Não há uma gravidez igual a outra, mas Cristina Graça, de 37 anos, insiste, com um sorriso que lhe ilumina o rosto: “A minha gravidez foi igual à de qualquer outra mulher.” Sabe que desejou a filha muito antes de a conhecer, que ansiou meses (anos até) por tê-la nos braços, que foi o fruto de um grande amor. E, no entanto, Cristina é mãe sem que a sua barriga tivesse crescido, sem uma só ecografia, sem ter amamentado a sua menina, que hoje tem 4 anos e irradia felicidade.
“Foi a 2 de abril de 2012 que vimos a Maria pela primeira vez”, recorda Cristina, emocionada. Não consegue lembrar-se dos momentos que antecederam aquele instante em que a menina, então com 3 anos (mas que vestia roupa de um ano e meio), foi naturalmente ao seu encontro, na sala despida de um centro de acolhimento búlgaro. “Sei que fiz uma viagem de carro de Sofia até à pequena cidade onde ela estava institucionalizada, mas não sou capaz de descrever a paisagem.”
Considera natural o esquecimento: “Afinal, estavam a rebentar-me as águas.” [Risos]. As “dores de parto” sentira-as dois dias antes, ao entrar, com o marido, num avião rumo à capital da Bulgária. Cristina tem medo de voar, mas fazer a viagem era um sacrifício exigido pelo sonho que estava, juntamente com Rogério Santos, de 36 anos, prestes a realizar.
Nesta história, há uma outra Cristina, de apelido Rodrigues, com quem a vida dos pais de Maria se cruzou. Foi ela a mentora da associação Bem Me Queres (BMQ), de apoio à adoção de crianças, fundada em 2006. Criou–a depois de ela e o marido terem adotado dois rapazes, de um e 4 anos. Durante o processo, sentiram falta de apoio e, por isso, na génese da BMQ esteve a vontade de ajudar candidatos a pais adotivos. Dos objetivos iniciais da associação constava já o de vir a assumir-se como uma entidade mediadora em processos de adoção internacional, uma figura comum nos outros Estados-membros da União Europeia e prevista na Convenção de Haia, que regula a adoção internacional, mas inexistente no nosso país. E, em outubro de 2009, a BMQ foi autorizada pelo Governo a mediar esses processos. Poucos meses antes, outra instituição privada sem fins lucrativos, a Emergência Social, já tinha sido oficialmente reconhecida, mas, como explica Javier Calderón, seu presidente, apesar das tentativas, não conseguiu ainda estabelecer acordos com nenhum dos seis países contactados até ao momento. Está agora a tentar criar pontes com entidades mediadoras da Etiópia e Brasil.
Salvar uma criança
Cristina e Rogério queriam há muito ser pais. Ela sentia o tic-tac biológico de forma cada vez mais acelerada. A gravidez tardava em surgir e a vontade de iniciar tratamentos de fertilidade era pouca… Um dia, fez uma pergunta infantil ao marido: “Se, na nossa situação, tivesses de escolher entre um filho biológico e um adotivo, por qual optarias? ” Rogério não precisou de tempo para responder: “Preferia salvar uma criança que já está cá no mundo.”
Começaram, então, a desenhar um caminho que os levaria à Bulgária, mas, na altura, estavam ainda longe de o saber. Foi uma amiga que lhes falou da BMQ. Nesse momento, já tinham feito a inscrição na Segurança Social como candidatos a pais adotivos. Contactaram de imediato a associação e o que uma das responsáveis lhes disse ia no mesmo sentido do que já tinham ouvido no organismo do Estado: “Não é o casal que procura a criança, é a criança que procura o casal.”
A ideia agradou-lhes. “Nós queríamos uma criança, não uma Barbie ou um Ken”, diz Rogério. Cristina acrescenta: “Um anjinho esquecido, porque meninos bonitos todos querem.”
Levantaram poucos entraves. Gostariam apenas que fosse uma menina, com idade até aos sete anos, e não se importariam que tivesse algum tipo de doença ou defi ciência, desde que não fosse incapacitante. “Eu sou diabético, a Cristina é asmática, para mim uma criança com necessidades especiais nada tem de anormal”, abrevia Rogério, com Maria ao seu colo, brincando com um tablet.
Uma ponte para a Bulgária
Cristina Rodrigues caracteriza assim as pessoas que procuram a BMQ: “Têm, geralmente abertura de espírito para acolher uma criança vinda de outro país, com outra cultura, e, ao mesmo tempo, acalentam a esperança de se tornarem pais de uma forma mais rápida.” Todos se candidatam em paralelo à adoção nacional e internacional. Abrem, resume, “mais uma janela de oportunidade “.
O processo de seleção dos candidatos é sempre da competência da Segurança Social. Aliás, as adoções internacionais já eram possíveis, mas o processo, explica a dirigente, era complicado: “Havia pouco acompanhamento e informação, eram os próprios candidatos quem tinha de contactar com os outros países para saber qual a documentação necessária, de contratar tradutores e advogados… e a decisão, no país de origem da criança, tinha, depois, de ser reconhecida cá.” A BMQ facilita todo esse processo.
O trabalho que Cristina e outros elementos da associação desenvolvem é voluntário. Mas um processo de adoção internacional através da BMQ custa cerca de 10 500 euros é o montante necessário para pagar a tradução de documentos, a emissão de certifi cados, os serviços de advogado, psicólogo e tradutor, e o acompanhamento da família, nos dois anos posteriores à adoção, com envio de relatórios de seis em seis meses para o país de origem da criança. Além disso, há que custear as despesas de viagem para ir buscar a criança e o tempo de permanência no destino.
Desde 2010, a associação já apoiou uma dúzia de candidaturas. Mas Maria foi, até ao momento, a única criança estrangeira a ser adotada por intermédio da BMQ. Os processos são complexos. Além disso, ficaram sem resposta os pedidos de cooperação entregues na China, no Brasil, na Colômbia, nas Filipinas e na Ucrânia. Só a Bulgária abriu a porta. A BMQ tem hoje um acordo de cooperação com a Family National Association, uma associação búlgara que medeia processos em vários países.
A caixinha mágica
Foi através dessa parceria entre as associações dos dois países que Rogério e Cristina encontraram Maria. Desde que contactaram, pela primeira vez, com a BMQ, não passou muito tempo até receberem um telefonema com boas notícias. Nas listas da associação búlgara, havia uma menina que parecia ter nascido na outra ponta da Europa para ser filha deles. Terá sido como o primeiro pontapé que a criança dá na barriga da mãe, esse momento em que lhes apresentaram o historial da criança. Se pudessem, a professora e o operador de contact centre teriam assinado os papéis na hora. Fá-lo-iam poucos dias depois, sem verem nenhuma fotografia da futura filha, conforme mandam as regras. “Faz sentido”, diz Rogério. “Se um casal está preparado para amar uma criança, não será o aspeto dela que o irá influenciar.” Mostram, com um brilhozinho nos olhos, vídeos dos primeiros momentos com Maria. Riem-se. Tinham-lhes dito que era uma criança muito alegre, que gostava de música e de bonecas. Cristina levou-lhe uma caixa de música da Hello Kitty, Rogério um boneco do Mickey.
Ela era uma criança à procura de pais, eles eram pais à procura de uma filha, a empatia foi imediata: “Nunca tinha visto uma relação tão intensa. Foi mágico, como se nos conhecêssemos desde sempre”, diz Rogério. A língua, um entrave que receavam, não se tornou problema: “A Cristina é professora do 1.º ciclo, fala criancês”, brinca o pai. Na verdade, Maria nem búlgaro falava, emitia apenas sons. E ainda usava fraldas. Deixou a instituição onde deu entrada com 25 dias de vida, depois de ter sido abandonada pela mãe no hospital. Quando chegou à rua, pela mão dos novos pais, parou por uns instantes, impressionada com o ar puro, a que não estava habituada.
As imagens que os portugueses levavam para a menina apontar o que queria (beber água, comer…) não chegaram a ser necessárias. Tudo evoluiu de forma natural. E a caixa de música fez magia: passaram a primeira semana em conjunto, em Sofia, dançando muito.
Já em Portugal, o pediatra alertou para os problemas que Maria tinha, a nível de peso e altura. Seriam, disse, “perfeitamente recuperáveis”. Palavras sábias. Ela desenvolveu-se rapidamente, apesar de estranhar os sabores e as texturas da comida portuguesa.
É hoje uma menina com a mesma estatura dos colegas de jardim-de-infância, onde adora ir. Continua a gostar de música e também gosta de praia e de andar de bicicleta. Fala português perfeito, mesmo sem nunca ter tido aulas para aprender a língua: “Preocupámo-nos apenas em dar-lhe liberdade, afetos e atenção”, diz o pai, para quem “o amor é a água de que estas flores precisam para desabrochar”. Agora, é ele quem quer aprender búlgaro. Tanto Rogério como Cristina desejam que a filha tenha contacto com a sua cultura de origem. A menina loira, de olhos azuis, sabe bem qual é: “Nasci na Bulgária”, diz-nos.
Para Cristina e Rogério, a vida da filha não começou quando a conheceram: “Só começou uma vida diferente.” Cristina gostaria até de, um dia, poder abraçar a mãe biológica de Maria: “Somos as duas mães, em momentos diferentes. O que ela fez pode ter sido um ato de amor… e o que me deu tem um valor incalculável.” Mas nem tudo são rosas. Alguns amigos questionaram a opção do casal. Há muitos “tabus” e “mitos”, dizem. Há quem os veja com a filha linda que têm e pergunte onde a foram comprar. Mas há, também, quem lhes elogie a coragem. Eles respondem invariavelmente: “Coragem teve a Maria, que foi tirada da história e do mundo dela.”
Entretanto, como a vida real nem sempre segue o guião dos contos de fadas, o casal divorciou-se. Dizem que o fizeram também a pensar no bem-estar da filha. Mantêm um entendimento fácil em tudo o que diz respeito a Maria e agradecem, todos os dias, a dádiva trazida pela “cegonha metálica” (como brinca o avô materno, por a neta ter chegado de avião). Cristina também não desistiu de sonhar. Um dia, acredita, esta cegonha moderna há de trazer-lhe mais filhos.
Partidas e chegadas
De 2008 a 2012, foram 38 as crianças estrangeiras adotadas por cidadãos portugueses. Vieram da Bulgária, Brasil, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, França, Guiné-Bissau e Tailândia. No mesmo intervalo de tempo, foram apresentadas 170 candidaturas a adoção internacional. Os dados do Instituto da Segurança Social revelam que há mais estrangeiros a adotar crianças portuguesas do que o contrário. Em 2012, Portugal tornou-se o país de acolhimento de 11 crianças de outras nacionalidades, mas foram 21 as portuguesas que saíram. Faziam parte das 487 crianças em condições de serem adotadas mas não encontraram pais adotivos cá devido à idade ou por terem complicações de saúde ou muitos irmãos.