Sempre que lhe falam em Barcelona, a farmacêutica Joana, 37 anos, sente um arrepio. A seguir vêm as memórias dolorosas dos dias em que se viu à beira da morte e perdeu os dois filhos gémeos, às 23 semanas de gravidez.
De um dia para o outro, deixou de ser uma futura mãe, saudável e feliz, para se tornar numa grávida de risco, a precisar com urgência de um procedimento cirúrgico que não se fazia em Portugal. Estávamos em outubro de 2013 e os pormenores conta-os hoje com clareza e rigor, como se estivesse simplesmente a relatar um caso clínico. O médico que acompanhava a gravidez detetou numa ecografia que a bexiga de um dos fetos estava aumentada e a do outro diminuída. Havia também excesso de líquido amniótico. O diagnóstico foi feito logo ali, no momento: transfusão feto-fetal. Ainda naquele dia, Joana e o marido aterraram em Barcelona para que a situação fosse corrigida. No Hospital Clinic pediram-lhe que fosse dormir no hotel do outro lado da rua, enquanto aguardava por vaga. Só que, durante a noite, Joana sentiu-se mal. Já era tarde demais.
Ao longo da sua carreira de três décadas, o obstetra Francisco Valente já teve contacto com vários casos destes. O problema acontece em quinze a vinte por cento das gravidezes de gémeos ditos verdadeiros (que partilham a mesma placenta) – serão 30 por ano em Portugal – e até agora não se tratava no País.
Por regra, as mulheres eram enviadas no próximo voo disponível para Londres, Lyon ou Barcelona. Aterravam assustadas, em risco de vida, muitas vezes numa cidade desconhecida, num país em que não dominam a língua. Francisco Valente acompanhou alguns casos, para tranquilizar a grávida. “É importante ir o médico também, nem que seja para dar uma palmadinha nas costas.” É que, ainda por cima, era o seu nome que encabeçava o termo de responsabilidade que as companhias aéreas exigem para aceitarem fazer o transporte. Há casos em que também seguia o neonatologista, por causa do risco de parto prematuro.
Na cabina do piloto, seguiam bisturis, agulhas, equipamento para ventilar. Horas de grande ansiedade, antes e durante o voo. E depois, “no hospital de destino, temos de nos sujeitar à disponibilidade para nos atenderem,” nota o médico, numa sala no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, com as paredes forradas a fotografias, postais e cartas de agradecimento de pais. Um menino que nos fita com uns enormes olhos esverdeados e que nunca teria nascido não fosse a equipa de Vila Nova de Gaia oferecer um tratamento para o citomegalovírus. O outro que sofria de uma hérnia diafragmática congénita e que Francisco Valente acompanhou a Londres, ainda na barriga da mãe, para que lhe fosse feita a cirurgia corretora.
Ao fim de anos a lidar com a angústia dos pais, obrigados a sair de Portugal numa situação emocional delicada e em risco de vida, o médico decidiu ir aprender ele próprio as técnicas da cirurgia fetal intrauterina. É que tudo, a vida e a morte, se decide numa questão de horas.
Lucília Monteiro
Bebés salvas no Dia da Mãe
Raquel Fernandes, 35 anos, tinha sido alertada para os riscos acrescidos de uma gravidez como a sua: dois bebés, uma única placenta. Ainda assim, não pensava muito nisso. Já tinha tido um filho e, até à ecografia das 17 semanas, estava tudo a correr na perfeição. Só que, de um dia para o outro, a barriga começou-lhe a crescer “desesperadamente.” No hospital diziam-lhe que aquele mal-estar era normal. “São gémeos, tens de ter paciência.” E Raquel sem conseguir um segundo de sossego. “Estive uma semana sem dormir. Sentia-me a rebentar, a barriga gigante, a crescer a olhos vistos, a pele toda esticada, brilhante, quase transparente”, recorda.
O que valeu foi a ecografia das 22 semanas, marcada para uma sexta-feira à tarde, quando ela já não sabia o que fazer à vida. Raquel lá foi, com muita dificuldade, sem posição para sentar no carro ou deitar na marquesa. Durante o exame, ficou logo claro que algo de grave se passava. Uma das meninas estava inundada em líquido, a outra praticamente sem nada. “Vamos ter de te mandar para Londres”, ouviu da médica do Hospital de Braga. “Caiu-me tudo. Eu não estava capaz de lá chegar.” Até que, providencialmente, a coordenadora do serviço conhecia Francisco Valente e o trabalho que estava a lançar no Hospital de Vila Nova de Gaia. “Nunca me hei de esquecer. Operaram-me num domingo de manhã, Dia da Mãe”, conta, emocionada, ao referir o empenho na salvação das filhas e o cuidado com que foi recebida e tratada no hospital. “Até chorei quando me vim embora para casa.”
Durante a intervenção, que durou três horas, a equipa médica usou um laser para coagular o sangue na placenta, de uma ponta à outra, para travar o desequilíbrio na circulação entre os dois bebés. Também lhe retiraram litros de líquido amniótico. “Senti um alívio tão grande”, recorda. Bárbara e Gabriela ainda aguentaram mais oito semanas na barriga. Cada dia lá dentro, uma vitória. Acabaram por nascer às 30 semanas de gestação, com pouco mais de um quilo cada uma e a precisar de incubadora. Hoje, aos três meses de vida, são duas meninas perfeitas e tranquilas, sem qualquer sinal da aventura por que passaram ainda antes de nascer.
Até agora, e desde que começaram a fazer esta intervenção, em abril deste ano, já foram tratadas quatro mães, de várias partes do País, apesar de o trabalho feito no Hospital de Gaia, onde nascem em média 1 800 bebés por ano, ainda não ser muito conhecido, mesmo entre a classe médica. Da equipa fazem parte três obstetras – além de Francisco Valente, treinaram-se os obstetras Jorge Castro e Cátia Lourenço – e a cirurgiã pediátrica Joana Pereira. Para se prepararem para a cirurgia fetal, fizeram experiências em ovelhas, recorreram a simuladores e praticaram durante os estágios e cursos em Lyon, Barcelona e Londres e também em Cincinnati, nos Estados Unidos da América. O Hospital de Gaia autorizou as ausências, mas cada um dos médicos pagou integralmente a formação, na ordem dos milhares de euros. “O nosso prémio é a satisfação pessoal”, justifica Francisco Valente. “Estamos a fazer algo em benefício das grávidas.”
Raquel Fernandes sente uma grande necessidade de mostrar a sua gratidão e até já tem um plano: um dia, pega na família toda e vai ao Hospital de Gaia fazer uma visita. “É o mínimo.”
Artigo publicado na VISÃO 1285 de 19 de outubro