Quando não os podes vencer, abandona a guerra. Depois de décadas a lutar para convencer o resto do mundo que já há baleias suficientes para ser permitida a sua caça, o Japão desistiu e anunciou a sua saída da Convenção Internacional para a Regulação da Atividade Baleeira. Isto significa que, a partir de julho, o país vai voltar a capturar cetáceos com fins comerciais.
Na prática, porém, o Japão nunca cessou de o fazer. Todos os anos, em novembro, navios nipónicos rumavam às águas da Antártida para caçar centenas de baleias, com supostos (e muito contestados) fins científicos. Pequenas amostras dos animais eram entregues a investigadores, mas quase toda a carne acabava nos mercados e restaurantes japoneses. A captura com motivos científicos, para estudar, entre outras coisas, a recuperação das populações de baleias, estava prevista na moratória à caça, assinada em 1986 pelos membros da Convenção Baleeira Internacional (CBI, que hoje engloba 88 países, entre os quais Portugal). Porém, a maior parte da comunidade internacional encarava estas incursões à Antártida como uma traição ao espírito da moratória.
Esta decisão tem para os conservacionistas um travo agridoce. Por um lado, consideram que é perigoso um país com a dimensão do Japão voltar a caçar baleias com fins declaradamente comerciais. Por outro, isto significa que o oceano Austral pode finalmente ser um santuário para estes mamíferos, como há muito exigiam – o Governo de Tóquio vai limitar a caça à sua costa e zona económica exclusiva. Aliás, o comunicado do Sea Shepherd (organização conservacionista que tem passado os últimos 13 anos a abalroar baleeiros japoneses, tendo, segundo as suas próprias estimativas, salvado a vida a mais de 6 mil baleias) considera este anúncio uma vitória em toda a linha para as baleias. “O objetivo do Sea Shepherd de acabar com o massacre de baleias no Santuário de Baleias do Oceano Austral foi conseguido. Damos as boas-vindas a esta decisão do Japão, que encaramos como um desenvolvimento positivo.” A luta, contudo, não terminou: Paul Watson, fundador e presidente da instituição, considerado um ecoterrorista pelo Governo nipónico, já garantiu que vai combater a indústria baleeira até esta acabar de vez. “Só falta limpar os piratas.”
Os argumentos do Japão
Yusuke Takahashi, segundo secretário da Embaixada do Japão em Portugal, assegura à VISÃO que o país apenas pretende “promover a utilização sustentável de recursos aquáticos com base em evidências científicas”, algo que lhe estaria a ser boicotado. “Desde que a moratória da caça comercial foi introduzida, com o objetivo de realizar uma caça comercial sustentável, o Japão envolveu-se sinceramente nos diálogos da CBI, por mais de 30 anos, com base em dados científicos, participando ativamente nos esforços que procuravam soluções aceitáveis para todos”, diz. “No entanto, existem alguns Estados-membros que se concentram exclusivamente na proteção das baleias, não admitem a utilização sustentável e não tomaram quaisquer medidas concretas para alcançar uma posição comum.”
O diplomata nipónico acrescenta que as espécies de baleias a capturar nas suas águas serão definidas de acordo com as informações científicas disponíveis, de modo a não causar um impacto negativo. “O programa de pesquisa do Japão mostra que a abundância de certas espécies de baleias possibilita uma caça comercial sustentável”, afiança Yusuke Takahashi.
Gonçalo Carvalho, presidente da organização não governamental Sciaena, não se deixa convencer por estas razões. “É um retrocesso completo. Mesmo que algumas populações de baleias estejam a recuperar, continuam muito abaixo do que estavam historicamente.” E há mais motivos para banir a caça, acredita, e que não passam apenas pelo papel “muito importante” que ocupam no ecossistema. “A caça é cruel, ainda que não muito mais cruel do que outras pescas. Mas há diferenças consideráveis. Por exemplo, a baleia constitui família. Há um grau de consciência animal que não devemos esquecer.”
Ainda assim, o conservacionista considera o facto de o Japão abandonar a Antártida “positivo” (apesar de lembrar que as baleias são migratórias, pelo que a limitação da caça às águas nacionais não é grande garantia para a espécie). E há outra boa notícia, atesta: “Deixam a mentira da captura para fins científicos, quando toda a gente sabia que era por razões comerciais. É melhor isto do que essa farsa.”
Francisco Ferreira, presidente da associação Zero, concorda. “O Japão sempre tentou, e conseguiu, dar a volta às restrições. É o assumir de uma realidade que já estava a acontecer. A captura por alegadas razões de investigação era uma forma de contornar as limitações. Pelo menos, agora temos este compromisso de não irem caçar para águas mais frias.” Uma decisão que atribui mais a “pressões políticas a nível interno” e de afirmação internacional do que a verdadeiras “necessidades ou tradições alimentares”.
O ambientalista, contudo, teme que este passo em frente do Japão possa ser em direção ao abismo. “Há um lado simbólico muito forte. Ao capturarmos baleias, o maior animal do planeta, com um período de vida muito extenso, estamos a dar o sinal errado à proteção dos oceanos. Mas, mais do que isso, fragiliza a CBI e pode levar outros a sair. Do ponto de vista da conservação, está em causa o efeito político de bola de neve, mais do que o impacto direto da caça japonesa.” Ou seja, que a Rússia e países do Sudeste Asiático sigam o exemplo do Japão. “Aí sim, será dramático.”
Uma questão de cultura?
Poder-se-ia pensar que a baleia é um prato muito apreciado e consumido no Japão, tal é o custo político desta luta – a decisão de reavivar a caça comercial foi censurada quase universalmente. Não é o caso. De acordo com uma sondagem de 2006 (pedida pela Greenpeace, mas levada a cabo por um instituto independente nipónico), 95% dos japoneses muito raramente ou nunca comem carne de baleia. Mais: segundo dados do Governo de Tóquio, consome-se no país entre 3 mil e 5 mil toneladas de carne e gordura de baleia por ano, o que dá uns insignificantes 23 a 39 gramas por habitante. Tendencialmente, é uma iguaria apreciada pelos mais velhos, que cresceram a comer baleia, durante os anos de provação que se seguiram à Segunda Guerra Mundial (era então uma carne barata). O facto de os cetáceos serem, muitas vezes, um repositório de metais pesados, altamente nocivos para a saúde humana, também não ajuda a melhorar a sua popularidade entre os mais novos. Apesar de residual, Yusuke Takahashi, representante da Embaixada do Japão em Lisboa, garante que o consumo de carne de baleia é “uma cultura gastronómica fomentada historicamente no Japão e, portanto, continua a ser valorizada”.