No dia em que ia ser julgada pela juíza e logo de seguida fuzilada pelo pelotão de jornalistas que já estava de câmaras montadas em tripés e microfones em riste, apontados para a entrada do tribunal, Joaquina Gonçalves, 85 anos, entrou discreta pela porta das traseiras, meia hora antes do início da sessão.
A contrastar com a ligeireza de mãos de que vinha acusada e pela qual ia ser julgada, Quina, a carteirista de Ermesinde, como ficou conhecida, caminhava em passo arrastado escondendo o rosto coberto de rugas bem vincadas por baixo de um cachecol preto e felpudo. Desta vez, o panamá azul que costuma trazer na cabeça e com o qual já apareceu em fotografias de jornais trazia-o na carteira. A indumentária que usa, principalmente as roupas quentes, desadequadas aos dias de calor, fazem soar à distância o alarme dos agentes à civil da Divisão de Investigação Criminal da PSP. “Ela traz sempre um casaco dobrado sobre o braço esquerdo para encobrir a bolsa da vítima e também a sua mão direita, com que saca a carteira”, assegura em depoimento um dos agentes que a deteve. “A Dona Joaquina é já uma nossa conhecida de há dois ou três anos. Assim que a vimos ficamos atentos a observá-la. No momento do flagrante”, prossegue o agente, “estava tão perto dela que quase ouvi o fecho éclair da bolsa da vítima a abrir”.
Foi assim que Quina se voltou a tramar, pelo segundo ano consecutivo, no cortejo da Queima das Fitas do Porto. Mas desta vez a queimadela foi mais grave porque a vítima apresentou queixa, ao contrário do que sucedera no ano anterior, em que a lesada, atendendo à idade avançada da detida, decidiu não o fazer. A vítima, Emília Vaz, que admitiu não se ter apercebido do furto e nunca ter visto Quina até esse momento em que se cruzaram na sessão do julgamento, queixava-se do desaparecimento de uma carteira que continha 25 euros, um terço sagrado, dois santinhos, um porta-chaves de cor azul de motivos religiosos, uma mão de prata em forma de figa e uma cabeça de alho.
Enquanto ouvia o depoimento dos agentes, Quina abanava a cabeça em sinal de desacordo. Não, ela nunca fizera tal coisa. “Senhora doutora, eu não tirei nada. Ia a passar a caminho da estação de São Bento e dei um pontapé numa coisinha, até pensei que era um telemóvel”. E depois de verificar que era uma carteira o que ia fazer? “Não ficava com aquilo. Ia entregar a um agente quando o visse”. E não se lembrou de perguntar às pessoas que por ali estavam? “Ó senhora doutora, estava lá tanta gente! Ia perguntar a este e aquele?”
O registo criminal de Joaquina Gonçalves não abona a favor da tese da Defesa. Em 2002 foi condenada pelo crime de maus tratos ou sobrecarga de menores a uma pena suspensa de dois anos. Um ano mais tarde o tribunal de Tomar condenou-a por furto de uma carteira a uma multa de 120 dias, o mesmo crime pelo qual viria também a ser condenada, em 2012, pelo tribunal de Barcelos. Agora, e “por considerar provados os factos” e por a ré “não ter mostrado arrependimento”, a Procuradora do Ministério Público entende que “uma pena de prisão com pena suspensa seria adequada”. O advogado de Defesa considera que “há matéria para criar um pouco de dúvida nos depoimentos dos dois agentes”.
Natural de uma pequena freguesia de Fafe, Joaquina Gonçalves não sabe ler nem escrever porque, diz, os pais a puseram “a guardar ovelhas muito cedo”. Hoje vive com uma reforma de 300 euros e dois netos num pequeno apartamento em Ermesinde, terra onde toda a gente a conhece, mesmo antes de ter começado a aparecer nas televisões e nas capas de jornais. Dos seis filhos que teve, antes de ser abandonada pelo marido, só restam três. Nenhum deles, nem os netos, assistiu ao julgamento. Na sala de tribunal, Joaquina Gonçalves era uma mulher só. No final da audiência, e em sua defesa, insistiu na inocência: “Que Deus me mate, que me pare a pilha do coração. O que aqui estiveram a dizer é tudo mentira”.
A leitura da sentença ficou marcada para dia 25. À saída Joaquina Gonçalves não quis falar com jornalistas mas, um dos repórteres do pelotão correu atrás dela enfiando-lhe o microfone quase pela goela abaixo. Quina afastou-o a custo e seguiu rua acima a protestar. Mas sem fugir, como garantiu à juíza. “Eu não fujo, senhora juíza. Eu não fujo”.