Logo de manhã, ligas o televisor e levas com um anúncio de um operador de net e cabo a falar da “tua visão”. Enquanto conduzes, o animador da rádio anuncia-te que “vais ouvir uma música fantástica”. No para-arranca do trânsito, olhas para o lado e vês um outdoor de uma companhia aérea com a frase “Até onde queres ir?” Entras numa pastelaria para pedir um café e corres o risco de a rapariga ao balcão te perguntar: “Queres açúcar ou adoçante?” Folheias o jornal e lá está um carro de 25 mil euros a dizer-te “desafia todas as normas”. Mais tarde, abres a VISÃO e lês um artigo no qual um jornalista que não conheces de lado nenhum te trata por tu.
A sociedade portuguesa está a ficar mais informal, e a língua segue-lhe os passos.
Há duas ou três décadas, atravessávamos a fronteira entre a juventude e a maturidade por volta dos 20 e poucos anos, ou por altura do primeiro emprego, quando as pessoas na rua começavam a aplicar-nos o “você”. Era nesse momento, e não no 18.º aniversário, que nos sentíamos efetivamente a entrar na idade adulta. Depois, alguma coisa mudou. O “tu”, teimoso, passou a sobreviver até mais tarde e o “você”, tímido, demorava a brotar. Chegávamos aos 30, 35, e ainda nos perguntavam “tens horas?”. Agora, para onde quer que olhemos, as marcas persistem em tutear-nos a nós, consumidores, seja qual for a nossa idade. E não estamos a falar de anúncios a barbies e carrinhos de brincar. Automóveis, bebidas alcoólicas, relógios, perfumes, telemóveis, máquinas de café, todos falam connosco como se fossem da nossa família.
“A publicidade define, muitas vezes, tendências”, comenta Miguel Ralha, sócio da agência publicitária BAR. “Mas, neste caso, anda de mãos dadas com a sociedade, que tende a ser mais simples e próxima.” Essa realidade traduz-se numa linguagem de maior informalidade com os clientes. “Num mercado mais concorrencial, mudou a forma como as marcas interagem com os consumidores, que se querem sentir acarinhados. E nós tratamos os nossos amigos por ‘tu’, não por ‘você’.” O tuteio entre empresas e potenciais clientes tornou-se ainda mais vincado com a crescente popularidade das redes sociais. “Há um maior à-vontade que decorre da interação. As pessoas falam com as marcas no Facebook e alguém lhes responde”, explica Tiago Veigas, diretor criativo da Brandia Central, uma firma de consultoria e gestão de marcas. “As que ainda não deram o salto usam muito o infinitivo [por exemplo: ‘comprar a marca X é uma boa ideia’] . O ‘você’ já parece demasiado formal.” A “informalidade educada” continuará a reforçarse até atingir um ponto de maturidade, acrescenta. Pelo caminho, acredita, extinguir-se-á o “doutor” (que nos países anglo-saxónicos está reservado a médicos e professores universitários). “Todas as coisas estúpidas acabam. Entre elas, esse tratamento bacoco de ‘doutor’ a qualquer licenciado.”
LÍNGUA DESENGRAVATADA
Carlos Reis, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, também aponta as redes sociais como corresponsáveis pela generalização do “tu”. “Basta ver o fenómeno dos ‘amigos’ no Facebook. O que parece natural é tutear um amigo (mesmo que ele seja um ‘amigo’, digamos, eletrónico…).
Além disso, os textos em redes sociais e em mensagens de dispositivos móveis são muito breves, pouco refletidos e, por isso, a tendência para simplificar chega à forma de tratamento: um ‘tu’ é mais fácil de conjugar do que um ‘você’, já para não falar no quase arcaico ‘vós’.” A informalidade, em Portugal, não se esgota na publicidade e nas redes sociais.
Hoje, raramente ouvimos crianças a tratarem os pais por “você”, sentimo-nos jovens até mais tarde e vestimo-nos a condizer, com roupas descontraídas a gravata está a desaparecer de muitos pescoços, incluindo de gestores de topo, deputados e ministros. “O formalismo é muito inferior ao que existia há 20 anos. Não é falta de respeito. É o caminho natural das relações portuguesas”, diz António Mendes, diretor da RFM, rádio que passou a tratar os ouvintes por “tu”, há dois anos, depois de um estudo de mercado ter colocado a estação ao lado de marcas informais.
“A ideia de mudar [o tratamento] para a segunda pessoa veio da observação do que se passa à nossa volta, onde há cada vez mais gente a tratar-se por tu”, justifica.
A evolução (ou será revolução?) da língua não é completamente pacífica: pode criar “tensões, sobretudo entre pessoas de diferentes extratos socioeducativos”, alerta Carlos Reis. No mínimo, provoca instantes constrangedores como quando tuteamos alguém e nos vocêam de volta.
O crescimento do “tu”, no entanto, é inevitável. “Estamos a caminho do que se passa em espanhol, onde o tuteio é absolutamente normal, entre extratos sociais e pessoas que não têm qualquer intimidade “, compara o professor universitário.
A raiz desta diferença, conta-se, estará na Guerra Civil Espanhola, com os republicanos a tratarem os camaradas por “tu”.
Há um grupo que continua imune a esta tendência, arrisca Carlos Reis. “As chamadas tias de Cascais não parecem dispostas a prescindir de um tratamento afetado que dispensa o ‘tu’ e prefere uma bem mais artificial terceira pessoa [‘o senhor, a senhora’] ou um mais direto ‘você’.” Se for este o seu caso, cara leitora, peço-lhe duas vezes desculpa por a ter tratado por tu.