“Não tenha medo da perfeição. Você nunca vai atingi-la.” Palavra de artista. Salvador Dalí, que também era escultor e foi imortalizado pela qualidade plástica das suas obras surrealistas, pintava quadros sem a menor preocupação estética. Num deles A Persistência da Memória (1931) há relógios que derretem e ilustram a passagem do tempo. Quase um século depois, os avanços da medicina estética e da indústria do antienvelhecimento (leia-se, luta contra a decadência biológica) ampliaram os limites do sonho e o mito da perfeição, à escala global. Os 40 são os novos 30 e os 50 os novos 40, num frenesim em contrarrelógio, apenas comparável ao dos mercados bolsistas. Cada corpo, sua cotação.
Como conseguem as estrelas do grande ecrã, Tom Cruise e Sharon Stone por exemplo, manter o seu look intemporal? Seremos, uns mais que outros, reféns da herança genética? Até que ponto dependemos de procedimentos médicos especializados para não soçobrar aos preconceitos (de género e idade, sobretudo no feminino) contra os quais se lutou tanto nas últimas décadas? Há quatro anos, a atriz Emma Thompson desabafava ao jornal britânico The Telegraph: “Não percebo porque temos uma sociedade em que todos precisam de parecer ter 30 aos 60 anos.”
Paradoxalmente, não se trata apenas de parecer mais jovem, mas de ter atributos físicos competitivos como tática de sobrevivência social e as novas gerações sabem disso: os ícones jovens exibem aos seus fãs, sem tabus, mudanças estéticas fabricadas à medida, como a popular rapper australiana Iggy Azalea: aos 25 anos, já fez implantes mamários e mudanças faciais. A imagem vale mesmo quase tudo?
O NOVO ‘NORMAL’
Investir já hoje na manutenção, porque depois talvez seja tarde demais, é uma prática que está a acontecer no final da adolescência, sem esperar pelas marcas de expressão e preservar o ‘look natural’, o que quer que isso signifique na cabeça de cada um. Segue-se o realce de atributos físicos com retoques de bisturi, quase tão banal como ir ao ginásio, seguir a dieta cientificamente comprovada ou fazer branqueamento dentário. Confirmam-no as estatísticas da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética, divulgadas este ano, com base numa amostra de 95 países. Os Estados Unidos surgem em primeiro lugar, com mais de 4 milhões de procedimentos médicos para modificar a imagem (20% do total), seguidos pelo Brasil (10,2%) e do Japão (6,2%). A procura mundial é dominada pelo sexo feminino (86,3%) e, em apenas duas décadas, os tratamentos cosméticos que envolveram cuidados médicos (com e sem bisturi) aumentaram 429% nas mulheres e 273% nos homens. Quase metade das intervenções (40,1%) dirigiu-se à faixa etária entre os 35 e os 50 anos, quando entram em cena as preocupações com a perda de gordura e eliminação da flacidez. Os liftings faciais são mais comuns após os 65 anos e o aumento mamário destaca-se em idades mais jovens (entre os 19 e os 34 anos), que encaram a ida ao cirurgião com uma naturalidade nunca vista (com 17,2% de intervenções).
O estudo comparativo espelha uma mudança de paradigma: o método clássico de ‘ir à faca’, que subiu 82%, está a ser suplantado por procedimentos menos invasivos, cuja procura aumentou 508%. Em Portugal, verificou-se uma subida evidente das intervenções de aumento mamário (ver infografia).
Francisco Ibérico Nogueira, pioneiro da especialidade de cirurgia estética no nosso país tem uma explicação: “É das cirurgias mais procuradas no mundo por ser fácil de executar e pelas próteses de última geração, muito bem toleradas e que não desenvolvem contraturas capsulares.”
O médico não estranha que as mamoplastias de aumento sejam tão desejadas logo a partir dos 18 anos: “Os inquéritos feitos a milhares de mulheres americanas revelam que depois do procedimento, e em todas as idades, o grau de satisfação com a vida sexual e pessoal aumenta imenso.” No espaço de três meses, os novos vídeos sobre as técnicas cirúrgicas disponíveis no site da sua clínica, em Lisboa, tiveram cerca de 60 mil visualizações, facto que o especialista atribui à mudança de hábitos e ao fim dos tabus. E realça, ainda, a sensatez que impera na mentalidade portuguesa. “A tendência é virem apenas uma vez, especialmente por volta dos 45 ou 50 anos, para corrigir os primeiros sinais de decadência associados ao envelhecimento.” Fazem-no por quererem “sentir-se mais confiantes e manter-se, por assim dizer, no ‘ativo’, mas sem dependências nem exageros”.
AFIRMAR O EGO
Longe vão os tempos da cirurgia com pendor quase exclusivamente reconstrutivo, sem a componente estética, que evoluiu a partir da II Guerra Mundial. “Os primeiros aumentos mamários começaram nos anos 50, com aplicação de gordura, método que voltou agora a ser usado como técnica mais fina e no intuito de melhorar a autoestima”, lembra o cirurgião plástico Tiago Baptista Fernandes, à frente do Instituto Português de Cirurgia Plástica, em Lisboa. O neto do fundador da especialidade reconstrutiva e plástica no nosso país, na década de 70, admite que os consumidores estão mais informados e conscientes. “Até podem vir por impulso, mas decidem com racionalidade.” Muitos aproveitam para fazê-lo nas férias, “para evitar perdas salariais”. A regra, sobretudo nos estratos sociais mais altos, é voltar ao trabalho o mais depressa possível e, com frequência, manter secreta a intervenção: “Tendem a justificar a ausência com a ‘remoção de um quisto’ (se fizeram uma mamografia), ou de uma ‘hérnia’ (se foi uma lipoescultura ou abdominoplastia).”
Um dos pedidos mais frequentes é o mammy makeover: mulheres que foram mães e querem livrar-se de gordura acumulada na gravidez e da queda e perda de volume dos seios, após a amamentação. “Têm trinta e poucos anos, trabalham muitas horas, dedicam-se à casa e aos filhos e sentem a concorrência desleal das que os não têm”, afirma Marta Reis, responsável pela gestão de clientes. A competição joga-se nos media: “Antes eram as revistas, hoje são as selfies, o Facebook e o Instagram a ditar as regras do jogo.”
Um estudo feito pela Academia Americana de Plástica Facial e Cirurgia Reconstrutiva, há dois anos, mostrou que as plataformas sociais e aplicações móveis para divulgar imagens fizeram disparar o número de cirurgias faciais (rinoplastias, 10%, implantes capilares, 7% e intervenção nas pálpebras, 6%). “Em três semanas, retomam o corpo que tinham, voltam a produzir-se e publicam fotos a exercitar no ginásio, com aspeto jovem e saudável”, remata Marta Reis.
Investir na imagem é comum após um divórcio, mas também no início da idade adulta. “Jovens de 18 anos que vêm acompanhadas pelos pais e querem ter mais peito para se sentirem melhor na sua pele”, adianta Tiago Baptista Fernandes. Nos últimos anos deu-se o boom das técnicas de rejuvenescimento facial, com destaque para as aplicações de botox: “Espantam-se quando se recomenda esta técnica pouco invasiva a quem ainda não tem rugas e depois percebem que é a melhor maneira de retardar o envelhecimento e prevenir atos maiores e que envolvem bisturi.”
Alicerçada na publicidade, nos programas de televisão com especialistas, blogues, fóruns e sites, a revolução dos corpos saiu à rua. Fala-se dos lábios da A, pede-se ao doutor o nariz de B, deseja-se aumentar duas copas no peito e deixar de lado as esponjas do wonderbra.
EU FAÇO, TU FAZES, TODOS FAZEM
Recentemente, a comediante Joan Rivers, habitué de plásticas desde os anos 70, garantia à TIME, num artigo sobre o tema: “Não fazer nada [no seu corpo] é agora a nova vergonha”. Fazer e partilhar a experiência é a nova tendência, particularmente entre celebridades, sem os atavios de outros tempos. As atrizes Sofia Vergara e Naomi Watts admitem recorrer ao bisturi após os 50 anos. Gwyneth Paltrow e Nicole Kidman confessaram não gostar do efeito das injeções de toxina botulínica. Outras optam por não comentar rumores e insistem no estilo de vida saudável (tipo de alimentação, exercício físico, práticas meditativas) para conseguirem um visual expressivo e natural. A protagonista da série House of Cards, Robin Wright, pôs as cartas na mesa e fez saber que, como ela, a maioria das mulheres na sua faixa etária usa botox duas vezes por ano. A diferença dos resultados está na dose.
Sem discernimento, as soluções milagrosas de ontem são os pesadelos de amanhã. Basta pensar nos rostos de Renée Zellweger (protagonista de O Diário de Bridget Jones), de Uma Thurman, da ex-primeira-dama francesa Carla Bruni ou da rainha Letízia Ortiz, que a imprensa espanhola diz ser dependente de médicos e viciada em plásticas.
Em terras lusas, as figuras públicas com «uma certa idade» dividem-se entre a reserva, a apologia dos hábitos salutares e a partilha das experiências no campo do rejuvenescimento. Ou do aperfeiçoamento estético, termo apreciado, sobretudo pelas mais jovens, com menos inibições em falar abertamente. As atrizes Luciana Abreu e Barbara Norton de Matos submeteram-se a intervenções estéticas faciais, a manequim Isabel Figueira fez um aumento mamário. A atriz Rita Pereira e a fadista Joana Amendoeira renderam-se à lipoescultura para melhorar a silhueta. A pergunta que vale milhões: qual é o limite?
“Quando há uma moda faz-se tudo, bem e mal”, considera Carlos Parreira, a exercer na Clínica de Santo António, na Reboleira. O especialista fez carreira médica hospitalar no Garcia de Orta e está familiarizado com pedidos do tipo ‘doutor, veja lá o que pode fazer, quero mudar isto e isto’. Nestes casos, procura perceber o que a pessoa pretende, faculta-lhe informações científicas, convida-a a refletir. O cirurgião revela que lhe chegam pedidos para operar e fazer tratamentos de medicina estética (laser, botox, etc.) em idades cada vez mais jovens e que há mais candidatos no masculino. Desmistifica ainda o que move tanta gente a procurar esta via, tradicionalmente associada a questões de vaidade: “No mercado de trabalho impera a lei do mais forte e quem tem melhor visual é capaz de ficar com o emprego!”
Havendo bom senso e profissionais credenciados, melhorar é sempre possível. Para Luís Anjinho, cirurgião plástico na Médicos Associados Amoreiras, em Lisboa, “a lógica não é o ‘look young’, é o ‘look better'”. Em caso de dúvida, ele aconselha a que não se faça nada e aborda os riscos associados, “porque os há”. Por vezes, é preciso usar a pedagogia e pesar prós e contras. Mas Luís Anjinho entende que a medicina estética tem um papel crucial na qualidade de muita gente. Teve-o, certamente, para o homem que só se deu conta de sofrer de ginecomastia (mama grande) quando um amigo lhe disse, na sauna, que nem o soutien da mulher lhe havia de servir. A cirurgia mudou-lhe a vida.
A PERDA DA INOCÊNCIA
Sem flutuações assinaláveis durante os anos da crise, os profissionais que trabalham há décadas no ramo admitem que nos últimos 25 anos a procura cresceu e é transversal a todas as idades. O culto do corpo existe, mas há uma visão mais ponderada e realista do que é exequível. “Criou-se a ideia de ser fácil e inócua, houve excesso de solicitações em busca de um sonho que não teve a resposta esperada”, assegura Fátima Barros, cirurgiã plástica há 26 anos, no Hospital da Prelada, no Porto. A médica está convencida de que vamos assistir, no curto prazo, à diminuição ou estabilização do número de intervenções estéticas, à semelhança do que sucede noutros países. Hoje sabe-se que a cirurgia não faz milagres e tem implicações: “Pinta-se ou corta-se o cabelo e não se gosta, deixa-se crescer; com um preenchimento já não é assim; e se tiver implantes tem de estar preparado para mudá-los, se existirem complicações.”
Há quatro anos, uma marca de implantes mamários foi retirada do mercado pelo risco aumentado de ruturas. Em março deste ano, a suspeita de um tipo de cancro (linfoma anaplástico de células gigantes) associado ao revestimento de próteses mamárias esteve na base do alerta feito à classe médica, em França: todas as mulheres que as coloquem têm de ser informadas acerca de eventuais complicações. Na última década, os polímeros permanentes usados nos preenchimentos foram retirados do mercado duas vezes, por criarem granulomas. “Houve processos na Ordem dos Médicos (OM) e algumas condenações”, afirma o presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética. Celso Cruzeiro acrescenta que, nos últimos cinco anos, as queixas sobre procedimentos de cirurgia estética com processos na OM e nos tribunais comuns aumentaram mais de 100 por cento. O problema não é fácil de resolver, “por não haver regulação do ato médico e existirem profissionais não abrangidos no colégio da especialidade, a entidade que pode avaliá-los mas só tem poderes consultivos”. É certo que se evoluiu em qualificações, técnicas e segurança. Há mais informação e menos medo. Contudo, “ainda se tem pudor em apresentar queixa, leva-se o carro à marca mas confia-se o corpo a profissionais desconhecendo se são certificados para tal”, conclui.
SEM MORALIZAR
Eliminar gorduras, volume e rugas em nome do ideal dominante de beleza magreza e juventude não é pecado, mas pode ser penitência. No estudo qualitativo Ser Homem Já Não É O Que Era, realizado com 22 homens, a socióloga Elisabete Rodrigues concluiu que eles também investem muito tempo na manipulação do corpo: “Fazem dietas rigorosas, exercício físico com horários supercontrolados para ganhar massa muscular e evitam abrir-se acerca de eventuais intervenções estéticas por sentirem que isso ainda não é bem aceite”. Para quê, então, tanto esforço? “Porque compensa”, responderam os inquiridos. Uma boa aparência é uma estratégia de marketing para ter sucesso. “O progresso é sempre bem-vindo, mas há que distinguir entre intervenções que trazem acréscimos de autoestima e a busca desenfreada pela perfeição”, salienta a psicanalista Maria do Rosário Belo.
A viver em Portugal há duas décadas, a psicóloga clínica Ana Mary Lapa nasceu e cresceu na Venezuela, onde o recurso às práticas de medicina estética é banal e feito em idades jovens. Ela, que se lembra ainda da “imagem desleixada da mulher casada e de serem sobretudo os homens a frequentar o ginásio, com a roupa de andar por casa”, testemunhou uma mudança de hábitos substancial, que se manifesta numa noção de beleza estilizada. No seu consultório, em Mafra, alguns pacientes falam das mudanças realizadas, “eles ao nariz e peitorais, elas à face e ao peito”. A psicóloga vê na decisão de alterar partes do corpo um direito que, num cenário de rivalidade, se converte em dever, «um atalho para resolver questões difíceis como a aceitação da imperfeição, no corpo e no mundo».
Conhecida por ter sido a psicanalista da princesa Diana de Gales e a primeira clínica influente a associar perturbações alimentares e autoimagem, Susie Orbach considera que estamos na presença de um embuste ao permitir que os nossos corpos sejam vistos como produtos. À VISÃO, a ativista social e autora de Bodies acrescenta: “As tecnologias oferecem mudanças físicas porque as emocionais são difíceis; com uma dose de pressão suficiente, podemos ficar vulneráveis a este negócio.”
A cirurgiã plástica Fátima Barros admite que “ter um bom cartão de visita conta muito” mas deixa o alerta: “Desengane-se quem pensa que a beleza fundamental está aí e que as intervenções médicas não têm riscos!” Mesmo com um mundo de possibilidades à mão (e ao nível da carteira de cada um), não deixa de ser extenuante, e provavelmente insustentável, trocar as voltas ao relógio (biológico) e conceber o tempo como pura abstração. É a realidade idealizada por muitos mas talvez seja mesmo surrealista, como tão bem nos explicou o mestre Dalí.