O rumor começou no dia em que João Martins desapareceu do mapa. Nesse dia em que ele desligou o telemóvel, apagou a sua página pessoal no Facebook e escreveu um email à Junta de Freguesia de Belém, suspendendo o projeto de atividades extracurriculares que desenvolvia no Agrupamento de Escolas do Restelo, toda a gente que o conhecia estranhou. Até a família. À porta de casa, na Rua dos Quartéis, a cinco minutos da Calçada da Ajuda, deixara a sua carrinha amarela. No apartamento faltavam o computador de secretária e a máquina fotográfica que nunca largava.
Não era a primeira vez que o professor, de 31 anos, partia à aventura. Num verão recente, postara no Facebook um desafio para uns dias algures no meio do mato. “Quem quer vir?”, convidava. Mas, nesse dia 25 de setembro, não tinha havido convite nem companheiros de aventura. A família dirigiu-se, então, à polícia e recebeu a notícia que os jornais publicariam, sem o identificar: João fora denunciado numa operação internacional contra a pornografia infantil na internet, coordenada pela Europol, e encontrava-se detido preventivamente.
A notícia passaria discreta entre as muitas que quase diariamente vão dando conta do trabalho da Polícia Judiciária. Nela lia-se que havia fortes indícios da prática de mais de trinta mil crimes de pornografia infantil e de 64 crimes de abuso sexual de menores. A investigação já apurara que o detido cometera reiteradamente atos de posse, partilha e troca de fotografias e vídeos com outros pedófilos na internet; e que tinha antecedentes criminais. João aparecia em muitas das imagens, em contactos sexuais explícitos com crianças.
Sempre rodeado por miúdos
Para fora da família, o assunto torna-se tabu. Ninguém arranca mais nada aos pais nem ao irmão e à irmã, ambos mais velhos, e o silêncio dá lugar a um primeiro rumor: João estaria com uma depressão, internado numa comunidade terapêutica, incomunicável. Com o ano letivo a arrancar, a Junta de Freguesia de Belém contrata rapidamente um outro coordenador para a equipa que assegurava as atividades extracurriculares.
Este rumor não tinha grande sustentação na altura, diz quem o sabia sempre bem-disposto. Embora não lhe conhecessem namorada ou namorado, e morasse sozinho, João tinha muitos amigos. Foi, por isso, grande a surpresa quando se soube que, a 30 de outubro, ao fim de menos de um mês no estabelecimento prisional junto da PJ, em Lisboa, apareceu morto. Enforcara-se com um lençol, deixando à família uma carta em que pedia desculpa e confirmava as razões da sua detenção.
Morrendo o arguido, deu-se a extinção do procedimento criminal. A investigação, porém, continua. Porque João estava envolvido numa rede internacional (no mesmo dia, terá sido detido um outro homem, na Suécia) e porque existem vítimas que poderão precisar de apoio psicológico.
Se a notícia da sua detenção ocupou pouco espaço na imprensa, a do seu suicídio resumiu-se a umas linhas num pequeno artigo sobre a morte de três reclusos. Mas no eixo Belém-Restelo-Ajuda, onde havia quem já soubesse parte da verdade, as vozes deixaram de se ouvir apenas em surdina, como é típico dos rumores, e surgiu a pergunta: “Será que aconteceu com o meu filho?”
São centenas os pais que a fazem. Não admira. João estava sempre rodeado de crianças. Há vários anos que, além de ser responsável por todas as atividades extracurriculares das três escolas do 1.º ciclo do Restelo e dos clubes da EB2+3 Paula Vicente, trabalhava na Associação de Proteção à Infância da Ajuda (Apia), uma IPSS onde a sua mãe, Isabel, é diretora pedagógica, e a sua irmã, Bárbara, educadora. E, no Agrupamento de Escuteiros 80 de Santa Maria de Belém, onde entrara há quinze anos, ainda adolescente, era chefe dos Lobitos – tinha a seu cargo meninos e meninas entre os seis e os dez anos.
‘Era um sedutor’
Nos escuteiros, sobretudo nos acampamentos em que participava, era ele quem tirava a maioria das fotografias. No Facebook do agrupamento ainda se conseguem encontrar imagens feitas por si, acompanhadas por comentários como este: “Fotos espetaculares João Martins… e para quando um daqueles teus vídeos?”
Na Apia, dava a oficina de expressão plástica Pincel Mágico e organizava campos de férias durante as férias escolares, campos que podiam incluir dormidas. Há vários anos que os pais lhe confiavam os filhos.
“Era um sedutor”, diz a mãe de uma menina, de oito anos, que adorava os ateliês de João Martins. “Fazia coisas giríssimas com os miúdos, toda a gente gostava dele. Interagia imenso com os pais, incluía-os nas ações, fosse um acampamento ou um arraial. Ganhou facilmente a nossa confiança.”
Criativo, empreendedor, empenhado. As qualidades sucedem-se nas conversas, sempre em off, com pais e professores da zona. “Tinha ideias fixas e mau feitio, queria ser ele a decidir tudo”, concedem. Mas “estava acima de qualquer suspeita”, repetem, como é habitual nos casos de pedofilia.
Na rua onde morava, uma rua de prédios antigos, só com uma florista e uma farmácia, poucos se lembram dele. Mas na vizinha Rua da Paz, onde viveu com os pais até há uns anos, deixou uma boa impressão. Na altura, a Apia era mesmo ali em baixo, num palacete da Calçada da Ajuda que foi ocupado depois do 25 de Abril, com a ajuda do “major” Mário Tomé. Os seus pais foram membros fundadores. “O João foi sempre um rapaz simpático, embora menos extrovertido do que o pai ou o irmão, mas esses são artistas”, diz um vizinho. [O pai, Gabriel, tem uma empresa de construção de cenários para televisão, teatro, publicidade, exposições, decoração e mobiliário, e o irmão, Bruno, trabalha com ele].
Os amigos dizem que João não parava muito em casa, durante o dia. Sublinham que era trabalhador, e andava sempre de um lado para o outro, a apresentar projetos e a dar aulas. Tinha uma estrutura informal, a ExpressAr.te, criada em 2012, que desenvolvia programas de educação artística, animação e contacto com a natureza. No primeiro ano, envolveu quatro escolas, dez animadores e mais de quinhentas crianças. Em julho último, ganhara o segundo lugar nos BIP-ZIP (programas de parcerias locais) – foram 38 mil euros para o projeto Escola d’Arte, que João iria implementar este ano letivo na Escola EB1 do Bairro Padre Cruz, em Carnide. Ambicioso, andava à procura de um espaço próprio no eixo Restelo-Belém-Ajuda. Um espaço fechado, onde queria organizar ateliês para crianças.
Identificadas 40 meninas
João tinha uma ligação muito forte à família, sobretudo à mãe. “Todos os verões, guardava um mês para passarem juntos”, conta uma amiga. Aprendera com os pais a não ostentar riqueza. O carro não era de topo de gama, e vestia sempre de forma descontraída. “A única coisa boa era a máquina fotográfica, andava sempre com ela pendurada”, lembra a mesma amiga.
Há comentários que, feitos à luz dos acontecimentos, ganham novos significados. Nunca ninguém estranhou que João gostasse tanto de fotografia. Ao longo dos anos, foram, aliás, muitos os pais agradados com as lindíssimas fotos dos filhos que ele ia publicando nas redes sociais ou oferecia em mão. Mas, agora, até se torce o nariz ao recordar o seu hábito de ficar acordado até tarde. “Punha comentários no Facebook às duas ou três da manhã.” O que estaria ele a fazer ao computador madrugada dentro?
Nos seus ficheiros, a Polícia Judiciária terá encontrado provas de partilha de fotografias e vídeos, um modus operandi habitual entre pedófilos. Fonte próxima do processo confirma os contactos sexuais explícitos: “Não era só pornografia. Eram abusos sexuais, com penetração.” Segundo a mesma fonte, estes abusos terão sido praticados só com meninas, entre os quatro e os dez anos. “Já foram identificadas quase quarenta meninas.”
A PJ estará a contactar diretamente os pais destas crianças, pouco a pouco. ?A identificação será feita com a ajuda de instituições. A VISÃO sabe que os inspetores pediram ao agrupamento de escuteiros de Belém fotografias de todas as crianças com quem João Martins contactou – 130, só no último ano.
No passado domingo, 9, os dirigentes do agrupamento reuniram os pais para lhes contar tudo o que foram sabendo sobre a “tragédia”, desde o final de setembro. Várias vezes repetiram que só não o fizeram antes por lhes ter sido vedado pela investigação criminal; quem se dirigisse aos escuteiros deveria ser encaminhado para a PJ. ?A notícia que a RTP deu nessa noite antecipou a reunião há muito desejada, e os pais tomaram, então, conhecimento de todas as diligências do Corpo Nacional de Escutas. Incluindo a exoneração de João Martins, decidida mal conheceram as razões da sua prisão preventiva.
Na curta-metragem ‘O Castigo’
Dirigentes da Apia foram, por sua vez, à PJ, para obter informações, mas nada lhes foi pedido, por enquanto. Na “sessão de esclarecimento de um rumor” promovida pela direção, na semana passada, um dos pais propôs constituir-se assistente do processo; em alternativa, foi colocada a hipótese de ser a própria associação a fazê-lo. Poderá, ainda, ser criado um gabinete de apoio psicológico aos pais.
Aos estabelecimentos de ensino do agrupamento do Restelo nada terá sido dito, segundo apurámos, assim como não foi feito qualquer contacto para a Escola EB1 do Bairro Padre Cruz. Nesta última escola, João Martins também era o dinamizador das atividades extracurriculares, onde, no ano letivo passado desenvolvia a parte da expressão plástica em sala de aula, com uma turma do 2.º ano. E, em 2010, quando era o responsável pela expressão dramática, realizou, com os alunos do 3.º ano, uma curta-metragem que foi apresentada na iniciativa Fitas na Rua (cinema ao ar livre, em Lisboa), no verão seguinte.
São onze minutos em que crianças de oito ou nove anos sonham com a hipótese de os adultos também serem castigados. Os miúdos são filmados a brincar, a dormir e a ralhar, sempre a olhar para cima. Lê-se na sinopse: “Esta noite, deitei-me e sonhei… que desta vez, era eu a meter os adultos de castigo – Uma chamada de atenção aos adultos que acham que devem ser as crianças a dar o BOM EXEMPLO!” O título do filme é, apropriadamente, O Castigo.
Um medo intenso
À VISÃO, os professores deixam no ar a convicção de que as crianças nunca estavam sozinhas com João Martins. “Ele não tinha grandes oportunidades”, querem acreditar. Uma mãe, preocupada com o que poderá ter-se passado num campo de férias que a filha frequentou, na Apia, teve a seguinte conversa com um inspetor da PJ:
– “Os miúdos dormiam todos juntos numa sala, e com mais adultos. Acho que ele ali não conseguiria fazer nada.”
– “Isso diz a senhora…”
Certo é que João ia em excursões para fora de Lisboa com as crianças e foi mais do que uma vez visto sozinho com uma ou duas meninas num jardim público do Restelo. Fonte próxima do processo diz que, em algumas fotografias encontradas nos ficheiros que estavam no seu computador, havia meninos deitados, a dormir.
Os pais, já se escreveu, confiavam nele. E os filhos também. Ou pareciam confiar. No caso de terem sido vítimas de abuso sexual, não se pode esperar que contem logo o que se passa, façam queixa do abusador. Segundo especialistas contactados pela VISÃO, é natural as crianças não reagirem, ficarem em silêncio. Durante e depois do ato. É a “sideração psíquica”, defendeu o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, na sua teoria do trauma, no início dos anos 30. A criança não consegue rejeitar (o autor dos abusos, os próprios abusos) por medo intenso. Torna-se um autómato e sente-se, ela própria, culpada.
A VISÃO sabe que a Polícia Judiciária está atenta às consequências que poderão advir da prática dos factos, mas o Ministério Público é que determinará se deve ou não haver apoio neste caso. Enquanto isso, três inspetores gastam boa parte do seu tempo a acalmar pais que chegam com fotografias na mão a perguntar: “Sabe se aconteceu com o meu filho?”