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Tudo começou em outubro de 2014. Nessa altura, o general angolano Bento dos Santos Kangamba foi alvo de buscas em Lisboa. A PJ apreendeu então a esse sobrinho, por casamento, do Presidente José Eduardo dos Santos, oito milhões de euros em dinheiro, e arrestou-lhe três imóveis na capital portuguesa, entre outros bens patrimoniais. A investida fora feita no âmbito de um inquérito-crime do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), do Ministério Público, acompanhado pelo juiz Carlos Alexandre, do Tribunal Central de Instrução Criminal, processo em que Bento Kangamba é suspeito de evasão fiscal e branqueamento de capitais.
Ninguém imaginou que, mais de dois anos depois, o caso Kangamba colidiria, embora de forma indireta, com o processo dos vistos gold, atualmente em julgamento. Mas esse choque aconteceu, quando o MP pediu, recentemente, ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a recusa do desembargador Antero Luís, sorteado como relator de uma decisão a tomar por um coletivo da Relação de Lisboa sobre um recurso interposto, em fevereiro último, por Bento Kangamba.
Nas suas alegações para sustentar a existência de “motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade” daquele desembargador, o MP fez fogo cerrado com a mira em Antero Luís, ex-diretor do SIS e antigo secretário-geral do Sistema de Segurança Interna. Aludiu aos contactos do magistrado com António Figueiredo, ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado, e principal arguido do processo dos vistos gold – embora o respetivo inquérito criminal que visou Antero Luís já tenha sido arquivado, em 1 de junho de 2015, pelo procurador-geral adjunto junto do Supremo. Não escrita, mas subliminar, ficou a pairar a ligação de Figueiredo ao empresário angolano Eliseu Bumba, também arguido nos vistos gold, supostamente com vista a negócios naquele país africano.
Depois de ilibado no STJ, o desembargador Antero Luís fez uma participação contra Carlos Alexandre, no Conselho Superior de Magistratura (CSM), sobre “a atuação funcional” deste juiz de instrução no processo dos vistos gold. O CSM arquivou a queixa (Antero Luís diz que o Conselho não lhe forneceu “os fundamentos da deliberação”) e o MP pegou no incidente para elaborar a alegação mais forte do pedido de recusa do desembargador.
Bento Kangamba está agora a recorrer para a Relação de Lisboa de um despacho do juiz de instrução Carlos Alexandre, que prolonga o inquérito em que o general angolano é suspeito. Por isso, para o MP, suscita-se, “de modo fundado, o receio sobre a imparcialidade” de Antero Luís, quando intervém num recurso que questiona uma decisão de um juiz “com o qual manteve um litígio”.
Razões do chumbo
Nas suas contra-alegações de defesa, o desembargador Antero Luís escreve que, para si, após o arquivamento pelo CSM da queixa que fez contra Carlos Alexandre, “o assunto ficou encerrado”. Diz não ter “nenhuma inimizade com o Meritíssimo Juiz” e lembra que, já após a apresentação da mencionada queixa, participou em duas decisões da Relação de Lisboa relacionadas com recursos de despachos de Carlos Alexandre, numa ocasião como relator e noutra enquanto adjunto.
“Em nenhum destes processos, perante a mesma realidade e factualidade, o MP sentiu necessidade de colocar em causa a imparcialidade do signatário”, escreve o desembargador. E afirma não admitir, “sequer como mero pensamento, dada a sujeição do MP ao princípio da legalidade, que o mesmo quer ‘escolher’ o juiz (…)”.
Dois juízes-conselheiros analisaram o argumentário de ambas as partes e decidiram, no último dia 15, chumbar a pretensão do MP. Os magistrados do Supremo escrevem no seu acórdão não descortinarem o “reflexo” que “possa ter na imparcialidade do juiz recusando” a participação feita, no CSM, por Antero Luís contra Carlos Alexandre. Essa “circunstância”, dizem, “é completamente estranha ao recorrente [Bento Kangamba], única pessoa ‘visada’ pela decisão sobre o recurso”.
E, reforçam, “muito menos se vê que, nesta situação, a função de relator do Juiz Desembargador recusando (…) corra o risco de, objetiva e seriamente, ser tida como suspeita pelo cidadão médio”. Concluem que “admitir a lógica do incidente deduzido seria aceitar que o senhor Juiz Desembargador, Dr. Antero Luís, deveria ser impedido de relatar todas as decisões de recursos, desde que estes tivessem por objeto decisões proferidas pelo senhor Juiz de Instrução Criminal, Dr. Carlos Alexandre, na mera presunção de que haveria sempre o risco de os recorrentes poderem vir a ser, de algum modo, afetados por motivos que só a estes magistrados dizem respeito, quando é certo presumir-se a imparcialidade subjetiva do juiz até prova em contrário”.
Tal situação, afirmam, “não só não se concebe, como constituiria uma violação do princípio do juiz natural ou legal, constitucionalmente consagrado”. E caso encerrado.