A precariedade jovem e licenciada está no centro do protesto da “geração à rasca”, que, à semelhança das revoluções árabes, nasceu nas redes sociais e se diz “apartidário, laico e pacífico”. Estão agendadas manifestações em sete cidades portuguesas para este sábado, 12, às quais comparecerão, a crer nas confirmações via Facebook, mais de 40 mil pessoas.
Razões para o descontentamento não faltam. As estatísticas do Inquérito ao Emprego de 2010 revelam a existência de 810 mil pessoas com vínculos precários, como contratos a termo certo e recibos verdes, e indicam que os licenciados são o grupo que, neste particular, mostra maior crescimento – 130%, passando dos 80 mil para os 200 mil numa década (2000-2010). Outros dados, como os da CGTP, calculam que a precariedade atinge 1,4 milhões de portugueses, contando com os bolseiros, os estagiários não remunerados e restantes contratos atípicos. O desemprego entre os licenciados atingirá os 7% – bem abaixo da taxa nacional, que ascende já aos 11,2 por cento. Mas focando apenas os jovens licenciados até aos 24 anos de idade, sobe para uns assustadores 26,1 por cento.
Outro fator para a revolta é o “ato confiscatório”, como lhe chamou o fiscalista Tiago Caiado Guerreiro, a que os recibos verdes foram sujeitos. Em janeiro, com as alterações ao Código Contributivo, os recibos verdes passaram a contribuir 1,5% para o IRS, e 4,2% para a Segurança Social. Ou seja, quase 50% do respetivo rendimento mensal reverte para o Estado. Um “recibo verde” que ganhe mil euros leva para casa apenas 598 euros e não tem direito a subsídios de Natal, férias ou doença.
O DOUTOR DO ‘CALL CENTER’
Ricardo Noronha, 31 anos e doutorado em História pela Universidade Nova de Lisboa, não tem tido uma vida fácil. Não é rico – a mãe é bancária e o pai técnico de marketing – e ainda vive numa república informal, na capital, onde cada um dos cinco habitantes tem um quarto. Já fez de tudo para sobreviver. “O meu primeiro emprego foi nas obras do Oeiras Parque, com ou sem capacete. Até ao dia em que caiu um andaime e saiu de lá um gajo morto…”
Para ter dinheiro para o Erasmus em Itália, apanhou pêssegos em França. Lembra-se dos intermediários de Trás-os-Montes, “vendedores de gado”, com um enorme poder sobre os trabalhadores – o domínio da língua francesa. Gente que dorme em barracões, que só para quando o patrão manda e recebe o dinheiro por debaixo da mesa. “Estive lá dois meses. Uma coisa medieval, latifundiária. Em agosto, depois de um dia todo a arranhar – e a folha do pessegueiro arranha mesmo, dá comichão -, o patrão resolveu encher a piscina e nós ficámos sem poder tomar banho… Ganhei 2 mil euros.”
Em Bolonha, por seis a oito euros por hora (ao domingo ganhava-se mais) limpou o chão de uma discoteca “gay, elegante, cara”, pago sem recibos. “Mesmo assim estive à experiência, pois havia outro candidato… Vivia com 500 euros por mês.” Vendeu ilegalmente cerveja fria à noite nas praças da cidade, fez-se amigo de marroquinos, andou em bicicletas alheias… “Vivi de esquemas”, resume.
Mas nunca desistiu dos estudos. Após o curso veio o mestrado, e depois o doutoramento. “Montei palcos de concertos, fui office boy, trabalhei na Zara. Nunca tive um carro. Aliás, nem tenho carta”, diz, com um mal disfarçado orgulho. A sua formação, porém, só tem dado para bolsas de estudo. A verdadeira “carreira profissional” de Ricardo é a de operador de call center, em horário noturno, com contratos a prazo, sem subsídios de férias ou Natal.
Da PT, da Vodafone, da Fujitsu, Ricardo sabe o que custa conseguir um lugar, mesmo que precário. “Vai-se aos sites do tipo Expresso Emprego e manda-se o currículo para empresas de trabalho temporário. Depois chamam-te para entrevistas e testes de perguntas cretinas: ‘Qual a sua maior qualidade e o seu maior defeito?’ Respondo: ‘É a mesma: sou perfeccionista.’ ‘Descreva-se em três palavras.’ Respondo: ‘Sou assertivo, proativo e dinâmico.’ É uma tanga: não te avaliam nem à tua competência. Triam maluquinhos. Mas fazes de conta que levas aquilo a sério e eles fazem de conta que é a sério…”
Depois fica-se com um contrato a termo certo e sem perspetivas – ou se é operador ou supervisor. Quase nunca se passa da empresa de trabalho temporário para o empregador de facto. Ganha-se entre 600 e 700 euros. Mas parte disso são prémios de produtividade, que também estão ligados à assiduidade, revela Ricardo. “Só recebes se fores 100% assíduo. Uma única falta, mesmo justificada, e retiram-te 20 por cento. Veem-se pessoas a trabalhar cheias de febre…”
A precariedade é isto. “Já tive mais de uma dezena de empregadores e nunca tive um contrato de trabalho que não referisse um acréscimo excecional da atividade”, diz. “É uma enorme mentira. Vender roupa ou livros é excecional? Atender telefonemas? Para uma função permanente, contrato permanente! A precariedade é uma gigantesca ilegalidade, mas nós vivemos num conto de fadas. Andamos todos a fazer de conta. Os patrões, as autoridades e nós mesmos.”
VETERINÁRIA EM SALDO
“Todos os trabalhos que tive em Portugal” – como hospedeira de eventos, a distribuir publicidade, ou a fazer substituições nos períodos de férias – “foram pagos em ‘envelope'”, conta Rita Gordo, médica veterinária de 25 anos. “A minha primeira oferta de emprego foi numa aldeia no Norte, oito horas de horário ‘normal’, mais estar 24 horas por dia disponível, fins de semana incluídos, por 600 euros e o alojamento por minha conta. Não aceitei. Ia pagar para trabalhar.” Como por cá o trabalho escasseava, Rita voou para Moçambique, com o namorado. “Arranjámos emprego, com contrato, a dar aulas numa universidade, graças a um professor que conhecemos. Estivemos lá 15 meses. Gostámos. Ganhávamos 500/600 euros cada um, mas dava para ir jantar fora, passear ao fim de semana, o que não fazemos cá.” De volta ao País, Rita passa agora os dias a entregar currículos em clínicas de veterinária, ou a surfar nos portais de emprego nacionais. Está a escrever um livro, técnico, sobre agricultura em Moçambique e vive numa casa cedida, sem renda, por um familiar. Vai sobrevivendo com o que economizou em terras moçambicanas e trabalhos esporádicos em clínicas veterinárias, por cinco euros à hora. “Estamos em Portugal desde dezembro. Quisemos mesmo voltar. É cá que temos família e é aqui que temos de lutar. Isto tem de mudar.”
O ARQUITETO DO QUIOSQUE
De avental vestido e com um sorriso simpático, pede-nos um bocadinho. “Estou quase a sair”, diz Rafael Vieira, arquiteto, 31 anos. São quase 4 da tarde de um sábado soalheiro. No domingo a rotina será a mesma. Servir bebidas, bolos e salgados a quem passa no Príncipe Real, em Lisboa. É o emprego no quiosque, aos fins de semana, que lhe permite pagar a renda do quarto alugado onde vive. Ganha 300 euros e paga o mesmo de casa.
É um verdadeiro trabalhador multifunção. Está a traduzir uma tese de mestrado por 20 euros, e é responsável pelo alvará de construção de uma empresa, mas não lhe pedem nada há muitos meses. Escreve para uma revista cultural online que lhe assegura o ordenado mínimo a recibos verdes, colabora com outra publicação que lhe paga 75 euros por artigo (embora as solicitações, aqui, tenham hiatos) e ainda disserta sobre cinema, a 20 euros por texto. Prepara-se também para dar explicações de Geometria Descritiva – assim lhe cheguem os livros, que o pai, em Coimbra, lhe irá mandar.
Rafael Vieira chegou à capital há seis anos, depois de receber uma proposta de trabalho de um gabinete de arquitetura. “Tinha contrato e ao fim de um ano já ganhava 1 700 euros.” Era uma “vida incrível”. Vivia sozinho num T1 do Bairro Alto por 500 euros. Comprou um carro em segunda mão, um ecrã LCD e instalou TV por cabo. Tudo correu bem até à crise da construção civil. Primeiro, passou a receber metade do ordenado, através de recibo verde. Depois, passou a estar só a recibo verde. Quando, há três anos, lhe propuseram ficar a ganhar à comissão, saiu.
“Vendi o carro, o LCD e mudei de casa.” Mandou 200 currículos numa semana. Responderam duas empresas a dizer que não tinham vaga. Acabou por se envolver num projeto de publicidade com um amigo. Criaram a campanha publicitária da fibra ótica de um grande grupo de telecomunicações. Resolveram então avançar para uma empresa própria, mas o negócio não correu bem. A firma acumulou dívidas, mais de 30 mil euros, e a Rafael cabia pagar metade. “Comecei a receber cartas com ameaças de contencioso. Eu não pagava porque não tinha dinheiro. Queria estar bem com o Estado, mas não conseguia.”
A família ofereceu-se para pagar. “Até hoje não sei se pediram crédito. Vou começar a devolver 50 euros por mês. Para já é o que consigo.” Falta saldar a dívida à Segurança Social, que ascende a 900 euros. Uma tarefa difícil para quem apenas sobram 140 euros por mês. A desilusão é evidente: “O pior disto tudo é não saber como é que vou estar daqui a dois meses.” E a arquitetura? “Um sonho.”
DE JORNALISTA A TALHANTE
Em dois anos e meio – desde que se licenciou na Universidade do Porto (UP) – Marisa Ferreira já colecionou trabalho grátis, pago “por debaixo da mesa” e a recibos verdes. Em todas as ocasiões, na verdade, o salário nem dava para as despesas de deslocação e de alimentação. De pouco valeram os 14 valores da licenciatura; o mestrado em Comunicação Política que está a acabar; as duas reportagens nomeadas para os Prémios Internacionais de Ciberjornalismo da UP; a prática que, ainda estudante, se esforçou por obter num jornal e numa rádio de Vila do Conde. Desempregada, com 25 anos, a residir em casa dos pais e com a vida social reduzida para poupar – “Vou ao cinema uma vez por ano e janto fora de três em três meses” -, reparte-se entre o talho do pai (onde tanto atende clientes, faz a contabilidade ou desossa carne), a ajuda à mãe, doméstica, e o estudo para o mestrado. Nunca pensou que seria tão difícil. “Se fosse hoje, tirava Ciências e depois, sim, estudava Jornalismo, que é a minha paixão.” Filha de pais que emigraram para a Venezuela, agora é ela que se vira para o estrangeiro: “Envio currículos para o Brasil, Moçambique, Angola, Holanda. Até para a China já mandei!”
Esteve num jornal gratuito em Braga, onde fazia notícias, paginava e para onde tinha de levar o próprio computador, com net, para trabalhar. Supostamente receberia 500 euros/mês, mas de três ordenados só ganhou o primeiro. Seguiu-se um jornal de imobiliário em Vila Nova de Gaia, por 350 euros mensais em dinheiro vivo. Aí, além de escrever a única notícia que acompanhava os anúncios, era responsável pelo design gráfico, atendia telefonemas, fazia secretariado e faturação. Depois foi uma produtora radiofónica na Póvoa de Varzim, na qual tinha de pedir um “patrocínio” aos entrevistados. “No mínimo 300 euros – quanto mais desse, mais tempo de antena tinha.” Suportou, contrariada: “Precisava do dinheiro para pagar o meu mestrado e aguentei-me lá três meses.” No final de 2010 ainda tentou emprego num call center, mas não superou a fase de formação. Agora, envia dez currículos por dia, para qualquer tipo de trabalho.
DESEMPREGADO DE LUXO
As medalhas de bom aproveitamento – dez, algumas de ouro – dos Pupilos do Exército, a distinção como melhor do curso, o canudo em Engenharia de Telecomunicações. Tudo lhe augurava um futuro risonho. Filho de um coronel e de uma licenciada em Farmácia, proveniente da classe média católica, habituado à participação cívica, presidente da Associação de Pais da escola de S. Pedro de Sintra, simpatizante do PSD. Tinha mesmo tudo para dar certo. Mas João Paulo Marques, 41 anos, casado, também caiu no desemprego e na precariedade.
“Podia ter escolhido Arquitetura, Engenharia Eletrotécnica, Educação Física ou ter ido para a Academia Militar. Mas queria ter um bom ordenado e na altura o curso parecia o futuro.” Estava-se na segunda metade dos anos 1990 e a indústria das telecomunicações registava uma explosão. Começou em 1997, na Alcatel, com contratos de seis meses, renováveis. Depois mudou-se para a Siemens e a seguir para a Hi-way, uma grande empresa canadiana de telecomunicações, onde atingiu o pico da sua carreira: ganhava 3 mil euros por mês, como gestor de manutenção de redes, com contrato. “Foi nessa altura que conseguimos pagar a casa onde vivíamos e mudarmo-nos para aqui.” O “aqui” é um apartamento de luxo, com piscina e jardim, num condomínio privado na Quinta da Beloura, em Sintra, não longe do campo de golfe, onde vive com a mulher, também engenheira, e as duas filhas, de 9 e 11 anos.
Em 2003, sobreveio uma crise mundial no setor das telecomunicações, com despedimentos em massa e fusões entre grandes multinacionais. “Extinção de cargos, centralização de serviços… Reduziram o pessoal de 60 para 30 pessoas. Veio uma ordem da Irlanda. Eu fui um dos últimos a sair…” Viu-se então, com 34 anos, na situação de desempregado de luxo – 6 500 euros de indemnização, mais três ordenados mínimos de subsídio de desemprego. “É um choque muito grande. Passa-se de um dia hiperagitado para uma rotina muito monótona. Inventam-se coisas para fazer, vai-se passear para a praia…”
João Paulo esteve um ano e meio nesta situação: “Acomodei-me ao subsídio”, reconhece. Talvez porque a situação económica da família em nada tinha mudado. Continuavam as idas ao ginásio, o luxo de uma empregada doméstica, as saídas para jantar fora. No fim, arranjou trabalho numa empresa de sistemas elétricos, embora a ganhar “apenas” 1 500 euros. “Cumpri com todos os objetivos, mas lá veio outra vez uma ordem de Inglaterra e o meu chefe disse-me: ‘Eh pá, tenho de despedir e não posso pagar indemnizações. Nós temos uma sigla para estes casos: L.I.F.O. (Last In First Out, ou o último a chegar é o primeiro a sair).’ E assim foi. A empresa podia ter feito outras opções, por exemplo mudar-se do luxuoso Beloura Office Park. Mas não: as multinacionais tratam as pessoas como objetos.”
Aquela sigla persegue-o desde então. Na Delarue, fabricante de máquinas de multibanco, não conseguiu mais do que três contratos temporários de seis meses e… “L.I.F.O.”. Na Phoenix, um grande fabricante de sistemas de automação industrial alemão, foi o mesmo. O ordenado de João Paulo foi descendo, à medida que se aventurava nos infernos da precariedade e dos recibos de “ato único”: 1 500, 1 350, 1 100 euros brutos. “Acabou-se o ginásio e despedi a empregada. Se me oferecerem mil euros, eu aceito. Mando currículos e só me respondem se omitir a idade…”
SEGUIR A ALMA
Nuno Estevens, 32 anos, descobriu tarde do que gostava mesmo: livros. Mas, formado em Gestão e Administração Pública, andou a deambular alguns anos até saber isso. “O bichinho ficou-me quando, ainda sem o curso terminado, trabalhei um ano na Bertrand. Mas para não deitar o curso fora, insisti na gestão: fui técnico de estatística no INE, financeiro numa empresa de construção civil, trabalhei no BCP. Ganhava razoavelmente bem e ia ser efetivado. Mas não gostava. Até brincava, dizia que era um operário pós-moderno. A lógica dos bancos é a mesma de um exército. Tudo é controlado ao milímetro – até as idas à casa de banho [15 minutos]. Eu não tenho esse perfil. Aí, pensei: ou continuo e vou ser tremendamente infeliz, ou mudo radicalmente as coisas.”
Fez então o mestrado na área do livro e formação de texto e aventurou-se em pequenas experiências na área editorial. Atualmente faz aquilo de que gosta, é bibliotecário, atividade que complementa com revisões e traduções de livros técnicos. Mas isso tem um custo: os recibos verdes e as desvantagens inerentes. “Não tenho qualquer hipótese de conseguir um crédito hipotecário, mas isso até me deixa satisfeito. Eu não sou assim tão crítico de uma postura flexível do trabalho, que me deu a liberdade de mudança aos 26 ou 27 anos, altura em que isso já é muito difícil. Entendo que há uma grande clivagem entre os direitos dos que estão a contrato e os independentes. Mas os recibos verdes, numa fase inicial de relacionamento com as empresas, são necessários.”
Nuno fez o que a alma lhe ditava. Talvez por isso não desculpe defeitos à sua geração. “Eu toco fado no Bairro Alto, por terapia e brincadeira. Eu não queria dizer isto, mas vivemos uma cultura de uma certa apologia da inconsciência. Eu não faço três viagens por ano, nem vivo à conta dos meus pais. Se não posso ir para um T2 novo morar com a minha namorada, vou ter de ir para um T1 velho. Espanta-me ver o Bairro Alto com padrões de consumo de 30 euros por noite. Não percebo, francamente, a gestão de expectativas de alguns dos meus amigos. Já há três ou quatro anos se percebeu que esta escalada economicista, capitalista, vai implodir. E, no entanto, eles continuam com bebedeiras como se não houvesse amanhã.”
* Com Joana Fillol e Vânia Fonseca Maia