Um dia. Uma mulher. Um homem. Uma oportunidade de encontro. Um contrato. Paixão. Obsessão. Posse. As oito mensagens escritas que acompanham planos de cenas sugestivas, no trailer da estreia mais aguardada do ano. Prevista para o próximo dia 12, a adaptação da trilogia erótica As Cinquenta Sombras de Grey, da britânica E. L. James, conta com Jamie Dornan e Dakota Johnson nos papéis principais. A expectativa é grande, ou não se tratasse de um sucesso global, viral, que levou milhões de leitores – leitoras, em bom rigor – a percorrerem vertiginosamente 1 752 páginas de uma história que em tudo se afasta do sexo baunilha e da posição do missionário.
Pormenores picantes, só mesmo no dia da estreia (já com lotação esgotada nas salas portuguesas). Goste-se ou deteste-se, os jogos sem fronteiras entre a estudante virgem Anastasia e o belo e poderoso Christian têm o mérito de servir o sexo à mesa, sob um novo ângulo, com um toque agridoce e gourmet. Estamos a testemunhar o fim do tabu, privado e público, e a legitimar, socialmente, o direito a outras iguarias e liberdades de ?expressão, no entretenimento adulto?
Filmes amadores em ‘alta’
“O consumidor português gosta de ver filmes realistas, onde consiga rever-se e acreditar que aquelas fantasias podem acontecer com ele”, nota André Almeida, diretor de conteúdos e da área digital da Hotgold. Detentora do único canal para adultos português, presente nos quatro operadores de cabo e com uma média de 32 mil subscritores mensais, foi também através dela que Erica Fontes iniciou a sua carreira fulgurante, conquistando em 2013 o “Óscar” da pornografia internacional, nos XBiz Awards. A atitude do mercado mudou, mas os gostos dos consumidores nem tanto. O top de preferências vai para o género amador, como as “caseiradas” (um casal filma-se e vende os direitos) e as produções profissionais com atores amadores, que André Almeida explica assim: “Acham graça à ideia de aquela pessoa poder ser a vizinha do lado, mais real, que vai à rua comprar pão sem maquilhagem.” Seguem-se as paródias sexuais que retratam a atualidade e os clássicos vintage, como Monsanto ou Fim de Semana Lusitano, de Sá Leão. Só depois chegamos ao bizarro – “mulheres peludas, menos cuidadas, gordas… com os homens, passa-se o contrário, os mais cuidados é que vendem”. O bondage, que surge nas Cinquenta Sombras, é uma tendência recente, à semelhança dos filmes para mulheres, “com filmagens mais produzidas e erotismo”.
As portuguesas começam a sair do armário e a consumir mais pornografia, confirma o estudo da sexóloga Ana Alexandra Carvalheira, publicado na Psychology, Community & Health, há três anos. A investigadora do ISPA concluiu que mais de metade das mulheres da amostra visitava sites deste tipo. “A diversidade é mais livre que nunca, a vivência do sexo também; no caso delas, para perseguir o prazer, no deles, para se negarem, por estarem cansados, por exemplo”, conclui. Convivemos com o acesso rápido e, se se quiser, anónimo, para todos os gostos. Temos mais sex shops, séries de televisão (basta lembrar Californication, L Word, Masters of Sex, Modern Family) e muita tecnologia (redes sociais, sites e aplicações móveis de encontros). Mas – e há sempre um mas – “a banalização do sexo é absolutamente antierótica e os novos comportamentos coexistem com velhas atitudes”. Na prática clínica, elas traduzem-se em “muitas mulheres com um vazio erótico”. Ou, como revela outro estudo seu, publicado no Journal of Sex and Marital Therapy, em 2013, mais de 20% das mulheres na faixa etária dos trinta anos “masturbam-se sem se tocar diretamente, e com sentimentos de vergonha (16%) e culpa (11%)”
Cinza, a cor do pudor
As reuniões TupperSex e as cadeias de produtos eróticos vão conquistando lugar na paisagem lusitana. Na hora de chegar ao balcão da farmácia, do supermercado ou das lojas chinesas, começa a ser menos embaraçoso escolher acessórios para adultos.
Comprar material lúdico, com maior ou menor grau de sofisticação, revela-se mais fácil online e há stocks que esgotam nos sites de descontos, sendo a procura muito em função das tendências ditadas pela 7.ª arte, no grande ecrã. André Pires, gestor de clientes da INSIN, que organiza eventos eróticos em Lisboa (sobretudo festas de despedida de solteira e para o Dia dos Namorados), lembra o boom de aulas e coreografias de burlesco e vintage striptease, que ganharam projeção com o filme Burlesque, protagonizado por Christina Aguilera e Cher, e admite: “Os gostos não têm variado muito, embora os livros e filmes despertem o interesse por experiências mais kinky (fetiche e bondage, por exemplo), mas isso não quer dizer que o ponham em prática.”
Ainda não se falava em fenómeno viral quando (I Can’t Get No) Satisfaction explodiu e fez os Rolling Stones andar nas bocas do mundo… até hoje. De que falamos, afinal, quando falamos de satisfação sexual, esse forte indicador de saúde associado à boa convivência conjugal?
A pesquisa dos investigadores portugueses Patrícia Pascoal, Isabel Narciso e Nuno Monteiro Pereira, publicada no Journal of Sex Research, no ano passado, revela um dado surpreendente. No topo das respostas dos 760 participantes (449 homens e 311 mulheres com ligações estáveis, na faixa etária dos trintas) as palavras “Prazer” e “Reciprocidade” surgiram no topo da lista. O que parece estar a mudar é a visão da satisfação sexual como um todo e o caráter positivo e fluido da experiência individual e relacional, sem se ficar refém da sequência desejo-excitação-orgasmo, o ciclo da resposta sexual das pesquisas clássicas de Masters and Johnson.
Patrícia Pascoal atribui a grande revolução dos últimos 20 anos à democratização do acesso a produtos e conteúdos sexuais, cuja diversidade trouxe novos fenómenos: cibersexo, visibilidade às minorias sexuais, aplicações móveis para encontros sexuais fortuitos e mais conhecimento.
A investigadora e responsável pela consulta de sexologia, na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, admite que esta realidade tem eco na clínica, onde testemunha a crescente pressão para o desempenho, com uma enorme sensação de angústia face à vida íntima, por parecer não ir de encontro aos padrões ideais, assentes em indicadores quantitativos (número de orgasmos, frequência com que faz amor, etc.). “Continuamos, globalmente, a conviver com ideias antigas, muitas vezes prescritivas, de que o sexo é dos jovens, glamorosos e belos, e que são estes os desejáveis e os competentes. E quem não é ou não se sente assim tem uma espécie de cidadania sexual de segunda.”
Erotismo multicolor
Nos anos setenta, o realizador Bernardo Bertolucci fantasiou ter sexo com uma bela desconhecida que passava na rua e fez um drama erótico que foi um sucesso de bilheteira mundial. Marlon Brando e Maria Schneider deram corpo ao caos emocional e violência sexual (com cenas de penetração anal e práticas não consensuais) que ficaram imortalizados em Último Tango em Paris.
Nos anos oitenta, Adrian Lyne inspirou-se num livro para a ficção Nove Semanas e Meia, outro drama erótico protagonizado por Mickey Rourke e Kim Basinger, a incendiar o imaginário de milhões de espectadores. Também aqui, a jovem e bela galerista fica psicologicamente dependente dos caprichos picantes, e cada vez mais perigosos, do homem rico e com poder, por quem ela se apaixona. ?O romance acaba mal.
Nos anos noventa, os jogos de poder entre Sharon Stone e Michael Douglas, no thriller erótico Instinto Fatal, terminam ainda pior… Talvez sem consciência disso, o espectador ia para casa a pensar “ainda bem que é só no cinema”. O que é diferente nestas Cinquenta Sombras será também essa ausência de castigo. No final, ambos acabam felizes.
Estamos no século XXI. Desmistificar é preciso. Carmo Gê Pereira, 32 anos, transmontana formada em comunicação e com uma pós-graduação em sexologia clínica, começou por fazer enxovais para ócio adulto (apresentações de brinquedos e bijuteria sexual) e dedica-se a fazer aconselhamento e educação sexual para adultos. Oito anos de workshops entre Lisboa e o Porto levam-na a fazer um balanço positivo: “Estamos a aceitar novas formas de estar, a escolher não embarcar no discurso do prazer compulsório nem dos guiões fechados do coito sem prazer.”
O tema da consciência e do consentimento e da vivência do desejo sem culpa, bem de acordo com a tendência do momento, é que importa. Confirmam-no “a partilha de pornografia em casal, em quaisquer idades, as não monogamias consensuais, a sexualidade não normativa, a tântrica e a sagrada” e as tertúlias frequentadas por adultos seniores, “com práticas e intimidades muito bem construídas e mais saudáveis do que pensamos”.
A 14 de fevereiro, Dia dos Namorados ?(e da disfunção erétil…), vai ter lugar mais um evento simbólico, no Porto: a primeira conferência do Sim, Nós Fodemos, um movimento que pretende desmistificar a sexualidade dos deficientes.
Mas um dos eventos que mais surpreendeu Carmo Pereira aconteceu há três anos, no Clube Literário do Porto (integrado nos ciclos do Projeto Mudanças com Arte II). A palestra Shortbus: Construção de uma Nova Utopia Sexual, Traumas e Permeabilidade incluiu o visionamento do ousado filme que retrata o universo underground nova-iorquino, com cenas sexuais “fora da caixa”. No final, Ana Lúcia Magalhães interpretou três fados e integraram-se discursos e práticas, sob uma nova luz, sem acalentar expectativas, nem a carga sofredora. “A média de idades dos participantes era acima dos 50 anos e a experiência foi muito bonita.”
Inteligência sexual
As aventuras eróticas de Anastasia e Christian Grey são um acontecimento mediático que despertou as pessoas para algo que já existia – as práticas e a comunidade BDSM ?- conferindo-lhe aceitação social, mas corre o risco de distorcê-las. O investigador em ciências da comunicação Daniel Cardoso, que leu a obra e fez um trabalho académico sobre o tema, questiona o tom conservador e patologizante da narrativa.
“Glorifica-se uma relação psicologicamente tóxica e abusiva, que reproduz estereótipos – ela, uma rapariguinha desajeitada, ele com poder socioeconómico e com interesses sexuais que assentam num trauma de infância.” O docente da universidade Lusófona afirma que é necessária “alguma literacia emocional e sexual para interpretar a obra para lá do que se vê” e não acredita que “imitar o que se lê ou vê seja libertador, pois se o mindset for restrito, não há libertação possível.”