As regras estão lidas. Lancem-se os dados. O texto vai começar. E adivinham-se, à partida, alguns momentos de tensão, intervalados com sorrisos. Jogar frente a frente tem muito que se lhe diga – deve ser isso que faz com que tanta gente esteja a regressar ao velho tabuleiro, desanuviando do mundo digital. E para satisfazer os jogadores, saem mais de cinco mil títulos por ano. Há um café em Telheiras que tem uma caixa de dados e outra de bonequinhos de chumbo ao balcão. Lá também se fazem tostas com fama de deliciosas, um guacamole que se come com nachos e servem-se bebidas e cafés. Só que o seu maior “negócio” é pôr os clientes a jogar. Para isso há que escolher de entre uma oferta de 170 opções. Bruno Monteiro, 39 anos, ex-marketeer, é dono do lisboeta Pow Wow, e encarrega-se de explicar a mecânica do jogo a quem ali se senta (nunca fala em estratégia). “Recebo muitos universitários, mas aos fins de semana também cá temos várias famílias”, conta.
Mariana Pinto, 23 anos, entra no primeiro perfil. Está frente a frente a Inês Leal, meia dúzia de anos mais velha, já a trabalhar. Até há uns meses, antes de se juntarem à tribo, não se conheciam nem havia nada que as ligasse. Elas estão em minoria neste mundo do tabuleiro, mas nem por isso deixaram de se aproximar à malta no Pow Wow, com o pretexto de jogar. “Tudo o que aqui tenho – não há Monopólio, Risco ou Cluedo – desenvolve capacidades cerebrais, desde o raciocínio, à estratégia ou à observação. Mas a sua principal função é divertir e fomentar a socialização”, assegura Bruno, ele próprio um entusiasta da indústria – poderia lá ser de outra forma?
Berço alemão
Esta nova era de jogos – os chamados eurogames, porque nasceram na Alemanha em oposição ao que se fazia nos EUA – nasceu em 1995, quando apareceu o Descobridores de Catan (colonizar uma ilha desconhecida). Hoje, já se venderam mais de 22 milhões de cópias e está traduzido em 30 línguas. Mas o seu maior legado foi ter invertido a mecânica: o fator sorte diminuiu, a estratégia impôs-se, a duração é mais curta e não se elimina ninguém antes do final do jogo.
São seis da tarde de uma quarta-feira. A pastelaria Tentações, ao Saldanha, começa a encher-se de gente – na sua maioria homens na casa dos 30 – que transporta jogos debaixo do braço. Aos poucos, as caixas abrem-se, as cadeiras ocupam-se e os dados marcam o início da jogatana. A televisão, por acaso, até está ligada, mas ninguém lhe passa cartão. Preferem falar de novos lançamentos, de regras, desafios. É um mundo à parte, longe das novas tecnologias. Ricardo Biscaia, investigador da Universidade Portucalense, ficaria contente por ver como estes encontros se repetem semanalmente, pela mão do grupo Boardgamers Lisboa. É que, ao debruçar-se sobre o assunto, chegou à conclusão que “os jogos de tabuleiro possibilitam diversão enquanto fortalecem o raciocínio lógico e criativo, promovendo a interação, em contraciclo com uma era em que temos cada vez mais crianças e jovens adultos incapazes de encontrar diversão e relacionamento social fora do tablet, do telemóvel ou do computador”.
Hélio Andrade, 36 anos, é um dos três organizadores destes encontros que acontecem há 10 anos e se replicam em outras cidades do país. Diz que nos dias bons podem juntar-se ali meia centena de pessoas até à meia-noite. “Funcionamos como uma segunda família e até há casos em que as pessoas se encontram fora deste contexto.” Hélio acumula mais de 500 títulos, alguns deles guardados num armazém do café.
O mundo português
Gil d’Orey, 48 anos, acaba de chegar da maior feira de jogos de tabuleiro, em Essen, na Alemanha (150 mil visitantes por dia). Mas não foi de lá que trouxe o entusiasmo quando se põe a falar do tema. É criador de vários títulos portugueses com algum sucesso internacional e um dos sócios da MesaBoardgames, uma editora que nasceu em 2010 (Caravelas, Panamax, I Love Portugal). Gil nota que os jogadores já deixaram de ser, exclusivamente, geeks, sem vida social. Hoje, toda a gente se senta em frente ao tabuleiro, do avô ao neto. Enquanto editor, anda sempre à procura de quem tenha uma boa ideia, de preferência já desenvolvida e testada, para a lançar no mercado. No entanto, como não existem fábricas em Portugal, tem de mandá-las para a Alemanha. “Os nossos títulos vão competir lá em casa com a Playstation, por isso têm de ser apelativos. Os meus jogos são todos inclusivos e nunca desenvolvo perguntas. Só o simples ato de se estar à volta de uma mesa já é educativo e vantajoso em relação ao computador – ensina-nos a gerir derrotas e vitórias, a olhar nos olhos do outro, a falar com as pessoas.”
O mercado nacional, ainda pequeno, teima em crescer a um ritmo de dois dígitos por ano, desde 2013. A editora Devir, por exemplo, já lançou, em 2016, 20 novos títulos, o que faz com que o seu catálogo seja agora de 70 jogos. “Estamos neste momento muito dependentes dos hipermercados para conseguir volume de vendas”, lamenta Sofia Leal, do marketing. A sua concorrente Morapiaf tem alguns bestsellers em carteira, como o Dobble, Dixit ou Jungle Speed. E estão prestes a lançar a versão nacional do Ticket to Ride, que já vendeu 21 mil unidades em Inglaterra, só este ano.
Com o texto a terminar, recolham-se os dados. Mas antes, ditam as regras que se desfaçam mitos acerca deste tipo de jogos: não são apenas para crianças (o mercado adulto é bem maior); existem uns rápidos, que se disputam por pura diversão; e há vida além do que se vende na grande distribuição, pois nem tudo se resume ao velhinho Monopólio, manifestamente entediante para os padrões atuais.