Escritor (oito livros publicados, um romance a caminho), cronista, viajante profissional, pai de três filhos, marido da cantora e fadista Cristina Branco… Tiago Salazar dizia-se, o ano passado, um “exilado fiscal”. Por razões fiscais, perigo de insolvência e dívidas incomportáveis, teve de ir viver com a família para Amesterdão. Hoje vive entre lá e cá: arranjou um trabalho sazonal – entre Maio a Outubro – a conduzir um tuk tuk da frota de um amigo.
Claro que é um trabalho de sobrevivência, mas Tiago é um optimista. Diz-se um “moto-turista acidental” Junta o útil (a trabalhar das 9 às 21h leva cerca de 100 euros diários para casa, “sai-me do pelo” – por uma hora leva 20 euros por pessoa) ao agradável: “adoro conduzir e, afinal de contas, esta também é uma forma de viajar por Lisboa, cidade única no mundo”, diz quem já andou por mais de cem países.
Já lhe aconteceram coisas incríveis desde ser assaltado de catana no Zimbabwe ou terem-lhe encostado uma arma à cabeça em Moscovo. Por isso, os pequenos ódios dos outros condutores, dos polícias e dos taxistas não o atormentam. “Felizmente ainda temos a Uber como escudo protector”, brinca.
Já conhece os turistas, já lhes antecipa os pedidos: “Os brasileiros são os ‘calimeros’ do turismo em Portugal, passam o tempo a queixar-se e a lamuriar-se da falta de dinheiro e depois estão alojados no Ritz”; os indianos, tailandeses e paquistaneses acham que isto é Marrocos, que podem regatear o preço, e tenho de lhes explicar que isto é uma actividade com tabelas e alvarás”; “os franceses querem embrenhar-se nos bairros porque vêm em prospecção imobiliária para comprar casa”; “os argentinos são muito cultos, discutimos Borges e Pessoa, durante os trajetos”. É disto que mais gosta: passear por Lisboa enquanto fala de literatura. Ou mesmo de política: ” o Largo do Carmo é o local mais exortado nos meus passeios”.
“Lisboa não é uma cidade qualquer”, não se cansa de avisar, ele, que já andou pelos quatros cantos do mundo.
No seu tuk tuk apanha de tudo: desde a avó que passeia com os netos, ao «emigrante da Suíça que usa cada palavrão que nem num dicionário de calão consigo identificá-lo”, ou, como noutro dia, o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Singapura ou o Embaixador Francês em Madrid.
Também ficou a conhecer as personagens de Lisboa: os maluquinhos, a senhora que vende poemas a um euro, os carteiristas do elétrico 28, os alfarrabistas…
Para muitos clientes, o tuk tuk é um confessionário, conta. Já ouviu histórias que gostava de colocar em crónicas… Como a vez em que duas lésbicas francesas o tentaram assediar para um hotel, o homem com uma amante que era perseguido por uma terceira mulher; o francês que despertou na morgue, já dado como morto, e lhe exibiu uma cicatriz no peito, de cima abaixo.
Também já domina a gíria dos ‘tuk tukers’: chamam ” patos” aos turistas, falam em “dropinar”, como no surf (há muitos condutores surfistas), quando algum deles os ultrapassa para roubar clientes… “Mas eu sinto que esta profissão pode ter alguma dignidade, porque faço também de guia qualificado, passeio com eles pelas ruas, falo-lhes de história e cultura…”
Às vezes irrita-se. “Só querem que os leve aos sítios dos rebanhos de turistas? É uma pena. Lisboa ainda é uma cidade desconhecida, única no mundo, onde ainda se podem fazer descobertas incríveis”. Atravessar a ponte é uma experiência radical. Os ventos e os tremores fazem do percurso, conta, uma emoção como num parque de diversões. Ir a Sinta leva um dia inteiro – só se pode ir por estradas secundárias: nem auto-estradas nem vias rápidas.
Como já fez programas de televisão, às vezes é reconhecido. “Pensam que estou a gravar um documentário». “Conduzo tuk tuk porque preciso, não há mal nenhum nisso, e, de certa forma também tem a ver com a minha profissão de viajante e desencanta-se um manancial de histórias para um escritor”. Além disso, conta, são carros “muito loucos de conduzir”, “bons de curtir”. Pena a “má onda” das buzinadelas, das tangentes dos auto-carros e taxistas (“julgo que até fazem de propósito, devem ter inveja por no fundo isto até ser um trabalho porreiro, em que se é razoavelmnete bem pago”), e do linguanjar dos polícias que passam a vida a persegui-lo. E são grosseiros, refere. “Ó doutor”, gritou-lhe um polícia, “então é aí que para a carroça?”. Perante os estrangeiros, Tiago sente um embaraço alheio como português, por estes maus modos. Mas refere que “quem sofre mais são as mulheres condutoras de tuk tuk: o sexismo dos taxistas é mesmo abominável”.