Entre 2010 e o primeiro semestre de 2018, a Polícia Judiciária (PJ) de Lisboa apreendeu 784 pinturas falsas. Os dois casos mais graves ocorreram de 2007 a 2014, e lesaram nove compradores, que perderam, pelo menos, um milhão e 700 mil euros. E ambas as fraudes não tiveram sequer acusações do Ministério Público. Isto porque os dois vendedores envolvidos nessas burlas morreram quando os processos-crime contra eles estavam a iniciar-se. Conforme determina a lei, o procedimento criminal extingue–se com o falecimento do suspeito ou arguido. Por isso, também é abandonada a perseguição do rasto do dinheiro ilicitamente obtido.
A condenação mais severa conhecida em Portugal foi a de uma mulher, que vendeu quatro pinturas fraudulentas – três “assinadas” por René Bértholo e uma por Marcelino Vespeira. Os juízes aplicaram-lhe, por burla qualificada, quatro anos de prisão, mas suspenderam-lhe a pena. à data, a arguida ainda devia 25 mil euros de um ressarcimento que prometera a um dos compradores enganados…
Leonor Sá, curadora do Museu da Polícia Judiciária (onde se encontram acondicionadas as “obras” de arte falsas apreendidas pela PJ), num texto que escreveu para uma exposição que acolheu alguns daqueles objetos, diz que os falsos são com frequência “adquiridos e exibidos como marca ilusória de um determinado status social”. Depois surge a tendência de usar obras de arte para “minorar perdas económicas irremediáveis”, associada a “um mercado ávido destes produtos e (…) desconhecedor de matérias estéticas e artísticas, que nem sempre recorre a especialistas antes de fazer as suas aquisições – e que é (…) um solo mais do que fértil para a performance dos nossos falsos”. A análise não podia bater mais certo com as histórias insólitas que se relatam nestas páginas.
Com um burlão assim…
Um galerista espanhol, com artifícios sofisticados, conseguiu que um português lhe pagasse mais de €1,2 milhões por sete “valiosas” pinturas – que, afinal, valiam zero
A devastadora crise das dívidas soberanas estava previsivelmente iminente. Para se abrigar da tempestade que aí vinha, um investidor português decidiu enveredar pela compra de um bom acervo de pinturas, que manteria enquanto pudesse, de maneira a valorizá-las e a vendê-las, já em dias de alguma bonança, com uma mais-valia compensadora. Talvez pelo dobro da quantia que pensava gastar.
Um contacto que tinha no comércio de arte indicou-lhe como melhor intermediário um especialista espanhol. Dono de duas galerias, uma em Barcelona e outra em Milão, J. era, argumentava o contacto, um profundo conhecedor dos bastidores europeus da arte e um “Midas” a obter obras valiosas por preços abaixo dos praticados no mercado. Parecia demasiado bom para ser verdade – mas o investidor português avançou.
Entre 2007 e 2014, o espanhol convenceu o português a adquirir, por €1 196 806,26, um conjunto de seis pinturas, dos anos 1920 e 1930, de discípulos do movimento Bauhaus – Paul Klee (por €337 590), Josef Albers (duas obras, €390 000 no total), Moholy-Nagy (€224 671,26), Lyonel Feininger (€168 795) e Wassily Kandinsky (€75 750). Pelo meio, J. introduziu uma obra do norte-americano Jim Dine, precursor da pop art com Andy Warhol e outros. Mais €76 725 gastos pelo investidor português.
Para certificar as pinturas que lhe vendia, o espanhol cumulava o português de autenticações: catálogos raisonné (“bíblias” internacionais que elencam toda a obra de um artista específico), a que se somavam outros de duas leiloeiras de Milão e um compêndio dedicado a Paul Klee. No caso do único pintor vivo do acervo, Jim Dine, o espanhol até entregou ao português o que jurava ser um manuscrito do autor por trás de uma fotografia da obra vendida, a autenticá-la. “It is my work Jim Dine Venice 1988”, lê-se.
Em fins de 2015, o investidor português decidiu vender o conjunto de obras que comprara ao espanhol, em busca da generosa mais-valia que tinha como objetivo alcançar desde o início. Pediu uma avaliação à leiloeira Sotheby’s e foi o descalabro. Era tudo falso, dos quadros e catálogos (cujas páginas, quando precisava, J. manipulava através de impressão a laser, trocando a obra original da publicação pela pintura falsa que pretendia vender ao português) às fotografias e aos escritos que os acompanhavam. As peritagens do Laboratório da Polícia Científica, da PJ, reconfirmariam o prejuízo de €1 273 531,26 do comprador enganado, com aquela que é tida como a pintura falsa mais cara alguma vez vendida no nosso país no espólio (o suposto Paul Klee, adquirido por €337 590).
Após denúncia do lesado, o Ministério Público (MP) português seria rápido a enviar cartas rogatórias aos congéneres espanhol e italiano, para que detivessem J. e o interrogassem. Mas, na volta do correio, já em 2016, o MP recebeu como resposta a notícia de que o indivíduo referenciado morrera havia pouco tempo. Como a lei impõe, o processo-crime foi extinto com o falecimento do suspeito, que no mínimo arriscava, tendo em conta os valores envolvidos, oito anos de prisão, por burla qualificada. Por tabela, pereceu assim o caso mais grave de pinturas falsas verificado até hoje em Portugal.
Morrer de consciência (in)tranquila
Sentenciado por um cancro terminal, um antiquário arrumou as finanças pessoais com um esquema de fraude maciça. Parece o ponto de partida da série Breaking Bad, mas aconteceu em Torres Vedras
Quando saiu daquela consulta, L., antiquário com base de operações em Torres Vedras, levava consigo a sentença de morte. O médico disse-lhe que o cancro de que sofria estava já muito avançado e que lhe restava pouco tempo de vida. Em desespero de causa, o antiquário, profundo conhecedor do meio português de comercialização de arte (e aí reconhecido como intermediário fiável), concluiu que apenas tinha uma forma de deixar as finanças pessoais arrumadas. E foi rápido a concretizar o esquema de fraude maciça que engendrou.
Apontou sobretudo à falsificação em grande escala de quadros do pintor português António Palolo (1946-2000). Era bem pensado: Palolo produziu pouco e, por isso, as suas obras podem alcançar muitos milhares de euros em leilões, além de que as coloridas criações abstratas e geométricas que caracterizavam o pintor nascido em Évora se revelavam fáceis de falsificar, de modo a enganar os compradores.
O plano do antiquário foi um êxito. A sete colecionadores selecionados a dedo, vendeu a preços de “saldo” um total de 296 falsos Palolo. Só um deles adquiriu a L. 174 destes quadros fraudulentos. “Estas pessoas queriam dominar o mercado dos Palolo”, explica um conhecedor.
Depois, a uma casa de penhores de Lisboa, o antiquário entregou três guaches sobre papel de Paula Rego e recebeu em troca 24 mil euros. Nesta altura, L. já tinha arrecadado mais de 500 mil euros. No entanto, seria um daqueles guaches a traí-lo ainda em vida. Como não foi recuperá-los a tempo, a casa de penhores colocou um dos desenhos numa conhecida leiloeira de Lisboa, a Cabral Moncada (CML), para venda, que o avaliou entre 30 mil e 45 mil euros. Esse guache fez até capa de um catálogo da CML para um leilão a realizar a 7 de maio de 2012. “Pouco depois de o referido catálogo ter sido disponibilizado no nosso site, antes mesmo da exposição pública do leilão, e muito antes da sua realização”, a leiloeira “foi alertada por parte da autora para a circunstância de a peça em causa não ser da sua autoria e ser, portanto, falsa”, diz agora à VISÃO Pedro Alvim, administrador da Cabral Moncada. A CML retirou logo o desenho do lote a ser colocado em leilão. “Ao corrigir dessa forma e de imediato o erro de peritagem ocorrido, fica claro que o público não chegou a correr quaisquer riscos”, argumenta Pedro Alvim. O mercado, acrescenta, “compreendeu e aceitou a explicação que na altura lhe foi prestada”.
A partir desta denúncia, a PJ interveio e os inspetores obviamente espantaram-se com os quase 300 falsos Palolo em que tropeçaram, “datados” de 1963 a 1971. Mais pasmados ficaram com o primarismo das falsificações, que passou ao lado dos compradores. Entre as abstrações geométricas, apareciam figuras como Peter Pan, Pateta ou Rantanplan, o cão de Lucky Luke. Nestas “divagações”, a mais risível tem que ver com a raposa Robin Hood. Esta personagem foi lançada pela Disney em 1973, mas está num dos falsos Palolo com data de 1970…
Na posse de L. foram encontrados mais seis desenhos falsos atribuídos a Paula Rego. O antiquário seria chamado para interrogatório, optando por não prestar declarações. Pouco depois, em 2013, faleceu. E já se sabe: arguido morto, processo encerrado.
O falso-verdadeiro
Um ato irrefletido do dono fez com que o quadro revertesse a favor do Estado
Aquele guache sobre papel do pintor português Francis Smith (1881–1961), datado de 1958, foi comprado por P. num leilão em Paris por 800 euros. Tudo fazia sentido para autenticar a veracidade do quadro – de origem inglesa, mas nascido em Lisboa, Francis Smith fixou-se na capital francesa, onde produziu quase toda a sua obra. E aquela paisagem com árvores era característica do seu traço. O comprador português, porém, borrou a pintura quando entendeu que a assinatura do autor estava demasiado desbotada e… reescreveu-a a lápis. Foi o suficiente para a PJ, numa diligência de fiscalização de uma leiloeira, apreender o quadro, por suspeita de ser falso. No julgamento que se seguiu, não ficaram dúvidas: o quadro era verdadeiro. No entanto, o juiz concluiu que o ato de escrever por cima da assinatura original do autor constituía uma falsificação da obra e ordenou, em 2017, a sua perda a favor do Estado. E pensar que P. esperava obter uma mais-valia de 275% com a revenda da pintura por três mil euros…
Um José de Guimarães cortado ao meio
Obliterar uma pintura ao meio, para a vender em dois quadros? Aconteceu com um original de José de Guimarães – e, pasme-se, tudo acabou bem
Num ápice, uma galeria do Porto alienou aqueles dois quadros de José de Guimarães, por 12 mil euros cada um. Mas a primeira compradora, por razões que se desconhecem, resolveu apresentar ao autor, a 7 de maio de 2012, o quadro que a galerista C. lhe vendera. Ficou sem chão. José de Guimarães explicou-lhe e deixou escrito, para conhecimento da PJ, que a pintura que estava a ver “representa a metade esquerda” de um original seu, e que a assinatura ali inscrita “é falsa”. A assinatura verdadeira “estava na outra metade da obra”. O artista esclareceu que “a obra original tem as dimensões de 50×200 cm”, enquanto a pintura que lhe foi apresentada resumia-se a 50×100 cm.
Inquirida pela PJ, a galerista envolvida no caso disse que estava “convicta” da autenticidade das duas obras que vendeu, bem como das assinaturas que nelas constavam. Acrescentou que as adquiriu numa galeria em Paris, a qual fechara e cujo dono emigrara para o Canadá, onde morreu. A PJ ficou, pois, impossibilitada de demonstrar quem tinha procedido ao “corte” e à falsificação da assinatura do autor.
No julgamento, houve uma proposta de acordo extrajudicial. A galerista propôs-se ressarcir os compradores dos dois quadros e pagar a restauração da pintura original. Aceite a sugestão pelos intervenientes, o segundo comprador manifestou ao juiz a vontade de adquirir a obra integral e restaurada. O magistrado anuiu, desde que José de Guimarães concordasse com tal restauração – contou agora o artista à VISÃO. “Respondi que apenas aprovava se a coisa ficasse no são [bem feita].”
Seria o próprio pintor a indicar à galerista o restaurador, por acaso do Porto, que considerava mais capaz de levar a cabo tão sensível trabalho. E o resultado foi o melhor. “O quadro ficou impecavelmente restaurado”, diz à VISÃO José de Guimarães. Um final feliz, para variar.
Esquema muito lá de casa
Familiar do pintor Costa Pinheiro aproveitou convivências antigas para vender quadros falsos
O fator confiança estava desde logo adquirido. M., familiar próxima do pintor Costa Pinheiro (1932-2015), cedo conviveu com artistas, galeristas e outras individualidades ligadas à arte. Astróloga de profissão, decidiu resolver as suas dificuldades financeiras da forma mais fácil – vender a amigos galeristas quadros falsos de pintores amigos.
Na verdade, começou por pôr à venda, entre fevereiro e julho de 2005, cinco quadros fraudulentos do próprio Costa Pinheiro, com assinaturas falsificadas, pelos quais a Galeria Valbom, em Lisboa, lhe pagou €57 500. A galeria venderia um desses quadros a um cliente habitual, que, por acaso, encontrou Costa Pinheiro no Algarve, em agosto de 2005. Esse comprador aproveitou a ocasião para mostrar o quadro em causa ao pintor, para que o artista o certificasse. Costa Pinheiro foi veemente: não tinha pintado tal obra nem aquela era a sua assinatura. Mais tarde, os donos da Galeria Valbom mostraram os restantes quadros a Costa Pinheiro, que os declarou “falsos”.
A galeria ressarciu aquele comprador e chegou a um acordo extrajudicial com M. – que prometeu pagar os €57 500 que recebeu. Porém, a familiar de Costa Pinheiro reincidiu no esquema: em dezembro de 2005 vendeu à mesma Galeria Valbom, por oito mil euros, um quadro falso do pintor português René Bértholo (1935-2005), nascido em Alhandra.
Bértholo, grande amigo de Costa Pinheiro, foi o alvo privilegiado de M.: venderia mais duas pinturas com a suposta assinatura daquele artista à galeria Antigo QB, em Lisboa, em setembro de 2006 e em meados de 2007, ambas por dez mil euros. À Biblarte, também na capital, vendeu, em dezembro de 2005, um falso de outro grande amigo de Costa Pinheiro, Marcelino Vespeira (1925-2002), por €4 500.
Após a investigação da PJ e a dedução da acusação pelo Ministério Público, M. foi julgada, em 2014, por um coletivo de juízes da 1ª Vara Criminal de Lisboa. M. clamou inocência e alegou que fez as vendas em questão a pedido de um tal “Manuel Vinhas”, indivíduo com quem manteve um relacionamento amoroso e que se apresentava como “pessoa de grandes posses e colecionador de obras de arte”. No entanto, como se lê no acórdão, “este indivíduo nunca foi identificado, desconhecendo-se mesmo se existe”.
Em cúmulo jurídico, M. seria condenada, por burla qualificada, a quatro anos de prisão, com pena suspensa. Os donos da Galeria Valbom deduziram um pedido de indemnização cível de €33 500 contra a arguida, mas os juízes chumbaram-no. Como justificação, os magistrados escreveram que, nesse montante, estavam 25 mil euros que M. ainda devia, do acordo de ressarcimento de €57 500 celebrado, de forma extrajudicial, em 2005 (pelo que não integrava os autos do julgamento), e que apenas lhes cabia uma indemnização de oito mil euros. Ficam a faltar, ainda assim, 500 euros. Segundo os juízes, um dos sócios-gerentes da Valbom ofereceu a M. essa quantia, “a título de liberalidade, porque estavam perto do Natal e tinha gostado muito do quadro”…