Em 1986 abordou, em Paris, o presidente de uma das principais multinacionais dos recursos humanos, a Egor, e convenceu-o a trazer o negócio para Portugal. Seis anos depois, a casa-mãe faliu. Mas ele rodeou-se de outros colegas e comprou os 51% dos franceses. A marca permaneceu em Portugal, onde é uma das maiores do ramo. Passados 30 anos, Amândio da Fonseca, falou à VISÃO sobre o setor e as mudanças nele ocorridas ao longo de três décadas, numa entrevista de pés assentes no presente, olhando para o passado e a piscar o olho ao futuro. Passemos-lhe a palavra.
Depois de 30 anos a liderar uma das maiores empresas de recursos humanos do País, que diferenças encontra no setor ao olhar em retrospetiva para 1986 e para a realidade atual?
Na altura, o recrutamento era uma atividade pouco expressiva em Portugal. Havia uma cultura bastante paroquial: recrutava-se muito o parente, o conhecido e a “cunha”. Hoje, os candidatos são muito mais qualificados e a gestão dos recursos mais sofisticada. Houve toda uma mudança de filosofia: o País e a cultura evoluíram. As escolas fornecem hoje melhores profissionais.
Houve também uma grande influência internacional…
Sim. As multinacionais vieram e introduziram novos métodos e procedimentos, enriquecendo muito a nossa cultura em todos os setores. Portugal, um território fechado durante muitos anos, beneficiou disso. De repente, entrou tudo. O que era bom e, obviamente, o que era mau. Contudo, considero que o balanço é mais do que positivo.
O que mudou na seleção de pessoal?
A tónica da seleção de recursos humanos era dada à componente psicológica. Recorria-se ao uso intenso de testes, sobretudo testes cognitivos, para aferir as inteligências, os raciocínios, as atenções. Hoje, as empresas já não valorizam tanto as competências cognitivas. É nos chamados soft skills – a maneira como as pessoas se integram nas organizações e comunicam – que estão interessadas. Vivemos numa economia muito mais liberal, em que o culto da autonomia é maior. A capacidade de a pessoa decidir e de tomar iniciativa é mais importante.
Há também grandes diferenças nos jovens em início de carreira?
Antigamente, trabalhar num banco, por exemplo, era para a vida. As coisas alteraram-se. Não deixa de ser estranho que as pessoas, ao fim de três, quatro anos, às vezes menos, saltem do posto de trabalho. Isto é próprio desta nova geração que as mais velhas, com poder dentro da instituição, têm dificuldade em entender. As gerações têm diferenças muito significativas. A dos chamados millennials não tem nada a ver com a dos pais.
Estão, também, muito habituados à mobilidade…
Têm outras ferramentas. Hoje, quem se forma cá numa universidade, não está limitado ao nosso quadradinho. Tem toda a Europa para trabalhar. É uma filosofia de vida muito diferente. São pessoas muito preocupadas com elas próprias e querem aproveitar muito rapidamente aquilo que a vida lhes dá. Logo, os seus planos são sempre a curto prazo. As anteriores planeavam a longo prazo.
Isso não terá sido fomentado pelas atuais políticas de gestão?
As pessoas perceberam que o emprego para toda a vida acabou, quando surgiram, sobretudo, nos EUA, aquelas limpezas e reorganizações em que, de repente, mandavam 30% das pessoas para a rua. Essas políticas do lean management (gestão magra) espalharam–se por todo o mundo. Quem tinha fidelidade à empresa, percebeu que a empresa não lhe era fiel. E pensou: “Se a empresa não é fiel, porque hei de eu sê- -lo? Se a empresa não me dá segurança, eu também não tenho de lha dar.” Hoje em dia, as empresas só conseguem conservar as pessoas se as tratarem bem.
O que quer dizer com isso?
Quando antigamente um indivíduo entrava para um banco e o mandavam fazer qualquer coisa, ele fazia. Fazia e nem pensava antes de fazer. Atualmente, isso não acontece. Quem quer manter as pessoas tem de lhes dar respostas. Os jovens são extremamente curiosos: querem saber porque fazem uma coisa. Já não é como antigamente em que o chefe dizia “faz” e o subordinado o fazia sem questionar.
E é desejável que um subordinado questione as orientações do chefe?
Com certeza. Qualquer patrão ou chefe que tenha algum nível de inteligência social e capacidade de liderança percebe que corre um risco ao mandar fazer algo que as pessoas não entendam. O que há a fazer é reunir com as pessoas e dizer: “Temos este problema. Como é que o vamos resolver?” As pessoas adoram resolver problemas e têm necessidade de ser informadas.
Um jovem deve estudar aquilo que gosta, mesmo que não venha a exercer a profissão para a qual estudou?
Antigamente havia poucas oportunidades de emprego e o leque era relativamente reduzido. O filho do médico ia para Medicina, o filho do engenheiro para Engenharia. Só determinadas classes tinham acesso ao ensino superior. Quem fosse doutor tinha praticamente a vida resolvida. Acontece que depois de 1974-75 toda a gente teve acesso às universidades. E surgiram muitas gerando uma grande quantidade de licenciados, que, numa primeira fase, iam para professores. A partir de certa altura, já eram tantos que o ensino deixou de os empregar. Começou a haver um conjunto de licenciados sem empregabilidade, por não haver necessidade. Há um excesso de educação, mas sobretudo de educação mal dirigida.
Pode explicar melhor?
Toda a malta fugiu das matemáticas e foi para coisas que eram mais “fáceis”. Nas humanidades, a percentagem de desemprego é bastante elevada. Ao passo que tudo o que tem matemáticas, como as engenharias e todas as novas profissões, têm uma procura muito maior. O grande desafio é fazer escolhas em que se concilie a racionalidade, a empregabilidade e o gosto. Há muitas largas dezenas de milhares de jovens licenciados a trabalhar em áreas que nada têm a ver com a sua formação. Há cursos em que não se consegue emprego em Portugal nem lá fora. Os estudantes da área das ciências se não arranjarem emprego por cá, vão facilmente para outro país. Um licenciado em Filosofia ou Antropologia vai para França fazer o quê? Varrer as ruas ou trabalhar num bar, se tiver sorte.
Mas, estatisticamente, não temos licenciados e doutorados a mais. O problema não será a incapacidade de o mercado de trabalho absorver pessoas qualificadas em determinadas áreas?
Precisamente. Das melhores coisas que aconteceu em Portugal foi o investimento enorme na Educação. Surgiu o fenómeno dos politécnicos e avançou-se com programas para recuperar os jovens e estancar o abandono escolar. Incentivou-se a aprendizagem de ofícios com empregabilidade. O ensino profissional quase duplicou nos últimos anos. Antigamente, toda a gente queria que o filho tivesse uma licenciatura. A partir de certa altura começaram a perceber que o filho, mesmo licenciado, não se empregava. E que filho dos vizinhos, que não estudou, mas foi para eletricista ficou relativamente bem na vida.
Aconselharia os jovens a direcionarem os estudos para as matemáticas?
Qualquer curso tem emprego. Mas em alguns é preciso ser-se muito, muito bom, quando um engenheiro, mesmo que apenas razoável, se encaixa – cá ou no estrangeiro. Os alemães, os ingleses e outros vêm cá roubar os informáticos. O nosso ensino superior é excelente. É um paradoxo: formamos indivíduos muito bons em diversas áreas, mas não temos meios para os aproveitar.
Qual o impacto do trabalho temporário no mercado de trabalho em geral?
É grande. Uma das razões é a de a economia ser algo instável. Uma empresa tem hoje uma encomenda muito grande para exportação. Passados dois meses, há um soluço, e já não tem encomenda nenhuma. As empresas perceberam que tinham um grande número de empregados e não os conseguiam despedir quando necessitavam. Então, faziam (e continuam a fazer) despedimentos coletivos.
O trabalho temporário é uma ferramenta para as empresas adequarem a mão de obra aos picos de trabalho. Como são contratos de curta duração, se houver uma oscilação podem ajustar permanentemente às encomendas. Mas há empresas que abusam, não tenhamos ilusões. Habituaram-se a essa coisa do trabalhador temporário.
E, muito por causa desse abuso, o trabalho temporário está a tornar-se uma prática generalizada…
Atualmente, assistimos a um fenómeno em que os empregados fixos se limitam a quadros superiores e a alguns técnicos. As grandes empresas internacionais em Portugal recebem instruções para não mexerem no headcount [número de trabalhadores numa determinada equipa ou empresa]. Então, recorrem ao outsourcing e ao trabalho temporário.
Concorda quando as associações patronais dizem que o decreto de combate às formas modernas de trabalho forçado empurra as empresas de trabalho temporário para a clandestinidade?
Como declaração de interesses, devo dizer-lhe que sou presidente da Assembleia Geral da Associação Portuguesa das Empresas do Setor Privado de Emprego. Como tal, acompanho as suas posições e preocupações com a designação falaciosa e mentirosa do diploma. Os trabalhadores temporários não são forçados a trabalhar. Hoje, um trabalhador temporário tem as mesmas regalias que qualquer outro. Simplesmente tem um contrato condicionado no tempo. Essa é a diferença. A designação pode matar o decreto pelo ridículo. O cidadão comum sabe que o trabalho temporário não é um trabalho forçado.
A Egor não distribuiu, nestes 30 anos, dividendos aos acionistas…
Somos poucos acionistas. A empresa nasceu e foi crescendo. E para crescer precisava de meios. Sendo nós [desde 1992] uma empresa 100% portuguesa, que não pertence a nenhum banco nem a qualquer grupo económico, vivemos e crescemos graças às nossas economias. E essas são os dividendos que de ano para ano transitam para investimento. Nós pagamos ao dia 28 ou 29 de cada mês e os clientes só nos pagam dois meses depois, na melhor das hipóteses. Este negócio implica uma ginástica financeira enorme. Recorremos aos bancos que acreditam em nós e praticamos uma gestão financeira bastante fina.
Simplificando, têm um pé de meia…
Trabalhamos com capitais próprios. Ao não distribuirmos dividendos, aumentamos os capitais próprios. O dinheiro não sai. Fica cá. Outra parte está ainda na mão dos clientes. Se não pagar exatamente no dia 30, no seguinte, tenho 4 000 pessoas a bater-me à porta. E isso nunca aconteceu em 30 anos.
Também pensa que houve um recurso excessivo à banca por parte das empresas?
Em Portugal, certas culturas relacionadas com o investimento não são as melhores práticas. Durante muitos anos, as empresas habituaram-se à subsidiodependência. E o hábito de meter o dinheiro dos outros manteve-se, mesmo quando acabaram os subsídios. Uma das razões dos problemas da banca é o endividamento enorme. As pessoas investiram, mas com dinheiro que não era delas. Pediram ao banco. Como muitos faliram e não pagaram, os bancos ficaram em apuros. Nós investimos e não temos dívidas à banca. Temos empréstimos apenas para acorrer a necessidades de tesouraria, por termos de pagar salários, quando o cliente só nos paga a 60 ou mais.
Não distribuir dividendos não vai contra as práticas do modelo capitalista? Quer dizer, uma empresa existe para gerar dividendos ao acionista.
Isso é redutor. Uma empresa não deve servir só para dar dinheiro ao investidor. Tem de gerar riqueza e distribuí-la por todas as pessoas. A principal responsabilidade de uma empresa é a social. Mas essa responsabilidade social deve remunerar também os investidores, que arriscam o seu dinheiro. Eu, por exemplo, sou remunerado. Tenho um salário e alguns benefícios. Não trabalho de borla.
Essa consciência da responsabilidade social é generalizada?
A grande maioria dos empresários tem essa consciência. Os que pensam de outra maneira, provavelmente, já foram pela borda fora. O empresário ganancioso não tem futuro. Já não tem espaço. Tem as vistas curtas, logo tem curta duração.