Transformou-se numa espécie de estrela rock do feminismo mundial depois de, em 2012, ter pronunciado a TED Talk “We should all be feminists”. Beyoncé “samplou” o discurso numa canção e a casa Dior adaptou as palavras da escritora nigeriana a uma t-shirt- -manifesto pela defesa dos direitos das mulheres. Chimamanda Ngozi Adichie nasceu há 40 anos, vivendo hoje entre a Nigéria e os Estados Unidos da América. É autora de romances premiados como Meio Sol Amarelo (2006), A Coisa à Volta do Teu Pescoço (2009) e Americanah (2013). Em Portugal, acaba de sair Querida Ijeawele (Dom Quixote, 94 págs., €7,50), um ensaio curto mas perspicaz, com conselhos sobre como educar uma menina. Pretexto para esta entrevista-conversa telefónica entre Lisboa e Nova Iorque – sem vídeo, como se deduz da primeira pergunta da VISÃO que, nem por acaso, acabou por ser uma pergunta falhada. Parafraseando Chimamanda, uma superjornalista (“supermulher” no original) é coisa que não existe: “Concede a ti mesma espaço para falhares.”
Estou a fazer esta entrevista por telefone, sem imagem de vídeo. Por causa disso, e também por conhecer o seu projeto Wear Nigeria, pergunto-lhe: tem vestida alguma peça de uma marca nigeriana?
É muito boa, essa pergunta [risos]. Parece apenas uma pergunta engraçada, mas na verdade é muito importante. Lamento, mas não estou a usar qualquer peça nigeriana, tenho vestida uma coisa muito parecida com um pijama.
Porque é que por vezes as pessoas – e, paradoxalmente, as que se intitulam feministas – não levam muito a sério mulheres que cuidam da sua aparência?
Penso que isso se deve ao facto de a aparência ter sido uma das razões da opressão sobre as mulheres. Durante muito tempo, era suposto serem bonitinhas e caladas. Para o contrariar, opuseram-se a tudo e mais alguma coisa: incluindo o pensarem sobre a sua própria aparência. Algumas das mulheres que mais admiro não gostam de maquilhagem, não lhe veem qualquer utilidade e eu, por acaso, até gosto muito de maquilhagem. A meu ver, trata-se apenas de uma questão sobre a capacidade de escolher. Não tenho nada contra as mulheres que não querem saber da sua aparência. O que temos é de conseguir reclamar esse púlpito, o de podermos falar sem constrangimentos sobre a nossa aparência. Não podemos permitir que, às mulheres, lhes seja retirado o direito de se preocuparem com a sua aparência. Temos o direito de não sermos julgadas por isso.
As suas TED Talks têm milhões de visualizações, transformou-se num exemplo para muitas pessoas. O papel de estrela mundial do feminismo agrada-lhe?
Não, para mim, isso é até um pouco complicado… Por um lado, não foi nada que tivesse planeado, mas, por outro, sou uma pessoa muito ambiciosa. Em criança, queria ser a melhor da turma, sempre fui uma trabalhadora árdua. Escrever é o meu primeiro amor, o que tem mais significado para mim. Sempre quis escrever livros que as pessoas tivessem interesse em ler. Queria escrever e, mais do que isso, esperava que as pessoas quisessem ler os meus livros.

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Era a sua ambição?
Sempre foi. E esta cara pública do feminismo não estava nos meus planos. Sinto uma enorme ambivalência. Adoro falar sobre feminismo, tenho sentimentos muito fortes sobre as mulheres, sobre as suas regras e os seus direitos. E fico feliz por poder falar sobre isso e por as pessoas quererem ouvir-me. Agora, às vezes, esse papel não me agrada nada: aborrece-me quando me enviam coisas relacionadas apenas com feminismo. Não quero ser vista como uma pessoa que se interessa apenas por esse assunto.
E sente que o feminismo a distrai da escrita?
Tenho a certeza de que este meu papel público me distrai da escrita. Se ele não existisse, passaria todo o tempo a escrever e a ler. Sei muito bem que a escrita ainda é a minha prioridade. E, de resto, pararia tudo, se alguma vez sentisse que o meu lado de figura pública ligada ao feminismo estava a dificultar- -me a escrita. Escrever é a minha prioridade.
O que está a escrever agora?
Não gosto de falar sobre o que estou a escrever, aterroriza-me mesmo. Mas, sim, estou a proteger o meu tempo: estou a escrever e a ler, as duas atividades de que mais gosto.
O que pensa acerca da discriminação positiva? Acha que é possível resolver o problema da desigualdade de género através da legislação dos governos, por exemplo?
É verdade que os governos não podem excluir-se desse problema, sobretudo em questões básicas como “salário igual para trabalho igual” e na garantia de que as raparigas não são impedidas de ir à escola por serem raparigas. Mas também acho que o problema vai para lá das políticas públicas. Interesso-me cada vez mais por ideias sociais e culturais relacionadas com as mulheres. Sinto que as pessoas precisam mesmo de começar a pensar de forma diferente; a generalidade dos cidadãos ainda tem muitas ideias fixas sobre as mulheres. E essas ideias precisam de ser alteradas.
Coisas “pequenas” do dia a dia, como fala no seu livro?
Completamente. Por exemplo: estou a ver televisão e reparo que, nos EUA, toda a publicidade a produtos de limpeza é dirigida às mulheres. Isso reforça a noção de que os trabalhos domésticos são para a mulher. Temos de alterar esta ideia. O trabalho da casa é dos homens e das mulheres. Não me canso de dizê-lo.
Também faz referência ao facto de serem as próprias mulheres a congratularem-se quando os homens tratam das crianças.
Porque penso que é importante não louvar os homens por fazerem o que eles devem fazer. Quando vejo um homem a tomar conta de um filho, costumo sorrir. E, no entanto, ao mesmo tempo, tento lembrar-me de que não o posso fazer: não devemos louvar os pais por tratarem das suas crianças. Quando temos filhos e filhas, se os rapazes fazem alguma coisa em casa, fartamo-nos de os elogiar. Porém, não o fazemos com as raparigas, pela simples razão de que esperamos que elas façam esse tipo de trabalho. Tudo isto contribui para o reforço do preconceito.

STEPHANE DE SAKUTIN
A desigualdade de género está a diminuir nas novas gerações?
Não sei, depende do dia…
Uns dias está otimista, outros dias está pessimista.
É isso mesmo. Gostamos de acreditar que as novas gerações são mais progressistas, mas parece-me que isso não é necessariamente assim. E, às vezes, penso que, nas novas gerações, estamos a retroceder na ideia do que é uma mulher e onde é que ela deve estar. De uma vez por todas, entendamo- -nos: não estamos a proceder bem se não utilizarmos a capacidade, o talento e a inteligência das mulheres.
Qual é a sua opinião sobre o movimento #metoo?
Penso que é muito importante. Claro que, como em qualquer outro movimento, vão cometer-se alguns extremismos. Às vezes, as pessoas comentam: “Ah, o #metoo está a ir depressa demais, está a fazer ricochete.” Isso sempre aconteceu com movimentos deste tipo: o que me faz feliz é que as mulheres estão a falar sobre essas experiências de assédio sexual e que, finalmente, alguém está a ouvi-las. Fiquei espantada com a surpresa por parte de muitos homens e, assim, apercebo-me de que muitos deles não sabiam de nada. Congratulo-me que os homens estejam a enfrentar as consequências do seu assédio, mas ao mesmo tempo também me pergunto: o que é feito das mulheres que ficaram sem os seus empregos? Das mulheres que adoravam a sua profissão, que perderam oportunidades, que não foram promovidas? Tudo isto é muito triste, foi um desperdício terrível. E, de certa maneira, não há como compensá-las, não há restituição possível.
E o que pensa sobre os movimentos que estão a tentar descredibilizar o #metoo?
Não me interessam. Qualquer movimento de rutura terá sempre esse tipo de reação. Mas não estou muito interessada nisso. O fundamental é que tantas mulheres vejam que, finalmente, podem falar.
A carta assinada por Catherine Deneuve, e por outras mulheres francesas, é apenas um exemplo das diferenças culturais entre os dois lados do Atlântico?
Não tenho a certeza disso, porque na verdade houve muitas francesas que não se identificaram com essa carta. Mas é claro que existem diferentes conceções do que uma mulher deve ser em França, nos EUA ou em Inglaterra. Os franceses acham que uma mulher está a ser “masculina” quando é forte. E também consideram que os homens têm de ser gentis, muito cavalheiros, muito “franceses”. Discordo que um homem tenha o direito de incomodar uma mulher. A mulher tem direito a não ser incomodada. Assim como não concordo com a ideia de que um homem pode “roubar” um beijo a uma mulher. As mulheres são adultos, não são crianças. O sexo também não é algo que um homem “faz” a uma mulher, o sexo é “feito” pelos dois.
Estamos a regressar às causas dos anos 60?
Sim, acho que sim. Veja, por exemplo, como as questões do aborto estão agora a reaparecer. Julgo que estas causas e estes movimentos estão a dar dois passos para a frente para, depois, darem um passo para trás. Se tivéssemos perguntado às feministas dos anos 60 como seria o mundo em 2018, elas teriam dito que a igualdade de género estaria quase conseguida. Veja-se o ponto em que estamos.
Acha que é possível falar de feminismo da mesma maneira em todo o mundo?
Penso que temos de falar sobre direitos das mulheres em todo o mundo, porque existem problemas de género em todo o lado.
No entanto, às vezes, precisamos de adaptar a linguagem às dinâmicas locais.
E de respeitar as culturas locais?
Depende. Na minha opinião, não podemos falar em respeitar as culturas de uma forma muito abrangente. Sobretudo porque elas foram utilizadas, durante anos, para oprimirem as mulheres. Ao mesmo tempo, o feminismo existe em todas as culturas. Em todo o mundo, encontramos mulheres a lutar contra a discriminação e, mesmo que não usem essa linguagem, elas são feministas. Eu, por exemplo, sinto-me muito ligada à cultura igbo [do Sudeste da Nigéria]. Falo a língua, partilho as histórias, o folclore e a poesia, mas depois existem muitas coisas de que não gosto na cultura igbo. Especialmente aquilo que tenta diminuir as mulheres, não suporto tudo isso. Penso, que é possível fazer parte de uma cultura e, mesmo assim, querer mudar tudo o que nela está errado.
Quando diz que “todos devemos ser feministas”, também fala dos homens.
Sim.
E porque vê em Obama um exemplo de masculinidade a seguir?
Em primeiro lugar, porque ele se identifica publicamente como feminista. Claro que é impossível conhecer bem as pessoas que são figuras públicas… A partir da imagem dele e da mulher, porém, fica-se com a impressão de que Barack e Michelle Obama são iguais, de que se trata de um casamento de igual para igual. Barack ficou muito grato a Michelle por ela ter suspendido a sua carreira para que ele pudesse candidatar-se à presidência dos EUA. E fica-se com a sensação de que teria feito o mesmo por ela. Além do mais, é um exemplo porque – como infelizmente vivemos num mundo em que os homens ouvem melhor outro homem do que uma mulher – a sua mensagem sobre o feminismo chegará mais facilmente aos outros homens.