Um caso limite. Mais um daqueles que ninguém, ou quase ninguém, parece ter dado conta. Deram, é certo, na escola frequentada pela menina, quando ela já estava grávida de cinco meses. Órfã de pai, com uma mãe que se prostituía e cujo companheiro terá abusado sexualmente da menor ao longo dos últimos anos, segundo informações da Polícia Judiciária, ficou internada no serviço de pediatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde aguarda uma solução para o seu caso.
Entretanto, a mãe e o padrasto da criança, com 44 e 58 anos, foram detidos pela Judiciária e estão em prisão preventiva. Ambos parecem não ter competências para assegurar o destino da jovem ou tutelá-la, tendo contribuído, ao invés, para uma penosa infância, com contornos traumáticos. O que fazer entretanto, com um feto na barriga, sem maturidade física nem psicológica para ser mãe, quando se teve por lar uma instituição nos primeiros anos de vida (quando foi retirada à família)? Ou, pior, quando se regressa a casa (aos seis anos) e, em vez de colo, só se encontra abuso, ameaça e humilhação? A lei é clara: em casos como este, a interrupção da gravidez é possível se estiver em jogo “um risco grave e irreversível para a saúde física e psíquica”, mesmo se ultrapassado, como é o caso, o limite das 16 semanas de gestação. Mas terá de existir um parecer psiquiátrico, que será depois levado a uma comissão de ética e, por ser menor, terá de juntar-se ainda a autorização da mãe ou de outro adulto com a sua tutela.
O processo ameaça prolongar-se no tempo, tamanhas são as interrogações -tempo que, neste caso, poderá agravar ainda mais o sentimento de abandono e de impotência de uma criança que, em toda a sua (curta) vida, nunca foi dona do seu destino. Deveria agora ser ouvida? Dulce Rocha, vice presidente do Instituto de Apoio à Criança, magistrada com grande experiência em Tribunais de Menores, defende que o risco psíquico é uma realidade em contextos de abuso continuado, pois pressupõe traumas psicológicos profundos. “Acompanhei uma situação em que a criança tinha 11 anos e fora violada por um tio e ficou grávida”, conta. A menina queria dar o bebé para adoção, mas a mãe dela discordava e defendia o aborto, acabando por reconsiderar, aceitando a decisão da filha. “Caso a jovem se oponha à IVG, é isso que deve prevalecer”, reforça Dulce Rocha, embora a lei não o preveja claramente. “Compete ao núcleo de apoio a crianças em risco do hospital analisar a questão e o Tribunal de Família e Menores deverá decidir.” O drama desta menina não é um caso isolado.
Em 2014 registaram-se 1 011 abusos sexuais de crianças, sendo que 45,2% aconteceram no meio familiar. As gravidezes indesejadas em menores levaram à realização de 1 909 interrupções nos hospitais, em 2013. A pedopsiquiatra Ana Vasconcelos sugere que se olhe para estes casos com compaixão: “É comum, em adolescentes que vivem num contexto de disfuncionalidade familiar, a gravidez ser encarada como compensação face ao sentimento de desolação e desamparo ao longo de uma vida.” No final, defende, “importa que os profissionais que acompanham esta menina se adaptem às circunstâncias dela” e, seja qual for o desfecho, “permitam que seja a protagonista da sua história”.
MONSTROS DEBAIXO DA CAMA
Todos os anos são julgados pais que engravidam as filhas menores
- Um bombeiro de Odemira, com 40 anos, violou a filha desde os 8 aos 14 anos e forçou-a a abortar em casa, em 2011. Pouco antes de ser preso, em 2012, voltou a engravidar a menina. Foi condenado a 14 anos de prisão e a menor teve o filho, que foi dado para adopção. Hoje vive num lar, depois de abandonada pela sua mãe.
- Em Penafiel, em 2013, uma rapariga de 14 anos recusou abortar, depois de violada pelo pai. A sua vontade foi respeitada, embora o bebé tenha sido entregue a uma instituição, até que ela complete 16 anos quando poderá ficar, em teoria, com a tutela do filho. A menor foi também institucionalizada.