Quando Diogo Mesquita Nunes contou que os pais tinham comprado aquela quintinha por causa do “cenário”, pareceu-nos exagero. Estávamos à sombra de um bosque de aveleiras lindo, é verdade, mas precisámos de segui-lo até ao rio para perceber do que falava. Lá chegados, invejámos-lhe o chapéu de palha, os sapatos enfiados na água, a pequena piscina natural logo abaixo da represa. E sobretudo o verde a toda a volta, a uns minutos da cidade do Fundão.
Diogo sorria com o nosso ar encantado, mas o seu momento de prazer fora minutos antes, ao recordar o dia em que descobriu que as velhas aveleiras espalhadas em dois hectares e picos da quinta ainda renderiam muito se fossem reabilitadas. Só este ano colheram-se quatro toneladas de avelãs. “E as pessoas diziam que aqui não se dava nada, que morria tudo por causa de uns fenómenos estranhos…”
Era a nossa vez de abrirmos a boca de espanto. Na véspera, no alto da serra da Gardunha, frente à melhor vista sobre o Fundão que se pode ter, o seu nome surgira com a palavra “mirtilos” à frente. As avelãs nem constavam do cardápio. Diogo ri-se ao saber disso e desfaz a aparente confusão. “Isto não me chegava para a vida, por isso tive de arranjar os mirtilos. São a minha salvaguarda. Estão noutro terreno, a quinhentos metros daqui.”
Havemos de lá ir ver os pequenos arbustos, as cascas de avelã amontoadas junto de algumas raízes numa tentativa de afastar as toupeiras, os refúgios que construiu para os ouriços-cacheiros e as cobras ali hibernarem e comerem os ratos. A apanha é bago a bago, pede muita mão de obra, já sabia este engenheiro do Ambiente. Vale-lhe o subsídio de quatro mil euros por ano, tudo ao máximo porque ainda entra na categoria dos jovens agricultores e faz agricultura biológica.
Diogo vende os mirtilos a dois supermercados biológicos e a uma geladaria de Lisboa, os mesmos que lhe compram as avelãs (que não levam igualmente herbicida e seguem descascadas). Vão as avelãs e os mirtilos – ele fica e ficará onde está. Nasceu na Covilhã e estudou em Aveiro, onde morou dez anos. Também esteve três meses em Buenos Aires, mas diz cada vez gostar mais do Fundão. “Quando penso que a minha irmã, que vive em Lisboa, me telefona quando está no trânsito porque é quando tem tempo…”
O exemplo de Francisca
Ele e a mulher colocam a qualidade de vida no topo das razões por que gostam tanto do Fundão, sobretudo agora que são pais de Viriato, com 1 ano. “Ir levá-lo à creche a pé é ótimo, não é?, pergunta Diogo. É, claro que é. Mas, na manhã seguinte, ao ouvirmos Francisca contar como abriu a sua loja-ateliê de sabonetes artesanais, percebemos que a autarquia também entra na equação.
Nessa mesma manhã haveríamos de entrevistar o presidente, Paulo Fernandes, o homem que está por detrás do plano de inovação da autarquia, que é também o seu plano estratégico desde 2012. Sabíamos que conseguira atrair empresas de tecnologia da informação, um primeiro passo para criar um mini Silicon Valley no concelho. Faltava-nos saber que a estratégia não passa apenas por gigas, megas e terabytes. “A cereja deu-nos a notoriedade que nos permitiu atrever-nos a avançar para outras áreas”, resume o autarca. “Já começamos a estar no radar da inovação tecnológica, o que antes não era possível.”
A história de Francisca Vidal é um bom exemplo disso mesmo. Licenciada em Design Gráfico, já fazia sabonetes de azeite com matérias-primas da região quando entrou no Living Lab, uma incubadora de empresas a funcionar no antigo mercado municipal da cidade. Começou por uma mesa, em regime de cowork, depois passou para um gabinete, e, há um ano, a autarquia arrendou-lhe uma loja que estava devoluta.
A Da’ki foi a primeira a chegar à Praça do Município. Ao lado deverá abrir em breve uma loja de fotografia, e outras se sucederão, sempre com oficina agregada. Foi uma das estratégias que a autarquia encontrou para fomentar o comércio local e recuperar o centro histórico em bastante mau estado, contará Paulo Fernandes.
Francisca tratou das obras e paga uma renda mais baixa do que aquela que o proprietário lhe pediria. O negócio corre bem e não implica com o seu trabalho como designer de comunicação numa empresa de Lisboa. “Com internet e Skype, trabalho em qualquer sítio”, diz, apontando para o portátil que nunca larga.
Tudo a escrever ‘codês’
Do outro lado da praça, na sala de baile do antigo Casino Fundanense, construído no final do século XX, há mais quem viva agarrado a um computador sem um queixume. Quando entraram na Academia de Código sabiam que iam ficar fechados três meses e meio, num ritmo de aprendizagem tão intenso que lhe chamam bootcamp. Objetivo: aprender a programar. Resultado prático: empregabilidade de 97% ao fim de um mês, com o primeiro salário nos 900/950 euros, diz Catarina Campino, artista plástica feita head of detail da academia, que não quer que o urgente passe por cima do importante, embora fale a mil.
Na Academia, Catarina trabalha a star quality de pessoas que estão desacreditadas de si próprias. “O mercado de trabalho deu-lhes um pontapé no rabo e atirou-as para call centers. Nós pegamos em mentes brilhantes e transformamo-las em junior of software developers.” Sabe que lhe vai aparecer gente de todas as idades e sem antecedentes na área. A única condição prévia é dominarem o inglês, a língua franca da programação. Quanto ao pagamento, como o target são desempregados, o lema é “No money, no problem: Apply now, bank later!”. Só quando começam a trabalhar é que os alunos pagam e em prestações “suaves e humanas”.
A Academia de Código encaixa nos princípios da inovação social do plano estratégico da Câmara do Fundão, sua parceira. Além de bootcamps para adultos, ensina programação a todos os alunos do 1º ciclo das escolas públicas do município (são cerca de 800). “A programação é o que era o inglês”, compara Catarina. “Queremos que os miúdos falem e escrevam ‘codês’, e façam os seus jogos. Não os queremos vítimas da tecnologia.”
Estamos no nosso terceiro dia no Fundão. No primeiro, uma segunda-feira, tínhamos feito pontaria para ainda apanhar a feira semanal, aterrando no meio de bancas de roupa, utensílios para a agricultura, caixas de cerejas e quilos de queijo. O ambiente não podia ser mais tradicional e aparentemente parado no tempo. A cidade estava cheia de pessoas e carros porque se mantém o hábito de agendar as idas ao banco e afazeres do género para o dia da feira.
‘Ficam capazes de tudo’
Na quarta-feira, voltamos a estacionar o carro ao pé do recinto da feira porque, mesmo ao lado, fica um edifício modernaço, o pavilhão multiusos. É onde funciona o Centro de Negócios e Serviços que alberga, entre outras empresas mais pequenas, a multinacional francesa Altran. Desde que aqui chegou, esta empresa de consultoria de inovação e tecnológica já ganhou mais espaço e, até ao final do ano, deverá ocupar também as salas da holandesa Logicalis SMC, uma empresa de programação pura e dura. “Eles crescem para aqui e nós mudamos para a rua principal porque vamos recrutar mais gente em breve”, dirá quase à despedida Martijn Odijk, responsável pela atividade em Portugal.
Chove lá fora, uma daquelas grandes chuvadas que não se esperam nesta altura do ano, e o ambiente na sala Manoel de Oliveira não podia ser mais cosy. Há pufes no chão e, numa das paredes, feita quadro de ardósia, uma pintura do artista gráfico holandês Escher. Trabalha-se de t-shirt e phones, frente a computadores; todos homens menos Ewelina, a mulher de Martijn.
No ano passado, Martijn abriu o escritório da Logicalis SMC no Fundão com mais duas pessoas. A falta de programadores na Holanda levara a casa-mãe a procurar um segundo poiso, e os responsáveis de uma empresa com a qual já faziam negócio, a InovaPrime, disseram-lhes que ali as portas estavam abertas. “Contaram-nos que havia desemprego, as pessoas eram instruídas e o mayor ajudava muito.”
Martijn reuniu com Paulo Fernandes em abril e em maio mudava-se de Leiden, que tem 100 mil habitantes, para a cidade do Fundão, com pouco mais de 11 mil. A autarquia disponibilizava-lhes espaços de trabalho, tomava conta da burocracia e apoiava parcialmente as rendas de casa dos funcionários.
Num ano, a Logicalis SMC tinha no Fundão dois holandeses e quinze portugueses, doze deles saídos da Academia de Código e vindos de vários pontos do País. Todos com backgrounds diferentes e uma atitude excelente, elogia Martijn. “Trabalham imenso e, ao mesmo tempo, são muito criativos. O bootcamp é um programa duríssimo; se sobrevives ficas capaz de tudo.”
Já um polo estratégico
A entrevista é feita em inglês porque o holandês ainda só se safa a falar português nos supermercados e restaurantes. E, como passa a melhor parte dos seus dias a trabalhar, o mais certo é só mais alguma coisa com o filho, que nasce em julho. O pouco tempo que lhe sobra é gasto em caminhadas e bicicletadas; anda encantado com a natureza “ainda muito rural”.
Na vizinha Altran, a inglesa Janet Nason, diretora de projeto, debate-se igualmente com o problema da língua, mas está decidida a aproveitar as aulas dadas pela autarquia. Talvez avance no fim do ano, quando chegarem o marido e o filho mais novo, de 17 anos. Por enquanto, não lhe falta com que se entreter – só no Fundão, a multinacional tem quase 300 funcionários, a maioria portugueses, mais 100 no Porto; um número que quer duplicar.
A experiência da Altran em Portugal teve início com uma equipa pequena, no final de 2013. Outros concelhos estavam interessados, mas percebemos que tínhamos condições para crescer aqui”, diz Janet. O primeiro escritório da multinacional francesa era na antiga moagem, um espaço cultural junto à estação de comboios também conhecido por Cidade do Engenho e das Artes, que tem numa das paredes exteriores uma obra de Bordallo II. É ali que está agora a Readiness IT, uma startup na área da integração de sistemas, que trabalha para grandes empresas de telecomunicações. Ocupa várias salas no último andar, com direito a copa, tabela de basquetebol e vista desafogada, mas apanhamos dezenas de pessoas de olhos no computador, aparentemente sem sequer darem pela nossa presença.
Miguel Ribeiro sai da sala de formação para nos receber. A porta fica aberta e o trabalho continua, porque nesta fase os dez futuros especialistas em sistemas de telecomunicações já estão integrados em projetos. Fizeram a Academia de Código ou vêm com background universitário de tecnologias de informação; todos chegaram com o propósito de se fixarem. A Readiness IT tem escritórios no Porto, na capital e em Santiago do Chile, mas o polo do Fundão é estratégico. “A cidade é equidistante de Lisboa e do Porto, fica perto de Espanha e está no centro de três universidades”, justifica este formador.
O melhor queijo do mundo
A formação é também um dos novos desafios de Carlos Morgadinho, administrador da CIMD (Companhia Industrial de Materiais Duros). A multinacional de relojoaria francesa, no Fundão desde 1990, celebrou recentemente um protocolo com a autarquia e o IEFP para a criação de um centro onde serão formados técnicos altamente especializados em microprecisão.
O centro de formação está a ser ultimado nas novas instalações da CIMD, há um ano e picos numa antiga fábrica de lanifícios agora cheia de máquinas sofisticadas. Em ano de retoma, a empresa precisa de novos técnicos, sobretudo jovens, admite Carlos Morgadinho que nasceu em Paris e aos 22 anos se mudou para o Fundão, onde aprendeu tudo o que havia para aprender sobre rubis sintéticos.
Se ele e a “sua” CIMD já são da terra, a família de António Mineiro, que abriu há 38 anos a fábrica de confeções Twintex, pode gabar-se de ser a maior empregadora do concelho. E a responsável pela única hora de ponta em Aldeia de Joanes, a cinco minutos do centro da cidade do Fundão – às 5 da tarde, altura em que saem muito dos seus quase 500 trabalhadores.
Todos os dias a Twintex produz 1 200 peças das melhores marcas de moda do mundo. E todos os dias é expedida roupa pronta a entrar nas lojas. Está tudo tão bem oleado que a preocupação atual é diminuir o impacto ambiental nos processos, explicará durante a visita à fábrica Hugo Mineiro, um dos filhos do fundador. “Em oito anos reduzimos as emissões em 85 por cento.”
Há negócios que passam de pai para filho e até de avós para netos. Foi o caso do Queijo Amarelo da Beira Baixa, que nasceu com Manuel e Purificação Amarelo e hoje continua a ser feito na Damar, a fábrica artesanal aberta há 25 anos por Daniel Amarelo e a sua irmã Adriana, na zona industrial do Fundão.
Os dois irmãos têm no currículo o prémio de melhor queijo do mundo, atribuído em 2009 numa prova cega organizada pelas revistas americanas Wine Spetactor e Vanity Fair. Um queijo de leite de cabra e de ovelha, “à cabreira” (menos calcado) e sem parafina na casca, que Daniel e Adriana aprenderam a fazer com os avós e, mais tarde, com o pai.
Entre borregos e cerejas
Na fábrica vemos que o Amarelo já não é curado em palha, mas ouvimos que cada um deles continua a levar na sua confeção seis litros de leite de cabra charniqueira e de ovelha bordaleira, comprados só a produtores da região. Daniel faz finca-pé nisso mesmo perdendo dinheiro em certas alturas do ano. “Combinamos as parições, mas haja muito ou pouco tenho de ficar com ele.”
Nisso está a par com Paulo Brito, que tem 700 hectares no regadio da Cova da Beira e é o maior abastecedor de borregos da Península Ibérica. Nos últimos dez anos, um e outro ensinaram os agricultores a terem ovelhas a parir todo o ano e não apenas perto da Páscoa e do Natal. “Nunca podem faltar borregos no mercado”, diz o dono da Gestiovinos, que começou a trabalhar com o Pingo Doce há sete anos.
Encontramo-lo junto ao rio Zêzere, com um dos seus empregados que dirigem os rebanhos de moto-quatro. A propriedade atravessa várias freguesias e inclui serra e caminhos públicos. Se não fosse a flexibilidade do presidente da Câmara do Fundão, ainda hoje teria dificuldade em movimentar as ovelhas no terreno. A flexibilidade e a rapidez, diz. “Um dia contei-lhe que os animais demoravam meia hora a atravessar uma estrada nacional e na semana seguinte estava feito um túnel”, exemplifica.
Na véspera, Paulo Brito jantara no restaurante do Alambique, um resort com palmeiras, bar no meio de piscina e tudo, a caminho da zona industrial. “Tínhamos na mesma mesa o coração do Fundão”, ri-se, sem falsa modéstia. Além dele, estava Daniel Amarelo, José Pinto Castello Branco e Paulo Cunha Ribeiro, estes dois últimos sócios da Cerfundão, organização de produtores de cereja. Nem de propósito, os dois que se seguiam na nossa lista de contactos.
Havemos de apanhar José Castello Branco na Quinta da Porta, em Vale de Prazeres, a supervisionar a apanha de cerejas feita ainda com cestas de verga para elas se conservarem melhor. O céu encobrira-se de repente, fora preciso acelerar para a fruta não começar a abrir rachas, mas ele era a calma em pessoa. “Temos um senhor lá em cima que é sócio de nós todos e tem humores”, diz, pragmático, antes de comer mais uma cereja diretamente da árvore.
O ar mais puro
A propriedade caiu-lhe no colo aos 18 anos, por morte do pai. Licenciado em Direito e doutorado em Ciência Política, um dia optou por agarrar o negócio da família a 100% e hoje “vive” na A23 porque tem a mulher e os três filhos a morar em Lisboa. Até meados de junho são as cerejas que lhe ocupam os dias, até setembro são os pêssegos.
Na Cerfundão trabalha-se de uma forma concertada para aceder aos mercados, proteger as marcas e partilhar recursos. “Foi preciso concentrar esforços para nos sentarmos à mesa com uma Sonae, e correu bem”, diz Castello Branco, não resistindo a fazer graça: “Talvez o granito seja mais duro do que um beirão, mas é discutível.”
Correu tão bem que este ano pela Cerfundão deverão passar 800 a 900 toneladas de cereja, um número que o administrador Paulo Cunha Ribeiro quer ver estabilizado nas 1 500 a 1 600 toneladas, em 2020. “O Fundão vai dar um salto enorme, nos próximos cinco anos”, acredita. Daqui a dois anos, ele próprio terá cerejeiras em estufas, de olho na exportação. “Vou conseguir cerejas quinze dias antes do habitual. E isso tem outro preço.”
As primeiras do ano dão direito a três desejos, mas quem gosta de cerejas sabe que as mais saborosas são as do fim de estação. E comidas na serra da Gardunha, a mais de 900 metros de altitude e com vista para o Fundão, ainda sabem melhor. É o que apetece fazer quando se chega ao Natura Glamping, depois de passar a aldeia de Alcongosta.
Foi no local com a melhor qualidade de ar do País que Jorge Pessoa e a sua mulher, Elga, colocaram seis domos geodésicos que parecem tendas para astronautas. Ainda tentaram a sorte na vizinha serra da Estrela, mas as restrições eram muitas. “Depois viemos aqui e o Paulo Fernandes agarrou-nos com unhas e dentes. Apresentou-nos este espaço, ao pé da antiga casa do guarda, e deu-nos um apoio fantástico.”
Em dois anos o Natura Glamping teve lucro, “um orgulho”, confessa Jorge, que trabalhava numa farmacêutica antes de se estrear no turismo. Até 2018, vão surgir mais dois domos, uma piscina com linha de água e um espaço de inverno com lareira. Tudo com vista para o novo Silicon Valley do País.