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Quando entramos no quarto da alemã Charlene, demasiado franzina para os seus 27 anos, não tiramos os olhos das mãos de Tina, a sua cuidadora na clínica Cegonha Retreat. Porque é impossível não sentir conforto na forma como ambas se amparam naquele aperto de dedos. Charlene só chegou há quatro dias. Está muito fraca. A sua pele é baça, as maçãs do rosto salientes, aquece-se com uma mantinha sobre as pernas, apesar dos vinte graus que se sentem no Alvor. O quarto está na penumbra, a televisão ligada para ninguém. Há um livro para pintar em cima da mesa, ao lado de canetas coloridas. Diz que também ouve música e aprende português. E descobrimos restos do que parece ser iogurte dentro de uma caneca, pousada ao lado do sofá onde está sentada, numa pose encolhida.
Mas sobre isso não quer falar. Nem tirar fotografias, como se compreende.
Olhamos para Charlene e não conseguimos deixar de pensar na aspirante a atriz Rachael Farrokh, que neste momento está em casa, em San Clemente, na Califórnia. Porque este foi o lugar que escolheu para se curar de uma gravíssima anorexia nervosa. O retiro internacional, escondido por trás de uma clínica Maló, no Alvor, é gerido pela psicóloga canadiana Peggy Claude-Pierre. Tem 69 anos e, apesar de desconhecida dos portugueses, é apelidada de “anjo” do outro lado do Atlântico, por personalidades como Oprah Winfrey. Assim que googlamos o seu nome, também encontramos quem lhe queira tirar a aureola. Em 2000, fechou a clínica The Montreux, que geria em Victoria, no Canadá, depois de algumas polémicas em torno dos seus métodos, desenvolvidos quando as suas duas filhas a atiraram para o tortuoso caminho da anorexia nervosa, há quase 30 anos.
As filhas hoje estão bem (trabalham consigo no Algarve), mas a batalha chegou a parecer perdida.
Talvez por isso, a primeira frase que debita para o gravador, ainda antes de haver tempo para perguntas, seja esta: “As perturbações de comportamento alimentar são as que mais matam dentro das doenças mentais. Nos EUA, morre uma pessoa a cada 62 minutos.” Por cá, a mortalidade situa-se nos 5,6 por cento.
VISITAS QUE PERTURBAM
A anorexia voltou às “gordas” dos jornais portugueses. Primeiro por causa das notícias acerca da norte-americana que veio ao Algarve tratar-se. Logo de seguida, Júlia Pinheiro, em direto, no seu Queridas Manhãs, na SIC, fez saber que uma das suas filhas gémeas, de 22 anos, estava internada no serviço de psiquiatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, para tratar este problema que já tinha afetado também a outra irmã. “Há cerca de 10 anos, na minha vida e na minha família, entrou uma doença difícil. E tem sido um combate desigual. Quem vive ou viveu isto sabe que nos leva a tranquilidade, a paz de espírito, a capacidade de conviver com os outros.” Tentámos saber de que forma se lida com a anorexia naquele internamento, mas o timming não foi o melhor. “Estamos no rescaldo de um incêndio, em instalações provisórias. Por outro lado, há uma pessoa internada que é filha de uma figura pública e não desejo que o seu espaço seja invadido”, respondeu-nos o diretor e psiquiatra Daniel Sampaio. Com a ajuda da especialista Dulce Bouça, que durante anos trabalhou nesse serviço, ficamos a saber que, logo na primeira semana, a equipa médica reúne com a família e que esses encontros se repetem com frequência. “Há um doente para tratar, mas depois de se perceber o problema, toda a gente tem de mudar alguma coisa para evitar recaídas”, explica a psiquiatra, que agora dá consultas privadas.
Assim que uma anorética (90% são mulheres, 40% delas adolescentes) chega ao internamento do Hospital Santa Maria (e não será muito diferente no Amadora-Sintra, na Estefânia, em Lisboa, no São João, no Porto, ou no Beatriz Ângelo, em Loures) é hidratada com soro. Depois, começa a alimentação adaptada e a medicação (para a depressão e ansiedade), até a doente estar estabilizada. Os familiares só podem fazer visitas negociadas com a equipa médica.
30 MIL EUROS POR MÊS
Mas os internamentos são o último parágrafo de uma história mal contada. Como explica Dulce Bouça, “se houver um diagnóstico precoce e um tratamento adequado com uma equipa integrada de médico psiquiatra, psicólogo e dietista com a família como parceiro terapêutico, a anorexia nervosa trata-se em ambulatório”.
Quando os pais notam uma perda de peso acentuada, sem razão aparente, devem investigar o que se passa, porque esse é o principal sinal de alarme. Normalmente, começa-se por uma dieta, que se torna demasiado prolongada e dá lugar a uma obsessão e a um sem fim de outros sintomas físicos e psicológicos (ver caixa). Qual a causa para uma pessoa desenvolver anorexia nervosa é a pergunta para um milhão de euros, embora já se saiba que existe alguma predisposição genética e que há maior propensão em personalidades conformistas, disciplinadas e trabalhadoras.
Para Peggy Claude-Pierre, ter uma mente negativa está na base dos distúrbios alimentares.
Chegou a essa conclusão depois anos de trabalho, ouvindo sempre a mesma história. “São as pessoas mais maravilhosas que conheço: filhos que se sentem culpados por fazerem os pais passarem por esta situação, criada apenas porque gostam mais dos outros do que de si próprios e não se apercebem do que estão a fazer.” Apesar da fraqueza evidente, Charlene assegura, depois de ter estado 16 vezes internada, que o Cegonha Retreat funciona de maneira diferente. “Aqui sinto que vou conseguir. Não é tudo acerca do peso nem de castigos as pessoas realmente percebem o que me vai na mente, nem tenho de explicar. Nunca tive tanto apoio.” Por uma média de 30 mil euros por mês, os pacientes são acompanhados durante 24 horas. “Assim que se sentem seguros, sabemos que vão alimentar-se. Às vezes, enquanto lhes damos comida, choram. Mas vamos dizendo que está tudo bem, numa voz compreensiva. Fazemos questão de lhes mostrar o quão especiais são”, explica Peggy, sempre serena. Comem seis vezes por dia.
Pequenas porções, para não ser assustador. “Enquanto comem, falamos-lhes de pássaros ou de outra coisa que os distraia. A seguir, já sabemos, vão sentir-se culpados. É um processo difícil e temos de contratar pessoas que estejam mesmo comprometidas com princípios humanitários.” A croata Lara ainda não tem 14 anos. É alta e esguia. Veste-se como as outras meninas da sua idade, de calças de ganga justas, casaco e ténis, com o telemóvel enfiado no bolso traseiro. Tem um discurso demasiado articulado para o cartão de identidade. Imaginamos que seja por estar internada há mais de um ano no Cegonha Retreat e não ter uma vida dita ‘normal’, junto de amigos e familiares. A enfermeira Rita Fernandes, 26 anos, não a larga (até de noite há alguém ao pé de Lara, acordado), mas a sua presença não é sentida como desagradável. “Aqui dão-me muito amor e carinho, ajudaram-me, mudaram-me o pensamento, discutindo os meus problemas e transformando-os em algo positivo”, explica, em inglês, embora já perceba português. Para manter a cabeça ocupada, estuda à distância, passeia o cão, vê televisão, lê e faz trabalhos manuais. Já pode sair, mas não vai longe nem à praia, a cinco minutos. Prefere ficar na proteção da piscina, envolvida pelo pinhal das traseiras da casa. Não sabe quanto peso ganhou. Hoje, à espera de alta, sente-se livre, relaxada, confortável. “Deixei de estar encurralada pela minha mente.” O discurso desta adolescente está afinado com a filosofia desenvolvida por Peggy, quando diz que a mente negativa “se torna mais poderosa do que eles, enviando mensagens a toda a hora: ‘Vai à casa de banho e vomita enquanto o autoclismo está a descarregar’, ou ‘bebe muita água, porque assim quando te pesarem não vão dar por isso’.” Rita Fernandes é enfermeira e líder da equipa que se ocupa de Lara desde o dia em que a adolescente entrou no Cegonha Retreat. “Tentamos que nunca lhe falte nada, com amor incondicional e respeito. Nenhuma destas doentes procurou esta condição. Não comem para serem o mais pequenas possíveis e equipararem a parte física ao seu estado psicológico.” Rita sabe que têm de virar esse jogo, com muita conversa, explorando os medos que levaram a esse comportamento, sem fazer julgamentos.
RECUPERAÇÃO POR ETAPAS
No internamento pedopsiquiátrico do Hospital da Estefânia até aos 18 anos, também há acompanhamento permanente (mas não de forma personalizada), porque quem aqui entra está mesmo em perigo de vida. António Nabais, enfermeiro coordenador da área da pedopsiquiatria, tem as chaves no bolso. É com elas que abre as portas do espaço, com dez camas, onde as crianças que não conseguiram tratar-se em ambulatório estão internadas há risco real de fuga. No caso da anorexia (neste momento, há quatro pacientes) existe um protocolo clínico usado pelo hospital há 14 anos, com resultados positivos acima dos 80 por cento.
Quando ali entram, as doentes são confrontadas com as consequências da doença do ponto de vista analítico (ver caixa). Depois de se estabelecer o peso com que podem ter alta, comem (acompanhadas por um enfermeiro) e descansam. São pesadas duas vezes por semana às sete da manhã, em jejum e com a bexiga vazia. Não têm contacto com o exterior e medeia-se o acesso à família. A alimentação é personalizada, com o apoio de um dietista e de um pediatra. “Trabalha-se a perceção do corpo, durante os cuidados de higiene, com reforço positivo, e valorizando o conforto de tomarmos conta de nós”, explica António Nabais.
O programa desenrola-se por etapas. E consoante as metas atingidas, há recompensas. Começam por receber chamadas da família, depois já podem fazê-las, mais tarde ganham o direito a visitas sem mediação, a participar nas atividades terapêuticas (de musicoterapia à psicomotricidade) e até físicas. “No final do tratamento, que dura em média dois a três meses, vão um fim de semana a casa, mas não podem perder peso. Antes de saírem de vez, organiza-se um almoço no refeitório com a família, o médico, o enfermeiro e o dietista e é o doente quem serve à mesa.” A seguir a um internamento, mantêm-se as consultas, para avaliar a integração na escola e na família.
Adelaide Braga, 69 anos, fundou a Associação dos Familiares e Amigos dos Anoréticos e Bulímicos depois de, há 20 anos, ter passado por um calvário com a filha. Sabe como esta doença devasta a família e tenta ajudar outros pais.
“É uma aprendizagem constante. Mas há mensagens importantes que tentamos passar: deixar os conselhos sobre comida para os médicos, não se consumir pela culpa, dar muito carinho e estar atento às tentativas de suicídio ou mutilação.” A anorexia é muitas vezes (mal) olhada como uma doença da vontade. Mas os doentes têm uma real alteração da perceção e desistem de comer porque não conseguem. Não é para ficarem com um corpo de modelo.
O LIVRO QUE POPULARIZOU A ‘GURU’ PEGGY
Por acaso, a canadiana Savana, de 17 anos, tem uma elegância e uma beleza que lhe permitiriam pisar as passarelas. Mas nada disso importa. Só pensa em voltar a casa, pelo braço da mãe que está no Cegonha Retreat a passar uns dias até que a Peggy diga que pode levá-la para o Canadá. A doença de Savana começou aos 11 anos, depois de numa aula de ciências a professora ter pedido para levarem um exemplo de uma comida saudável e de outra prejudicial à saúde. “A partir daí ficou fixada”, conta a mãe Sandy, de 52 anos, lembrando que os dramas seguintes envolveram comida escondida, fugas de casa para fazer exercício e tentativas de suicídio.
Fizeram de tudo no Canadá e nos EUA. Foi então que a mãe leu o livro The Secret Language of Eating Disorders (Ed. Random House, 1997, não editado em Portugal), um best-seller traduzido em 17 línguas que transformou Peggy numa ‘guru’ e lhe rendeu um milhão de dólares. Sandy procurou a autora e ligou-lhe em setembro do ano passado.
Peggy falou logo com Savana. “Sentia-me muito fraca, o meu corpo estava a falhar, mas tinha medo de ficar melhor”, conta a jovem. A mãe voou logo para o Algarve: “Hoje penso que não podia ter feito melhor, mas foi horrível deixá-la.”
Savana já não tem medo da comida. Na véspera, ela, a mãe e o seu vigilante tinham ido comer sushi. Também já experimentou um buffet de massas, dentro da vivência normal de uma adolescente.
Só lhe falta a carta branca de Peggy para voltar à vida que a doença deixou em suspenso.
A mesma sorte não tem (ainda) Rachael Farrokh.
“Está muito melhor fisicamente por causa da sua determinação e coragem. E da ajuda do marido, que é um querido e também sofre muito”, revela Peggy. O médico que acompanhou a americana, e que até postou na página do Facebook Rachael’s Road to Recovery, é Miguel Duarte, cirurgião pediátrico do Hospital Particular. Uma especialidade estranha? “Faz todo o sentido. Os corpos destes pacientes são como bebés, têm de ser cuidados com muita calma. Ele é brilhante, tem tanta compaixão, não há ninguém que não o adore.” Apesar de ter ido a casa, Rachael “ainda não chegou ao final do percurso que a levará da subjetividade da sua mente para a objetividade adulta”, como nota Peggy, que há de ir ter com ela aos EUA. Depois, a americana voltará a internar-se no Alvor. Nem que para isso tenha de fazer nova campanha de crowdfunding (conseguiu 200 mil dólares, que usou em tratamentos em quatro hospitais norte-americanos). “Faremos de tudo para que seja tratada”, garante a ‘guru’ do Algarve.

Peggy Claude-Pierre – A viver em Lagos há cinco anos, a guru das doenças de comportamento alimentar está rendida ao modo de vida dos portugueses
José Caria
ENTREVISTA
‘A nossa abordagem é a última esperança’
A psicóloga canadiana trata a anorexia com vigilância 24 horas por dia, muito amor e palavras mansas para afastar ‘pensamentos negativos’
Porque decidiu abir a sua clínica em Portugal?
Fui desafiada por um médico internista que leu o meu livro (não posso dizer quem é), numa altura em que pensava instalar-me na Suíça. Nunca tinha estado em Portugal, só conhecia Espanha e pensava que era igual. Vim cá seis vezes antes de aceitar o desafio, há cinco anos.
Não tem pacientes portugueses?
As crianças que recebemos são suicidas ou têm a doença há muitos anos e já passaram por todas as instituições possíveis, em todo o mundo. Há lista de espera, porque só recebemos no máximo 10 pacientes de cada vez e nunca lhes dizemos qual o tempo limite para irem embora. Mas, de facto, nunca recebemos portugueses. E se eu adoro o modo como os portugueses tratam as crianças…
Porque fala sempre em crianças, mesmo se já não o são?
Estou a referir-me ao seu desenvolvimento emocional. Numa parte da sua mente elas continuam crianças. E são pessoas tão queridas preocupam-se com todos os outros, antes de se preocuparem consigo próprias.
O que diferencia o Cegonha Retreat?
No nosso tratamento faz-se uma equipa para cada doente e há sempre alguém por perto, que vigia, alimenta, leva para as atividades. E assim sentem-se seguros, porque a cabeça está constantemente a dizer-lhes para se suicidarem, para se queimarem no banho, para fazerem mal a si próprios… Estes pacientes já tentaram de tudo e a nossa abordagem é a última esperança.