A um referendo interno na classe médica, prefere uma alteração no respetivo Código Deontológico, tornando-o neutro quanto à morte clinicamente assistida, o que remete a decisão para a consciência individual de cada um. Mas defende há anos um referendo nacional sobre a eutanásia, “a única maneira de a evolução legislativa pretendida – a despenalização – ter legitimidade democrática” e ganhar “estabilidade”. E se a liberalização vingar, é crucial que a lei seja “robusta”, para evitar desvios que já estão a ocorrer em países que legalizaram a eutanásia. Rui Nunes, 54 anos, que sabe como poucos do que fala, refere-se à “eutanásia involuntária de crianças e pessoas com competência diminuída”.
Se o Testamento Vital beneficiar de uma grande campanha de informação pública e se verificar, como resultado, uma adesão maciça ao seu recurso, isso dispensa e substitui, na sua opinião, o debate em curso sobre a despenalização da morte medicamente assistida/eutanásia?
Não, não dispensa. O Testamento Vital é uma diretiva antecipada de vontade através da qual uma pessoa, estando capaz e consciente, toma decisões sobre tratamentos que deseja ou não receber quando estiver inconsciente. Trata-se de uma forma de consentimento diferido no tempo, mediante o qual uma pessoa toma uma decisão por e para si própria em matéria de cuidados de saúde. Não está portanto em causa com o Testamento Vital – que pretende evitar a distanásia ou obstinação terapêutica – a prática da eutanásia se esta for considerada como um pedido reiterado e consistente de um doente que se encontra em sofrimento profundo e inultrapassável pelos métodos terapêuticos existentes, incluindo os cuidados paliativos. O Testamento Vital visa essencialmente evitar a aplicação de meios desproporcionados e fúteis de tratamento, e com a eutanásia pretende-se tirar diretamente a vida de alguém a seu pedido.
Condena as equipas de médicos e enfermeiros que já hoje, em hospitais do Serviço Nacional de Saúde e em unidades hospitalares privadas, praticam a morte clinicamente assistida em doentes terminais sob sofrimento intenso e inútil, quando esse ato concretiza a vontade dos pacientes, previamente ponderada e debatida, incluindo com os familiares mais próximos?
Não tenho qualquer informação credível de que esta prática exista em Portugal, dado que os casos retratados são confusos e incluem um conjunto de procedimentos que nada têm a ver com o conceito de eutanásia, de acordo com o consenso internacional na matéria. Em todo o caso penso que existem dois planos diferentes. Qualquer cidadão num Estado de Direito tem o dever de cumprir a lei e de contribuir para que esta seja cumprida. Na atualidade a eutanásia é um crime – homicídio a pedido da vítima –, pelo que aqueles que defendem a sua liberalização devem recorrer a métodos democráticos para alterar a lei. Mas, obviamente, não condeno ninguém por praticar um ato de acordo com a sua consciência pessoal.
Na sua perceção, a nossa classe médica está assim tão dividida sobre o tema que precisa, como já propôs o bastonário José Manuel Silva, de o referendar internamente?
Apesar de o Código Deontológico o proibir expressamente, muitos médicos são favoráveis à eutanásia. Mas penso que os médicos deviam, tanto quanto possível, abster-se desta prática e permitir que outros profissionais ou mesmo voluntários o fizessem. Tal como acontece, aliás, na Suíça. Em todo o caso tenho reservas sobre o referendo aos médicos. Pessoalmente, seria mais favorável a uma alteração pontual ao Código Deontológico. O Código passava a ficar neutro nesta matéria, remetendo estas decisões para o domínio da consciência individual.
Considera, já agora, que este tema deve ser alvo de uma decisão política no Parlamento, ou submetido a referendo nacional?
Defendo há largos anos um referendo nacional sobre a eutanásia, por dois motivos diferentes. Por um lado, porque é a única maneira de a evolução legislativa pretendida – a despenalização da eutanásia – ter legitimidade democrática. Trata-se de um tema fraturante, que divide os portugueses, que não foi submetido a escrutínio popular em qualquer ato eleitoral, pelo que o elementar bom senso determina que os portugueses devem poder pronunciar-se sobre a matéria. Por outro lado, só o referendo permite estabilidade legislativa. Ou seja, o pior que podia acontecer era aprovar já, apressadamente, uma lei que viesse a ser revertida numa próxima maioria parlamentar. Além do mais temos em Portugal o exemplo do referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária de gravidez, que se traduziu numa evolução consistente e hoje quase inquestionável.
Que vantagens e perigos acarretaria uma lei que despenalizasse a morte medicamente assistida?
A vantagem, para quem a defende, seria seguramente afirmar o princípio da dignidade da pessoa, e do exercício da liberdade de autodeterminação. Ou seja, dar um controlo total à pessoa doente na fase terminal da vida e assim aliviar o sofrimento que na sua perspetiva é totalmente intolerável. Não apenas em doentes terminais mas, também, e entre outros, em pacientes com patologias neurológicas degenerativas de longa duração ou pessoas com paralisia total dos membros. Os perigos, que devem ser apreciados com cuidado, devem-se especialmente à possibilidade de a eutanásia voluntária resvalar para práticas de eutanásia involuntária, nomeadamente de crianças e de pessoas com competência diminuída. Por isso, se Portugal despenalizar a eutanásia, a lei terá de ser suficientemente robusta para impedir este tipo de desvio que, infelizmente, está a ocorrer nos países que já legalizaram a eutanásia.
Parece-lhe urgente uma decisão política sobre o assunto?
Não. Impõe-se um debate profundo na sociedade para que os portugueses sejam cabalmente esclarecidos sobre o que é de facto a eutanásia, as suas consequências e o seu impacto. Por exemplo, considero essencial que se esclareçam as diferenças entre eutanásia, distanásia, ortotanásia, suspensão de meios desproporcionados de tratamento, ordens de não reanimar, sedação paliativa, entre muitos outros conceitos e práticas que são frequentemente confundidos, como aliás se tem apreciado em diferentes intervenções no domínio público, até de prestigiados profissionais de saúde. Por isso, qualquer emergência legislativa nesta matéria será manifestamente contraproducente.