Não bastava o susto e parte da casa (de infância) que demorou quatro anos a reconstruir, as chamas também tinham de levar a profissão de Marcos Silva. Músico e dono de um bar, é na topografia que Marcos ganha a vida. Ou ganhava… antes de a estação que lhe servia de sustento ter sido consumida pelas chamas. Mas já lá vamos.
Marcos recebeu-nos logo a seguir de o perito lá ter passado. Tinha vindo avaliar os estragos na casa onde Marcos vive desde os cinco anos. “Na altura, era alugada. Mas em 2008 comprei-a e reconstruí-a. Plantei a árvore das patacas e todos os frutos que dava, punha-os aqui. Em duas horas foi ao ar. Nunca pensei que pudesse haver uma coisa assim, aqui.”
A casa de Marcos fica na Pena, freguesia de Santa Luzia, a dois passos do centro do Funchal. Olhando para cima, vê-se o vale e as montanhas, “lá longe”, como se diz na Madeira. Nunca pensou que as chamas varressem a sua rua – nem quando a cunhada ligou a dizer que tinha ouvido que o fogo (que nunca desce da serra) estava a chegar à Pena. Nunca pensou, nem quando Zé, padrasto (e vizinho) de Marcos, lhe bateu à porta a perguntar se estariam seguros. Ao segundo alerta, Marcos e Cristina, sua mulher, mergulharam nas redes sociais, mas nada indicava perigo ou fazia prever que desta vez, a natureza descesse tão baixo. Marcos saiu de casa para fumar um cigarro no jardim. Cristina, dentro de casa, brincava com a filha, de 18 meses. Olhou para a rua. Estava “serena”. Mas do outro lado da estrada… ficou preocupada com o olhar do vizinho, virado para a serra. Podia não ser nada. E continuou a brincar com a criança. A seguir, foi outro vizinho, que começou a tirar sacos e cobertores de casa. “Deve ser para ajudar alguém”, justificou Marcos, continuando a pensar que o fogo pudesse mesmo descer à Pena.
“Cinco minutos depois, bate-nos à porta uma senhora com um bebé cheio de tosse.” Pedia boleia até ao carro, estacionado um bom bocado mais abaixo. Marcos pegou na chave, descontraidamente, não sem avisar Cristina que ia “lá abaixo” deixar a senhora. Já voltava. Era o voltavas! “Dois minutos depois ele liga a dizer: ‘fecha a casa e pega na miúda. Temos de sair de casa”, recorda Cristina. “Mas… o que levo?!” Pediatra e mãe, pegou no biberão e na lata de leite da filha, no saco e na carteira, e, por fim, molhou um pano para pôr na cara da miúda. Enquanto isto, Marcos tentava subir a rua, contra a força das gentes que só queriam descer. Percebeu a gravidade da situação quando viu um amigo a descer com o contrabaixo. Não parava de pensar: “saí para ajudar e não consigo sequer ir buscar a miúda! Foram cinco minutos que pareceram horas.”
Conseguiu. Mariana e Cristina entraram no carro no meio de uma chuva de faúlhas. Marcos saiu da viatura e disse a Cristina: “Vai, eu fico a molhar a casa e depois vou lá ter de mota”. A mulher implorou-lhe que não ficasse, que as acompanhasse até à casa dos seus pais. Marcos viu o pânico na cara da mulher e percebeu que tinha de as levar. Voltou para o lugar do condutor e levou-as ao Estreito. Mas seguiu para casa de um amigo, em Santo António.
A TV estava acesa. Passavam imagens dos incêndios. E foi aí que Marcos teve o primeiro embate com a realidade. Fraquejou, caiu, chorou, para logo se restabelecer e levantar. Enfiou “um penico” na cabeça, pegou na mota do amigo e seguiu viagem. Só pensava em regressar a casa. Queria molhá-la, salvá-la. Tinha lá 33 anos de vida…
Mas uma desgraça nunca vem só. E a caminho, “uma coisa no olho” obrigou-o a desviar para o hospital. Uma faúlha tinha-lhe queimado a córnea, mas não desistia. Chamou o amigo e foram de carro até à Pena.
Zé, seu padrasto e vizinho, já tinha passado lá por casa. Lembrara-se das bilhas de gás guardadas nas traseiras. Quando chegou, o deck estava a arder. Foi à torneira do jardim… e nada. Nem uma pinga. Foi à boca de incêndio, do outro lado do muro, e nada. Seca. Usou leite para apagar as chamas. Não chegou. Despejou-lhe a terra dos vasos em cima.
A água estava a ser usada mais abaixo, onde estavam os bombeiros vindos de Santa Cruz, perto do aeroporto. Combatiam outra frente, a uns míseros 100 metros. Não subiram. Nunca subiram, aliás. Zé apagou o lume do deck, tirou as bilhas para a rua e fugiu.
Quando Marcos chegou, já Zé estava longe. O deck, parcialmente ardido, não era o pior. Mau era o poste que entretanto caíra sobre o telheiro e incendiara a lavandaria… e depois a cozinha, aberta para a sala.
Nas torneiras, já corria água. Marcos tentou salvar o que pôde. “Aquilo ardeu ainda umas duas horas”. Passou lá a noite, com um, outro, um grupo de amigos, que apareceram para ajudar. Dali, via-se bem o fogo que consumia os becos da Pena. Às seis da manhã, um repórter da rádio fez dali um direto, via telemóvel. Com Cristina e Mariana a salvo, Marcos não voltou a abandonar a sua casa.
Não quis abandonar as paredes nem as recordações. “Joguei andebol durante 21 anos e tinha ali [numa estante, na lavandaria] tudo o que tinha da seleção. Não posso mostrar nada [as medalhas, os troféus] aos meus filhos.”
Olha para o lugar onde se erguia o poste que caiu sobre o telheiro e lêem-se-lhe os pensamentos… mas diz que não é tempo de “culpar ninguém nem entrar no ‘seu eu tivesse ficado…’ Não tenho a máquina do tempo do Back to the Future. Agora é olhar para a frente”. Entre “momentos em que rimos e momentos de choro – é o processo do luto”, Cristina e Marcos só pensam em limpar o negrume da casa e continuar. A veia musical de Marcos vem ao de cima e, suspirando, diz recorrer ao Life must go on…