Está habituadíssimo a pregar em conferências. Quando entra, de microfone pendurado na orelha, como quem está prestes a dar um concerto, solta números e factos com uma voz convincente e poderosa – como aconteceu recentemente em Almada, durante um fórum sobre mobilidade. Aos 58 anos, o colombiano Guillermo Peñalosa (Gil para toda a gente), doutorado em Gestão Urbana, consegue arrebatar audiências – no final recebe sempre uma ovação.
Nasceu em Bogotá, estudou em Los Angeles, vive em Toronto há 16 anos, mas conhece mais de 200 cidades do mundo por motivos profissionais. Defensor acérrimo da mobilidade sustentável, que dignifica os caminhantes e ciclistas com bons passeios e ciclovias, cumpre o que apregoa com total convicção. Até porque já esteve dos dois lados: primeiro como membro do Governo da Colômbia, hoje como consultor.
O que reteve dos seus seis anos de vida política?
Trabalhei para o Governo antes ainda de o meu irmão ser presidente da Câmara [da capital]. Depois, assessorei-o. Foi realmente uma oportunidade maravilhosa porque pude fazer coisas muito grandes. Em seis anos construímos mais de 800 parques, de todos os tamanhos. E inaugurámos o projeto Ciclovia – uma iniciativa que, aos domingos, fecha as ruas aos carros e as abre às pessoas. Saem à rua um milhão e meio de habitantes [vivem oito milhões em Bogotá]. E também percebi que, para executar, é preciso querer encontrar as soluções para os problemas, porque as desculpas para não se fazer aparecem facilmente.
Foram os pioneiros a fechar estradas aos carros? É que em Portugal isso também já se faz há uns anos.
Felizmente, trata-se de um vírus positivo. Mas não havemos de ser os pioneiros, até porque a ideia nasceu antes de eu chegar ao Governo. Só que era com muito menos quilómetros e abrangia pouca gente. Expandimos para 121 quilómetros, conectando toda a cidade, das zonas mais ricas às mais pobres. E não estamos a falar apenas de recriação, mas também de integração social, de sensação de pertença, de saúde e de meio ambiente.
Que cidades portuguesas conhece?
Porto e Águeda. E agora Lisboa e Almada.
Quais são os principais problemas destas cidades?
Os portugueses continuam a dar muita importância aos carros. Falta-lhes ambição. Sofrem do complexo de parente pobre dentro da Europa, quando têm possibilidades de ser um país tão bom como os outros. Claro que são distintos, mas do ponto de vista da qualidade de vida podem ser iguais ou melhores do que os escandinavos. Aqui não faz aquele frio, chove muito menos… Se acham que podem competir com o resto do mundo a produzir vinhos ou azeite, porque não há de ser igual quando o tema são parques urbanos?
O que responde às pessoas que se desculpam com a topografia das cidades portuguesas?
Digo que a maioria das viagens hão de ser curtas e podem ser feitas a pé ou de bicicleta. E falo-lhes dos modelos elétricos ou na possibilidade de levar a bicicleta pela mão até à descida seguinte. Para mim, o importante é a combinação de caminhar, andar de bicicleta, de transporte público, de carro partilhado. No fundo, é ser-se mais feliz.
Melhor mobilidade traz felicidade?
As pessoas não podem gastar um em cada quatro euros do salário para se deslocarem. Se estão falidas, se não têm dinheiro para ir de férias, para pagar a universidade dos filhos, como podem ter um ou dois carros estacionados à porta de casa? Se não se importam com o meio ambiente ou a saúde, ao menos olhem para o bolso. Há que montar um sistema de transportes públicos que seja tão bom que qualquer pessoa possa deixar de ter carro.
Ter carro ainda é uma questão de estatuto…
Por que razão os países onde se usa mais a bicicleta são os que têm o clima pior? Porque os países do Norte da Europa são muito mais igualitários. A diferença entre ricos e pobres é ténue.
Em Portugal ter carro ainda é sinónimo de riqueza.
Em muitos sítios ainda é. Quando estive em Águeda, o presidente da Câmara tinha trocado o seu Mercedes por um Prius [carro híbrido] – não por uma bicicleta – e foi muito criticado pela população, que lhe dizia que um Toyota não era um carro digno de presidente.
Foi só aqui que encontrou essa mentalidade?
Não. Também estive a trabalhar em Tirana, capital da Albânia, uma cidade bonita mas mínima: um retângulo de 10 quilómetros por seis, com um milhão de habitantes. Quando deixou de ser comunista, há 25 anos, havia sete mil carros; hoje há 400 mil, ainda que mais de metade das viagens seja de menos de um quilómetro e que gastem 40% do salário em automóveis. Finalmente, começaram a construir uma rede de ciclovias segura e o presidente da Câmara só se desloca de bicicleta, para dar o exemplo. Até convida pessoas conhecidas da sociedade albanesa para irem com ele a reuniões, a pedalar, para que a população veja e se inspire. Para ver se mudam o chip mental.
Porque começou a interessar-se pelos temas da mobilidade?
O meu pai foi o primeiro secretário da habitação das Nações Unidas e a minha mãe trabalhava em paisagismo. E eu sempre estive muito envolvido com a comunidade: se os meus filhos andam numa escola, sou da associação de pais; se vivo num bairro, envolvo-me nas suas questões…
Fundou a organização não governamental (ONG) 8 80 cities logo depois de ter largado a vida política?
Não. Nessa altura fui para o Canadá trabalhar para a Câmara de Toronto, inicialmente por dois anos. Mas apaixonei-me pelo país. Só dez anos depois é que criei a organização.
Para que serve a ONG que criou?
Pareceu-me que havia muito para fazer, para ajudar os governos a tomar decisões, mostrando-lhes exemplos, capacitando e motivando as pessoas. É um trabalho com decisores, governos e comunidades, nas áreas da mobilidade sustentável e dos parques públicos.
E isso na prática quer dizer que são consultores?
Sim, mas sem lucro. Fazemos apresentações e workshops e capacitamos gente dos governos e ativistas.
E também é presidente da World Urban Parks. De que se trata?
Até há dois anos, havia quatro organizações que se ocupavam dos parques urbanos, que agora se juntaram. E assim tentamos promover uma boa oferta e um bom uso de parques urbanos em todas as cidades do mundo. Também fazemos ativismo a nível internacional, oferecemos certificações e organizamos eventos.
Tem carro?
Já tive, há muitos anos. A minha mulher ofereceu alguma resistência quando tomei a decisão de deixar de ter, mas ao fim de dois meses estava feliz. Hoje, ela usa muito transportes públicos; eu é mais a bicicleta. E temos carro partilhado.
Como funciona isso do carro partilhado?
Como as bicicletas públicas. Pode usar-se meia hora, uma hora, o que for preciso. Normalmente, recorro a este método três horas ao mês [custa entre 3,5 e 7 euros], para ir ao supermercado, por exemplo. Para acionar, há que ter um cartão, entrar na internet, escolher um dos 300 pontos onde existem carros, ver se há algum disponível, e voltar a devolvê-lo no mesmo ponto. Nessa altura, se o depósito estiver a menos de meio, existe um cartão dentro do carro para se pôr gasolina. De resto, eles é que se preocupam com o seguro, as revisões, as avarias… Em parte, é o que quer fazer a Uber – converter-se numa rede de carros partilhados e sem condutor.
Isso para um português parece um cenário do futuro.
Os jovens já não querem ter carro – preferem viver numa zona mais agradável, de rendas mais caras, do que gastar dinheiro na manutenção do carro. Em Portugal ainda não é assim. Esperemos que mude. Nos últimos meses estive a trabalhar em Tóquio, Hong Kong, Kuala Lumpur, Bogotá e Varsóvia. Em todos os sítios vi jovens a jogar Pokémon Go. Quando aqui em Portugal, os jovens se aperceberem que nos EUA já há pouca gente a querer ter carro, mudam a mentalidade. Aqui dá a série Friends?
Sim.
Esse foi um fenómeno muito interessante. Antes, todas as séries de êxito tinham no elenco um pai, uma mãe, uma casa nos subúrbios, com um pequeno jardim à frente, e carro. E depois, veio Friends, e foi quando os telespectadores começaram a ver jovens com êxito, sorridentes, a viver na cidade, sem carro. O mesmo aconteceu com o argumento de O Sexo e a Cidade.
Das mais de 200 cidades em que já trabalhou, qual destacaria como o melhor exemplo?
Adoro Copenhaga, pela questão da igualdade. Daqui a 15 dias, vou levar um grupo de 35 líderes de cidades dos EUA para passarem cinco dias na Dinamarca, como faço todos os anos. E assim verificam como aquilo que apregoo é realizável, como se pode construir um passeio ou uma zona só para peões, por exemplo.
E o pior exemplo?
Muitos… Nos EUA há duzentas coisas péssimas, com muitos exemplos de segregação. Houston, Atlanta, Los Angeles, são sítios horríveis. As pessoas tornam-se escravos dos carros porque não podem ir a pé a nenhum sítio.
As cidades deixaram de ser construídas para as pessoas, como diz?
Sim, mas é preciso mudar. Nos próximos 40 anos, passaremos de 3,5 [a viver em centros urbanos] para sete milhões, e vamos construir o mesmo número de cidades que já existem hoje no mundo.
Construir onde?
Esse é o grande desafio. Oxalá a imensa maioria seja onde estão as cidades hoje, em vez de continuar a ampliá-las para fora, onde não chegam os transportes públicos nem o saneamento básico. Não dá para insistir em áreas sem passeios, sem zonas para bicicletas ou para peões. No México, por exemplo, existem mais de dois milhões de casas abandonadas, porque as pessoas viviam tão longe do seu trabalho que gastavam o dinheiro todo em transportes. As cidades têm de pensar também na competitividade em termos de qualidade de vida. No ano passado, ofereceram à minha mulher um emprego muito bom no México, continuando a trabalhar para o governo canadiano. Pensámos em mudar-nos para lá, mas no final decidimos que não íamos, porque o trânsito é infernal e para percorrer dez quilómetros demora-se três horas.
E Lisboa, é competitiva? Acha mesmo que tem gente feliz, comida deliciosa, uma boa vida lenta, como escreveu na sua conta do Twitter?
Tem de melhorar muito. O transporte público ainda não é uma opção para os ricos.
O seu discurso é totalmente contra os carros. Já alguém lhe ligou da parte da indústria a fazer-lhe ameaças?
É um lóbi grandíssimo, que até obriga as cidades a tomarem decisões disparatadas. No Brasil, por exemplo, por um lado dizem que promovem a mobilidade sustentável; por outro subsidiam a compra dos carros.
O negócio vai ter mesmo de mudar?
Nos EUA e no Canadá, já se compram menos carros do que há 40 anos, e por isso a indústria está muito assustada. Apesar de todo o dinheiro que investem em estudos de mercado, não previram esta tendência. Podem virar-se para os carros sem condutor, mas não será a mesma coisa, pois cada um destes carros faz as viagens de catorze. A própria Ford assumiu, há três anos, que já não é uma empresa de automóveis, mas sim de mobilidade. Isto está a mudar de uma forma muito rápida e vai acabar com o formato de negócio de produzir carros para uma só pessoa.