrito, a propósito das tribos que habitavam o território que hoje corresponde a Portugal: “Há, nos confins da Ibéria, um povo que nem se governa nem se deixa governar.” Foi muito perspicaz da parte dele, até porque na altura não havia ainda passadeiras de peões, que tornaram tudo mais claro. À circunstância admirável de a gente não se deixar governar, ele juntou o problema: eles também não se governam. Porque isto do temperamento rebelde à autoridade, realmente, não é só poesia. Mas, nos 45 anos do 25 de Abril, talvez se possa dizer do povo português o que Churchill disse da democracia: somos o pior de todos os povos do mundo, com excepção dos outros.
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