Se o peso da camisola do Benfica pode ser um bicho de sete cabeças para alguns jogadores, João Félix, o mais novo, não é um deles. Talento à parte, a primeira impressão sobre a nova pérola encarnada revela um espírito livre de tal fardo, destemido e irreverente, como se atuar nos grandes palcos da bola fosse hábito de criança. Não é por ter marcado o seu primeiro golo no futebol profissional, no jogo de estreia no Estádio da Luz, ao fim de 15 minutos, no empate frente ao Sporting, que a ideia se constrói. O desvio para a baliza do rival de Lisboa até surgiu de cabeça, mas é junto à relva, com os pés, que sobressai a personalidade decidida do jovem criativo, com 19 anos feitos em novembro. Uma maturidade precoce que transparece também nas palavras.
“Jogar futebol não causa pressão nenhuma. Fazemos aquilo de que gostamos e, quando é assim, não há pressão”, afirma à VISÃO, senhor da sua convicção. Nem o estádio repleto de adeptos condiciona João Félix para lá do “nervosismo inicial”, que diz ser comum à maioria dos intervenientes. “Tenho facilidade em concentrar-me. Quando entro em campo, foco-me no jogo e até esqueço a bancada”, garante, assumindo que já esperava encarar a nova realidade sem constrangimentos de ordem psicológica: “Sempre fui assim, muito tranquilo e consciente do que sou e do que consigo fazer. Nunca fui de acusar a pressão.”
No início de novembro, o Benfica blindou João Félix com uma cláusula de rescisão de 120 milhões de euros, a mais alta do futebol português. A extensão do contrato, até 2023, aconteceu menos de um ano depois da anterior, que já previa o pagamento de 60 milhões de euros se algum clube quisesse contratar o jogador sem precisar de negociar com o emblema da Luz. A urgência da atualização, para um valor acima do qual, até hoje, apenas Neymar, Mbappé e Coutinho foram transferidos, reflete o impacto das primeiras aparições de João Félix na equipa principal. É um sinal de que o Benfica o valoriza, como o próprio reconhece, mas não mais do que isso.
“É um valor um bocado alto, que traz mais responsabilidade, mas é só um número. Se eu não fizer nada bem lá dentro, isso da cláusula é tanga”, atira, perentório. “Primeiro tenho de fazer alguma coisa dentro de campo, para depois a cláusula ter algum sentido.”
Para já, é um saudável mote para as conversas de balneário. Na verdade, não são bem conversas, uma vez que João Félix só consegue rir-se quando os companheiros de equipa puxam pelo assunto. “O menino 120 milhões”, chamam-lhe, em tom de brincadeira.
Jonas, o cúmplice
Dois meses foi o tempo que o jovem talento, no Benfica desde os 15 anos, demorou a integrar-se entre os graúdos. Tímido nos primeiros contactos, assume-se como uma pessoa “muito divertida” assim que o gelo inicial se quebra. No final da pré-época, diz, já estava ambientado ao grupo. “Metiam-se comigo como se metiam com todos. Eles não têm um alvo. Qualquer um é motivo de brincadeira, a qualquer hora. Não insistem sempre no mesmo, vão brincando com todos, e isso torna o ambiente no balneário tranquilo”, descreve. “Ao início foi um pouco estranho. Eram jogadores que eu estava habituado a ver na televisão. Eram ídolos e agora são amigos, e eu sou um deles.”
No jogo com o Moreirense, João Félix ofereceu o golo a Jonas, que regressava de uma paragem prolongada por lesão. Durante os festejos, o brasileiro de 34 anos, o mais velho do plantel, apontou para o mais jovem e, mais do que assinalar o “acontecimento”, ficou a ideia de existir entre eles uma certa empatia. “Tenho uma ligação especial com ele”, confirma Félix, antes de explicar que, quando ainda não fazia parte da equipa sénior e era chamado pontualmente a participar nos treinos, Jonas já lhe fazia “montes de perguntas”. Desde então, criaram uma “relação próxima”. “Foi dos primeiros a integrar-me e está sempre em contacto comigo”, adianta o “caçula” do balneário.
Nuno Gomes, que o conhece dos tempos em que liderou o centro de estágio do Benfica no Seixal, gaba-lhe “a técnica acima da média” e a “vantagem de pensar mais rápido do que muitos outros jogadores”. Numa entrevista recente ao jornal italiano Tuttosport, elogiou-lhe a personalidade e comparou-o a Zidane “no toque de bola”. João Félix admite que prefere atuar na zona central, à imagem do que acontecia com Rui Costa e Pablo Aimar, duas referências que cita, embora se diga preparado para “dar o melhor” em qualquer posição que o treinador lhe destinar.
Desaproveitado no FC Porto
João Félix chegou em 2015 ao Benfica, depois de sete anos ligado ao FC Porto. Desde os oito que os pais o levavam, três ou quatro vezes por semana, a partir de Viseu, onde nasceu, para treinar na Invicta. Aos 15 anos, após uma época em que atuou por empréstimo no Padroense, quis mudar de ares, insatisfeito com o rumo dos acontecimentos. Para estar mais próximo do local de treinos, tinha ido viver para a Casa do Dragão aos 12 anos e não via o sacrifício de estar longe da família ser recompensado no plano desportivo. “Não fui dispensado, foi uma decisão minha”, esclarece.
O corpo franzino terá atrasado a afirmação nas camadas jovens portistas, mas o Benfica não perdeu tempo a seduzi-lo para o Seixal. Os pais, ambos professores, mantêm a rotina de o visitarem ao fim de semana. “E agora mais do que nunca, porque o meu irmão está a morar no centro de estágio”, adianta João, que neste ano se mudou para um apartamento nas proximidades. É lá que a família se reúne, de sexta a domingo, para matar saudades a dobrar, uma vez que Hugo Félix, 14 anos, está apostado em seguir as pisadas do irmão mais velho.
No Benfica, João não pediu licença para ganhar estatuto. Aos 16 anos, assinou o primeiro contrato profissional, aos 17 já jogava na 2ª Liga pela equipa B e, aos 18, estreou-se entre Jonas, Salvio, Pizzi e companhia. A Seleção Nacional de sub-21 já chama por ele e, na história encarnada, só Espírito Santo (anos 30) e Fernando Chalana (década de 70) se estrearam a marcar frente ao Sporting quando eram ainda mais novos (tinham ambos 17 anos).
A aposta do clube nos escalões de formação, “cada vez forte”, é tema de conversa frequente e tem sido um combustível para os jovens, reconhece a nova promessa made in Seixal. Os exemplos de “Gonçalo Guedes, Renato Sanches, Ederson, Lindelöf e Nelson Semedo”, só para referir os que saltaram mais recentemente para grandes clubes no estrangeiro, são outra fonte de energia extra, rumo à equipa principal. “Todos querem fazer igual ou melhor do que os nossos antecessores fizeram”, diz João Félix, um rapaz que trata a fama da mesma forma como lida com a pressão: “Por aquilo que sou, e por aquilo que me ensinaram a ser, isso também não será um problema para mim.”