Na primeira vez em que nos cruzamos, ela vinha de uma transfusão. Na segunda, ia passar o resto do dia a fazer análises. É assim a sua vida, desde que o cancro passou também a viver no seu corpo, a meias com ela. Será assim até ao fim da sua vida, em tratamentos sucessivos. É, por agora, uma verdade absoluta. “No cancro da mama com metástases não há ânimo que se valha de lacinhos cor de rosa, porque não há finais felizes”, assume Cátia Delgado, 32 anos, uma advogada que recebeu um diagnóstico destes há três. “Mas também somos gente e precisamos que não desistam de nós: não se pode continuar a dizer ‘ah, tem metástases então não há nada a fazer, vai morrer.”
Primeiro, as metástases apareceram-lhe no fígado, depois no cérebro – e ela nem percebeu logo do que se tratava, mas intuiu. “Olhamos para a cara das pessoas e sabemos. Quando entrei numa sala, com treze médicos de olhos fixos em mim, percebi logo que não podia ser coisa boa. Depois, vi lágrimas nos olhos de uma médica mais nova, e os médicos não choram, não é?” Várias químio e radioterapias depois, e está limpa, mas sabe que é até o cancro aparecer num outro sítio. Já teve muito medo, e chora de vez em quando, mas esforça-se o mais possível por manter o sorriso e não se vitimizar. “Não me sinto guerreira. Não estou em guerra com nada. Não quero fazer hierarquias de sofrimento. Sei que não vai correr tudo bem, mas, enquanto houver tratamento, uma pessoa tem de viver. E eu apenas tento conviver com este cancro o melhor possível.”
Outubro é o mês por excelência para falar de prevenção e tratamento do cancro de mama – e, nesta sexta-feira, 13, dos casos em que é metastático: quando já se espalhou, já apareceu (ou pode aparecer) em outras zonas do corpo, dos ossos ao cérebro ou ao pulmão. E em que não vai nunca desaparecer para sempre.
A.C. e D.C., versão 2017
Cátia nasceu em Abrantes, veio para Lisboa estudar Direito, e descobriram-lhe um cancro da mama ainda não tinha feito os 30. Estava a pouco tempo do exame na Ordem dos Advogados e não tinha sintomas – até que o mamilo começou a regredir. Ligou a um amigo que é médico, e este nem hesitou: ‘Tens de ir já ao hospital.’ “Segui de imediato para a urgência do Santa Maria.” Levou uma amiga a tiracolo, chegaram por volta da meia-noite, e esperaram até às quatro da manhã.
“Quando levantei a camisola, a médica não fez palpação nem nada. Disse-me só: ‘Quero-a aqui às sete da manhã. É muito grave.’ Ao que eu pensei: ‘Está doida.’ E ainda lhe disse: ‘Não pode ser, eu tenho de ir trabalhar! A médica insistiu: ‘Trata-se da sua vida, está bem?’”
Cátia recorda-se de repetir para si própria que aquilo só podia ser mentira. “Fisicamente, estava lá, mas não me lembro com exatidão do que foi dito. Parecia que tinha voado para o teto e estava a ver um filme cá em baixo, como se não fosse comigo. Só me lembrei de perguntar coisas fúteis, do género se podia pintar as unhas, se podia pintar o cabelo…” Ainda não sabia bem o que aquilo era nem o que aí vinha. Havia algumas histórias de cancro na família, assume, mas Cátia insiste que nunca tinha ouvido falar de metástases nem sabia que isso queria dizer que era incurável.
“Costumo dizer que há uma Cátia A.C. e uma Cátia D.C.: antes do Cancro e Depois do Cancro”, um trocadilho que a ajuda a sorrir, antes de endurecer o tom. “Nós somos uma espécie de parente pobre do cancro, somos as que não aparecem nas notícias. Normalmente, as pessoas dizem: ‘Vais-te safar, já não se morre de cancro de mama. Ou, ‘vai correr tudo bem’. E eu digo: não, não vai correr tudo bem. Porque não tem cura.”
“Não davam grande coisa por mim”
Cátia insiste que o cancro não a define (“Somos todos vulneráveis porque temos um organismo multicelular”), mas sabe que o tempo que viver será sempre a fazer tratamentos. Fez três anos, no dia 2 de setembro, que ouviu a médica explicar-lhe que, apesar de não ter sintomas, o cancro já tinha passado da mama para o fígado. “Eu comecei a perguntar-lhe o que era preciso fazer porque queria mandar o meu currículo para um novo projeto, em janeiro. Ela tentou sorrir e só disse: ‘Espere. Não faça nada até lá. Não compre casa, não compre carro…’, e logo ali percebi que não davam grande coisa por mim.”
Foi sempre fazendo os tratamentos que podia, todas as quimioterapias, desde 2014, sem parar. Agora, tem um cateter onde lhe é injetada a medicação que precisa, de três em três semanas. Entretanto chegou a ir à sala de operações, mas a químio surtira o efeito desejado e acabaram por não lhe tirar nada. “Um ano depois, também já tinha o fígado limpo.” No verão seguinte, novo susto: “Achei estranha uma picada que sentia na testa e que não era bem uma dor de cabeça.” Fez mais exames e descobriram-lhe metástases no cérebro.
“Aí entrei um bocadinho em pânico…” Esteve para ser operada de urgência, mas acabou antes por fazer dez sessões de radioterapia e encher-se de cortisona. Uns meses depois, mais exames, e nada no cérebro. “Neste momento, a minha situação é esta: vai aparecendo e desaparecendo. Já sei que vai ser sempre assim e que tenho de me adaptar. Não posso sequer pensar em parar, porque o meu tipo de cancro é muito agressivo…”
“Não sou a Cátia do cancro”
Ainda assim, Cátia insiste que continua a fazer tudo o que pode. “Se eu me vitimizar, se comparar a minha vida com a dos outros, é óbvio que vou ficar em casa a chorar.” Optou por manter a representatividade da Ordem dos Advogados no Tribunal de Família de Lisboa e abrir um escritório, por sua conta, na Lourinhã, para estar ao pé da praia. “É um dia de cada vez.” Como quem diz, faz tudo com a maior calma, para continuar a conseguir fazê-lo, e também porque não se imagina em casa a receber uma pensão, em frente à televisão. Vive com o irmão, de 20 anos, e a mãe vem visitá-los sempre que ela faz as quimioterapias. “Continuo a combinar jantares com os meus amigos, a sair à noite… Claro que há dias em que me vou abaixo, ninguém é feliz sempre, mas não acho que o meu problema seja maior do que o de uma amiga que está a sofrer. Não temos de fazer uma hierarquia de problemas. Eu tenho este, os outros têm outros.” Depois, numa voz mais baixinha e meio a tremer, lá assume que há coisas que não pode fazer. “Por exemplo, não vou poder ter filhos, que era o sonho da minha vida. Gostava de ter uns três…”
Para a ajudar a manter o ânimo, juntou os amigos todos numa conta de WhatsApp, para os ir pondo a par dos acontecimentos. E, para se sentir mais acompanhada na doença, criou um outro grupo, no Facebook, chamado Sobreviventes do Cancro da Mama Metastático em Portugal, que a enche de orgulho: “Já somos duzentas. Do que falamos? Por exemplo, sabia que não queria usar lenço, nem que me vissem careca, e sei que só quem passa pelo mesmo pode compreender. Compreender que não queria ficar com o estigma, ao sair à rua, e ser apontada a dedo: olha, lá vai a Cátia do cancro, coitadinha”. Aqui já não consegue esconder alguma revolta. “Não sou coitadinha. Sou Cátia. Ponto.” Estava também muito farta daquelas respostas politicamente corretas, do género “vais ver que amanhã estás curada.” “Ali, naquele grupo, nós falamos a mesma linguagem. Sabemos que não vai correr tudo bem, mas, enquanto houver tratamento, uma pessoa tem de viver e não andar sempre a pensar se vai morrer amanhã.”
Rir, chorar, sentir
Sim, também há momentos em que o sorriso, que Cátia faz o tempo todo, se transforma num riso, em que se permite uma gargalhada. Como quando conta que lhe caiu o pelo todo: “Até agradeci! O que eu poupei em depilação!” Ou que passou três dias sem pregar olho, sentada a olhar para lado nenhum, a pensar que não queria dormir porque tinha medo de não acordar. Mas também se lembra de precisar de chorar por ter um cancro assim e não conseguir deixar cair nem uma lágrima. No entretanto, habituou-se a passar horas à espera no Santa Maria, sem queixas. “Eu não sou médica, não faço a menor ideia do que devo fazer. Sei que eles estão a trabalhar para nós, para nos manter vivas. E, além disso, cada caso é um caso…”, prossegue, sempre a agradecer à médica que a acompanha e ao serviço de enfermagem. Até que, por fim, lá revela o seu truque para não baixar os braços: “Choro sempre o mais possível longe dos outros, porque eu sei que funciona como um espelho: se eu chorar, os meus amigos e a minha família também choram. Se eu me rir e andar bem-disposta, eles também andam. E eu preciso que eles andem assim. Se eles entram em pânico, eu não consigo, vou-me abaixo.” E também porque continua a insistir tanto que não pode haver temas tabu envoltos em estatísticas. “O que temos é uma média. Eu já não era para cá estar. No início, mal me davam três meses…”
Com Sara Sá
“NÃO É UM ASSUNTO MUITO SEXY MAS…”
Lynne Archibald, uma canadiana radicada em Portugal desde o fim dos anos 1980, sócia-fundadora da Associação Laço, sabe bem o que sente Cátia Delgado e todas as outras mulheres diagnosticadas com cancro da mama metastático. “Ainda se usa uma linguagem demasiado militar: que há uma batalha a ganhar, que é preciso vencer. Dá a ideia de que quem não se cura é porque falhou. E isso é muito injusto.”
A pensar nisso, a responsável da Laço lançou um desafio ao Instituto de Medicina Molecular. Criaram, para esse efeito, o Fundo IMM-Laço: A caminho da cura” e o objetivo é procurar as causas do cancro e encontrar os mecanismos que desencadeiam o cancro da mama metastático, uma área que ainda é muito pouco estudada. É um fundo que surge depois das três edições da Bolsa Laço, através da qual a Associação Laço atribuiu cinco bolsas de investigação no valor total de 125 mil euros. “Não é um assunto muito sexy mas só assim podemos saber se os recursos investidos estão a valer a pena ou se devemos ir noutra direção.”