Terão passado mais de 15 anos, mas a médica Paula Boavista ainda se emociona quando recorda aquela mulher. Com uma cirrose em estado avançado, Célia precisava urgentemente de um transplante de fígado para sobreviver.
A equipa que a seguia no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, queria operá-la e por isso enviou à médica de família uma carta em que se pedia que esta convencesse a Testemunha de Jeová a quebrar um dos dogmas da sua fé, aceitando uma transfusão de sangue, inevitável na sequência de uma cirurgia daquela natureza. Paula Boavista teve várias conversas com a sua paciente, com o marido e com os pais, mas nada conseguiu. Foi assistindo à sua deterioração, e ao sofrimento atroz. “Ela até era capaz de aceitar a transfusão, mas a família não a deixava”, recorda. “O marido chegou a garantir-me que se estivesse em risco a vida do filho pequeno de ambos a sua decisão seria a mesma.” Célia acabou por morrer, aos 36 anos.
Opções como esta são difíceis de entender por quem não professa esta fé. Mas a verdade é que os casos extremos são raros. A Medicina oferece cada vez mais alternativas até porque, independentemente da religião, a tendência é recorrer cada vez menos às transfusões de sangue por razões de segurança e até por escassez de produto. “A regra começa a ser a gestão do sangue do paciente, em que se minimizam as perdas e procuram outras soluções (como expansores de plasma), que evitem a necessidade de recorrer a sangue de outros”, explica a hematologista Alexandra Santos, do Hospital de São José, em Lisboa.
É para apresentar todas os substitutos possíveis que foram criadas as Comissões de Ligação Hospitalar, um intermediário entre as equipas médicas e os doentes. “Visam os melhores interesses e desejos do paciente no sentido de se encontrar uma solução de tratamento disponível, sem sangue”, explica Pedro Candeias, Ancião e Ministro Religioso das Testemunhas de Jeová que nos recebe na austera sede, em Alcabideche. Com origem nos Estados Unidos, esta religião reúne cem mil crentes em Portugal, seguidores absolutos da Bíblia, e reconhecidos no nosso País como comunidade religiosa, em 2009. É ao Livro Sagrado que vão buscar as justificações para a recusa em receber sangue de outro ou até do próprio estão vedadas as transfusões autólogas, em que o paciente faz uma reserva do seu sangue, para utilização em caso de necessidade. “Na Bíblia, há 400 referências à questão do sangue, que uma vez retirado da circulação, deve ser eliminado”, explica Pedro Candeias. À argumentação, o líder acrescenta um rol de problemas médicos associados às transfusões, explicitados em várias publicações difundidas pelos crentes.
“Mas é por uma questão de convicção e não pelos efeitos secundários que recusamos as transfusões”, admite Pedro Candeias.
“As Testemunhas de Jeová entendem que o corpo é uma dádiva e que devem entregá-lo no estado mais puro possível no dia do Juízo Final”, explica Paulo Mendes Pinto, responsável pelo curso de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. “É por esta razão que não fumam e evitam beber álcool, por exemplo.” O sangue de outra pessoa ou que tenha estado fora do corpo é entendido como uma impureza.
Menores protegidos
Alguns médicos têm-se especializado na aplicação de técnicas que permitem minimizar as perdas e eliminar a necessidade de transfusão, durante a cirurgia, por exemplo. Uma das mais utilizadas passa pela recuperação do sangue do próprio doente, que é recolhido, purificado e reinfundido como o processo ocorre em circuito fechado, é aceite.
O cirurgião cardiotorácico José Fragata, do Hospital de Santa Marta, tornou-se conhecido entre a comunidade por recorrer a esta estratégia. No entanto, o médico é taxativo: “Não estou disposto a deixar morrer uma pessoa por uma questão religiosa. A prática da medicina tem os seus limites e os doentes têm a sua vontade, mas nós [médicos] também temos o nosso juramento. Era o que faltava deixar morrer um doente no bloco, com uma caixa de sangue atrás de mim.” Frederico Leal, pediatra e neonatologista do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, também sente o mesmo conflito entre o desejo do doente e a obrigação profissional de prestar auxílio.
Foi para responder a estas dúvidas que a Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida elaborou um parecer sobre a temática, já em 2005, prevendo todas as possibilidades: menores, adultos conscientes e situações de emergência.
No caso dos menores de 16 anos, a situação não deixa margem para dúvidas: “Quando os representantes legais [em geral os pais] recusam a transfusão, prevalece o dever de agir em nome do princípio da beneficência “, sublinha a jurista Paula Martinho da Silva, então presidente daquela Comissão.
Uma transfusão de sangue exige sempre a autorização prévia o consentimento informado. No caso das crianças, são os pais quem a deve dar. O procedimento adotado no caso dos filhos de Testemunhas de Jeová tem sido o de passar a guarda temporariamente para o médico de serviço, explica Armando Leandro, presidente da Comissão de Proteção das Crianças e Jovens em Risco. “É pacífico.”
Procurador alerta 24 horas por dia
Em mais de trinta anos de carreira, o pediatra Frederico Leal, que pertence à comissão de transfusional, responsável pela validação deste procedimento, conta que viveu apenas duas situações deste género. Nestes casos, contacta-se o Procurador de turno, disponível 24 horas por dia, e o processo é imediato.
“Se for uma emergência, está previsto que o procedimento seja feito ainda antes de a autorização ter sido concedida”, sublinha Armando Leandro. “Nunca aplicamos transfusões de ânimo leve e eu até funciono como um elemento de travão. Mas quando acho que tem de haver uma transfusão e há uma recusa da outra parte, é muito frustrante. Não há nada que substitua um glóbulo vermelho”, nota o neonatologista. No final, os próprios pais acabam por se mostrar gratos por a vontade dos médicos se sobrepor à sua crença religiosa.
“Não demonstram claramente, por palavras, mas percebe-se que ficaram aliviados por termos salvado a vida dos filhos.” Há já 40 anos que as Testemunhas de Jeová usam a Diretiva Antecipada de Vontade, com que andam na carteira e na qual expressam a sua recusa em receber transfusões de sangue. Com a aprovação, no ano passado, do Testamento Vital um documento onde cada pessoa pode registar os cuidados que pretende ou não receber em contexto médico a situação tornou-se ainda mais clara.
Mesmo assim, as recusas em receber tratamento acabam sempre por marcar os profissionais de saúde. Alexandra Santos recorda uma paciente com leucemia que recusou o tratamento, já que este implicava obrigatoriamente transfusões durante a terapia, a medula deixa de funcionar, pelo que é essencial fornecer sangue ao doente. “Eu e a filha tentámos convencê-la e às vezes parecia que ia aceitar, mas depois vinham as amigas visitá-la e voltava atrás”, conta. A doente acabou por desaparecer das consultas e terá morrido, lamenta a hematologista. “Ninguém se cura de uma leucemia sem tratamento.” O ministro Pedro Candeias não se cansa de reforçar que as Testemunhas de Jeová “acreditam na Ciência e repudiam a cura pela fé”.
E acrescenta: “O sangue nem sempre é igual a vida. Às vezes é igual a morte.” Infelizmente, a fé também.
Da realidade para a ficção
No seu último romance, o escritor britânico Ian McEwan inspira-se em casos reais, julgados no Supremo Tribunal e no Tribunal de Apelação, para escrever uma ficção sobre um jovem Testemunha de Jeová que sofre de leucemia e que recusa uma transfusão de sangue crucial para o sucesso do seu tratamento.
O livro apresenta a perspetiva da juíza, durante o julgamento do caso que opõe a família do rapaz, que se opõe à transfusão, ao hospital que quer tratá-lo. O livro está à venda em Portugal desde a semana passada.
A Balada de Adam Henry, Ian McEwan Gradiva, 189 páginas, 14 euros