As mais recentes estatísticas da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima mostram que, entre 2014 e 2016, houve um aumento de atendimentos: de 32 770 (2014) para 35 411 (2016), o que significa mais 8,1 porcento de pessoas a fazerem denúncias. O que não significa que depois façam queixa junto das autoridades policiais.
Em média, no ano passado, todos os dias foram vítimas de violência doméstica três idosos, duas crianças, 14 mulheres e dois homens. Conversámos com o psicólogo Daniel Cotrim, responsável pela área da violência doméstica de género na APAV, para descodificar estes números.
A violência doméstica contra idosos tem vindo a crescer nos últimos anos?
Neste relatório confirma-se essa tendência, o aumento de denúncias junto da APAV, sendo os próprios a denunciarem a situação. Depois do ponto de vista mais formal [junto das autoridades policiais] é mais complicado levá-los a fazer queixa. Só mesmo em situações extremas. O que tentamos fazer é trabalhar o risco, gerir o plano de segurança destas pessoas para que as situações não piorem, informando-os das vantagens da denúncia.
Mas violência doméstica contra homens é um dado novo na nossa sociedade?
Vem confirmar os dados por nós revelados, em agosto de 2016. Entre 2012 e 2015, aumentaram as denúncias de violência contra os homens na ordem dos 15 porcento. Os novos dados confirmam que houve um aumento, em 2016, face ao ano anterior de 9,4% de homens a denunciarem situações de violência. O que significa que a situação começa a estar desocultada e somos menos tolerantes com estas questões.
Os casos de violência contra os homens têm a mesma violência física dos casos contra mulheres?
Não, é diferente. Falamos sobretudo de violência psicológica relacionada com todas as situações. As motivações da violência doméstica contra os homens não são muito diferentes daquelas que existem contra as mulheres. Mas existem algumas diferenças básicas no padrão. A violência contra as mulheres é marcadamente mais física e machista. A violência contra os homens é psicológica, afetando sobretudo as questões da masculinidade, porque o homem foi educado para ser o mais forte e para mandar.
Pode dar alguns exemplos?
A retirada dos filhos, as questões financeiras, a ameaça e o medo de envenenamento constante, porque as mulheres continuam a tomar conta da parte mais doméstica das suas vidas, e nestas situações ainda têm poder. Para exemplificar, conto sempre a história de um homem que quando ficou desempregado, a primeira coisa que a sua mulher fez, com a desculpa de que era preciso baixar os gastos, foi despedir a empregada. Depois escreveu a lista das tarefas domésticas e colava-as na porta do frigorífico. Ao fim do dia fazia o balanço do que tinha sido feito e ao jantar, na presença dos filhos, fazia questão de dizer que o pai não valia nada e que não ganhava dinheiro. Mais tarde, este homem passou a dormir no dito “quarto da empregada”, deixando de partilhar a cama do casal.
Estas situações acontecem mesmo ao nosso lado?
Curiosamente, estas situações acontecem a homens que pertencem a classes sociais mais altas e com muita instrução. A ideia da transversalidade nestes casos é ainda mais transversal. Talvez porque isto não se enquadre naquilo que são as ideias da masculinidade e para eles seja mais fácil falar e perder a vergonha.
Tal como as mulheres, os homens também desculpabilizam a violência?
A desculpabilização da agressora acontece agora tal como, há uns anos, as mulheres justificavam a violência por parte dos homens dizendo que são bêbados ou malucos. Este discurso terminou com as mulheres, mas os homens ao fazerem a denúncia a primeira coisa que dizem é: ‘a minha mulher deve ser esquizofrénica’. A grande questão aqui é que não há qualquer referenciação psiquiátrica ou médica destas mulheres. E não se comprovando é agressão.
As denúncias por parte de mulheres está também a aumentar?
Nunca podemos dizer que aumentou ou diminuiu a violência, temos de nos preocupar com a cifra negra. Esta estabilização dos números [5 226 mulheres agredidas em 2016] pode querer dizer que a cifra negra está mais alta, ou seja, que o número de mulheres que não denunciam situações de violência pode estar a aumentar. A estabilização dos dados significa também que há uma maior intolerância ao fenómeno da violência. As pessoas vivem menos tempo em situação abusiva mas a violência é mais perigosa, chegando a cometer suicídio ou homicídio.
Temos então de nos preocupar com os números que não aparecem nas estatísticas?
São precisas comunidades verdadeiramente ativas na prevenção e no combate contra a violência doméstica. Não podem ser só as organizações. Estamos a falar de um crime público e não podemos assobiar para o lado. Temos de estabelecer redes de proximidade com as pessoas.
Continuam a existir homicidas que já estavam referenciados em casos de violência doméstica como agressores. Porque é que isso acontece?
Porque o sistema não funciona bem. Não vale a pena avaliarmos só os riscos das vítimas, se a seguir não se faz algo fundamental com essa avaliação, que é gerir planos de segurança que não passam apenas por dar um conjunto de indicações às vítimas. É preciso monitorizar e avaliar o grau de perigosidade do próprio agressor. E isto o sistema não está a fazer, seja por falta de meios, de preparação ou de profissionais… Se calhar, não olhamos a sério para estas questões. E os alertsa têm sido sempre muitos. Há 15 dias saiu um estudo da Polícia Judiciária, coordenado pela professora Cristina Soeiro, que dizia exatamente que 50% das mulheres assassinadas em Portugal estavam referenciadas nas autoridades em casos de violência doméstica. O que significa que alguma coisa falhou no sistema de proteção destas pessoas.