Os menos habituados às andanças dos processos nos tribunais ficariam espantados com as dezenas de PDF’s que compõe o processo 24/13.8 BEBJA, relativo à providência cautelar interposta pela associação Animal junto do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Beja para, numa primeira fase, impedir o abate do pit bull Zico e, mais tarde, requerer a tutela legal do animal. São dezenas de documentos: ofícios, requerimentos, sentenças, petições, contestações, notificações, despachos, etc. que a VISÃO consultou no TAF, por estar a providência já legalmente finalizada e, portanto, fora da restrição de publicidade imposta por despacho judicial. Para isso, teve de utilizar o posto de trabalho de um funcionário administrativo – enquanto este ficou impedido de o fazer – uma vez que o computador de consulta se encontra avariado há seis meses.
Existem diversos tipos de medidas provisórias e cautelares no ordenamento jurídico nacional. Segundo o Portal Europeu de Justiça: “Os procedimentos cautelares destinam-se a remover o periculum in mora, a garantir o efeito útil da decisão judicial definitiva (cfr. artº 2º do Código de Processo Civil), isto é, a defender o presumido titular do direito contra os danos e prejuízos que lhe pode causar a formação lenta e demorada da decisão definitiva.”
No caso em concreto, a associação Animal tinha submetido ao TAF uma “intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias” mas a juíza entendeu que não era o meio processual mais adequado e convolou-o (mudou-lhe o estado, transformou-o) numa “providência cautelar de intimação para a adoção ou abstenção de uma conduta”. Esta providência cautelar está sempre dependente de uma ação principal – onde as diferentes partes são ouvidas e esgrimem argumentos e, no final, a juíza toma uma decisão definitiva – mas é o instrumento jurídico que vigora até haver uma sentença. Como também na providência cautelar é necessário dar a todos os envolvidos a possibilidade de resposta – o que pode levar tempo – ela pode ser provisoriamente decretada, ou seja, passa a vigorar, mesmo antes de todos se pronunciarem e o magistrado ter a palavra final.
Durante oito meses foi este o vaivém jurídico. A sentença final, relativa à providência cautelar, acabou por ser tomada em período de férias judiciais, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que estava de turno. A VISÃO sabe que a ação principal só deu entrada no TAF de Beja em Outubro – porque pode ser apresentada posteriormente à providência cautelar – mas não a pôde consultar uma vez que se encontra ainda a decorrer.
Ao mesmo tempo que se desenrolava este processo, no Ministério Público de Beja corria (e que se saiba ainda corre) um inquérito criminal – com o número 25/13.6 TABJA – para apurar as circunstâncias da morte de Dinis Janeiro. É nesta ação que se vai perceber o que realmente aconteceu do dia 6 de Janeiro de 2013. Cabe ao MP arquivar o processo, se considerar que não há provas suficientes para avançar ou deduzir acusação, levando alguém a julgamento.
CRONOLOGIA: Os principais momentos
2013
JANEIRO
6, domingo
– Dinis Janeiro, de 18 meses, dá entrada no hospital de Beja com ferimentos graves, consistentes com “mordedura de cão”.
7, segunda-feira
– A criança morre, vítima de lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas.
– No mesmo dia, a veterinária municipal de Beja, Linda Rosa Ferreira, anuncia que o cão será eutanasiado, no prazo de oito dias.
– A Polícia de Segurança Pública tem conhecimento do caso pela comunicação social e comunica o sucedido ao Ministério Público (MP), que abre um inquérito criminal e manda apreender o cão, por ser considerado um meio de prova.
11, sexta-feira
– A Associação Animal entrega, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja (TAF), uma “intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias” para impedir o abate do cão.
– O TAF convola a intimação numa “providência cautelar para intimação para a adoção ou abstenção de uma conduta”, decide o decretamento provisório da mesma e ordena ao canil intermunicipal de Beja que se abstenha de eutanasiar o animal até que a juíza decida sobre a providência cautelar.
15, terça-feira
– A Animal pede ao tribunal para visitar Zico, detido no canil da Resialentejo, por suspeitas de que estivesse a ser maltratado. Até abril, todos os pedidos serão indeferidos.
18, sexta-feira
– O Ministério Público informa o TAF que o cão não pode ser abatido enquanto for considerado um meio de prova.
FEVEREIRO
15, sexta-feira
– A petição online “Contra o Abate do Pitbull “Zico” e de todos os outros “Zicos”!” dá entrada na Assembleia da República (AR), com 70247 assinaturas. É rejeitada, em parte, porque se dirige ao canil de Beja e à Veterinária Municipal e não à Presidente da AR.
ABRIL
17, quarta-feira
– O Tribunal Judicial de Beja informa o Tribunal Administrativo e Fiscal de que o cão já não tem valor probatório. Legalmente a veterinária pode decidir abater o cão.
19, sexta-feira
– A Animal pede ao TAF, por um lado, que decrete provisoriamente a providência cautelar impedindo que o cão seja abatido e, por outro, que este lhe seja entregue, constituindo-se a associação como fiel depositária do mesmo.
22, segunda-feira
– O TAF determina que é “preciso comprovar, através de relatório médico, que o animal causou ofensas graves à integridade física da criança” e que por isso “enquanto o inquérito não for encerrado pelo Ministério Público, não pode, (…) a médica veterinária municipal tomar nenhuma decisão quanto ao destino do animal”. Mais, aceita um dos vários pedidos de visita ao cão, feitos pela associação Animal, desde que “sem a presença da comunicação social” e sem “divulgar a terceiros que a visita foi autorizada e o seu resultado”.
30, terça-feira
– A associação Animal visita o cão Zico, no canil, onde está há já quatro meses. Segundo informação enviada posteriormente ao tribunal, o cão: “encontrava-se extremamente magro, tendo perdido grande parte da sua massa muscular”. Apresentava “sinais de grande stress perante a presença dos funcionários do canil”, “extensas lesões na pele”, “sinais de desidratação” e “fraqueza nas patas traseiras e dificuldades em colocar as almofadas das patas devidamente no chão.”
JUNHO
4, terça-feira
– A juíza informa as partes de que “o cão não pode ser eutanasiado, pois enquanto não for conhecido o relatório da autópsia não é possível concluir qual foi a causa da morte da criança.” Acrescenta ainda “com a advertência à Médica Veterinária Municipal para comunicar ao Tribunal, no prazo de 24 horas e via fax, a decisão que vier a ser tomada quanto ao destino do cão. Caso a decisão não seja de abate, sempre poderá decidir entregar o cão à Requerente [Associação Animal], que assumirá a responsabilidade pelo mesmo, se o seu detentor o não quiser.”
JULHO
1, segunda-feira
– A Veterinária Linda Rosa Ferreira comunica ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja que “foi decidido eutanasiar o cão denominado Zico”, uma vez que teve acesso ao relatório da autópsia.
2, terça-feira
– Invocando o “desconhecimento atual pelo Tribunal do relatório de autópsia da criança em que se sustenta a Médica Veterinária”, o TAF decreta, sem necessidade de proceder a julgamento, a providência cautelar interposta em janeiro pela Animal.
5, sexta-feira
– Os Serviços do Ministério Público de Beja remetem, finalmente, o relatório da autópsia ao Tribunal Administrativo e Fiscal da mesma cidade. Da mesma consta a seguinte conclusão: a morte da criança “foi devido às lesões traumáticas Crânio-Meningo-Encefálicas”. Estas “denotam terem sido produzidas por ação de natureza perfurocontundente, ou atuando como tal, como o que pode ter sido devido a mordedura de cão, tal como consta da informação clínica/circunstancial.”
12, sexta-feira
– A juíza Luísa Candeias Tinoco considera que “A frase “… pode ter sido devido a mordedura de cão” é inconclusiva.” Por isso, determina: “Ante o exposto, não sendo o relatório da autópsia conclusivo no sentido de que foi o cão o autor das lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas que conduziram à morte da criança, a providência cautelar decretada mantém-se por se manterem os seus pressupostos.”
30, terça-feira
– O período de férias judiciais encontra-se em vigor. O pedido de entrega do cão (a providência foi definitivamente decretada em 2 de julho e mantida a 12 de julho) ainda não tinha sido, de facto, apreciado. Coube ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que estava de turno, julgar o pedido. É a juíza Patrícia Costa Martins, que até esse momento não tinha acompanhado o caso, que o decide: “manter a providência cautelar de abstenção de abate do cão, defere-se o pedido e determina-se a entrega do animal, em causa, à Requerente [Associação Animal], com a advertência de que fica a mesma responsabilizada pelos seus cuidados, ficando como fiel depositária do mesmo, comprometendo-se a zelar pelo seu bem-estar, durante o período de tempo que decorrerá a causa principal.”
AGOSTO
5, segunda-feira
– Zico é entregue à Associação Animal, que se torna “fiel depositária do mesmo”. O nome do cão é mudado, passando a chamar-se Mandela.