MAIS SOBRE ESTE TEMA
João fuma sempre um charro a seguir ao almoço e outro depois de jantar, há vários anos. “Se não fumar, ando stressado, maldisposto. A ganza acalma-me. Fico mais atento, concentrado, com apetite. A minha mulher toma comprimidos para dormir, que têm mais químicos e efeitos secundários. Eu caio na cama e durmo. Fora ficar com os olhos vermelhos, e o próprio fumo do tabaco, que toda a gente sabe que é mau para a saúde, não vejo nada de mal no que faço.”
Um dos maiores temores de quem se opõe à legalização das drogas leves é de que estas sirvam de porta de entrada para substâncias perigosas, como a heroína e cocaína. Mas, para João Santa Maria, ?44 anos, mediador da associação GAT (Grupo de Ativistas em Tratamentos), a canábis é – foi – uma porta de saída. Viciado em heroína e cocaína durante 12 anos, dos 18 aos 30, largou o vício sem passar pela metadona. “Quando fumava canábis, não tinha vontade de consumir heroína. Aliás, alguns programas no Canadá usam-na como substituição. Não é a canábis que leva à heroína. É a curiosidade.”
Ainda hoje, a mãe de João continua a dizer-lhe que preferia que ele bebesse do que fumasse drogas leves. “E ela teve um irmão que morreu por causa do álcool: estava bêbado e caiu numa fogueira. O álcool é das drogas mais perigosas. Tanto ou mais do que a heroína e a cocaína, e péssima para o fígado. Nem sequer a considero uma droga social. Uma pessoa alcoolizada pode tornar-se agressiva. Fica tudo menos social.”
As palavras da ministra da Justiça, que o surpreenderam por virem de alguém de direita, podem ser um novo ponto de partida para uma velha discussão. “A proibição faz com que seja ainda mais consumida. As pessoas não vão lá com castigos. Não havendo droga ilegal, não há crimes associados ao tráfico. Se fosse legalizada, podia controlar-se a qualidade e o Estado ainda ganhava dinheiro através dos impostos.”
A sua mulher, Maria João, raramente fuma. “Diz que não gosta da sensação.” Mas o casal teve de tomar uma decisão com o filho de ambos, quando ele chegou à perigosa fase da adolescência. “Eu via os andamentos lá na rua e um dia disse-lhe: ‘Quando quiseres, quando chegar esse dia, vens ter comigo.’ Não queria que ele se metesse em coisas menos boas.” O dia chegou e o rapaz, que tem 16 anos, foi ter com o pai. “Às vezes, fumamos juntos. Mas ele sabe que cocaína e heroína não são para tocar. Nunca lhe escondi a minha história e faço tudo para que ele nunca siga o meu exemplo. Mas, quanto à canábis, não posso pintar um cenário que não existe.”
Sofia (nome fictício) fuma duas ganzas por dia: uma de manhã, outra à noite. “Relaxa-me. Prefiro isso a tomar medicamentos para a ansiedade e para as dores nas articulações.” A administrativa, de 47 anos, tem o mesmo ritual há mais de três anos. Há dois, uma amiga com cancro da mama (que se revelaria fatal, meses mais tarde) pediu-lhe ajuda para combater as dores e as náuseas provocadas pelos tratamentos do cancro da mama. “Ela pedia-me para comprar e fumávamos juntas.”
A canábis é prescrita em vários países para tratar certas doenças e aliviar vários sintomas, desde dores musculares e falta de apetite a efeitos secundários da quimioterapia. Portugal, apesar de ter uma política de drogas que já foi considerada progressista, não é um deles. Mas este pormenor não impede milhares de pessoas de procurarem, no mercado negro, o que não lhes é permitido comprar legalmente. “São decisões pessoais. A canábis tem um caráter medicinal, mas o Estado gosta de se imiscuir na nossa vida”, acusa Sofia. O mais ridículo da situação, conta, é acabar por comprar marijuana aos amigos da filha, de 18 anos, para não ter de se meter “naqueles bairros”.
Mesmo fora da esfera terapêutica, custa-lhe que haja discriminação em relação à canábis. “Há quem beba café ou um copo de tinto e há quem fume uma ganza. Qual é a diferença? Tudo é droga.”