LEIA O TEXTO DE ANTÓNIO CACHO e VEJA FOTOS INÉDITAS DE EDITE, TIRADAS PELO JORNALISTA
‘O almoço tinha espinhas?” A pergunta era feita quase sem mexer a cabeça, levantando apenas os olhos azuis do papel que estava a ler, por detrás dos óculos em meia-lua.
Nessa altura, a Edite ainda fumava e usava uma longa trança. Também ainda bebia whisky, num copo cheio de gelo, que mexia com o dedo. Mas nunca se atrasava a regressar do almoço, e não transigia com os atrasos dos outros. A Edite era uma escola de exigência e de rigor. Exigia a quem trabalhava com ela o mesmo que a si própria: dedicação, inteligência, sensibilidade, seriedade, persistência, rigor. Rigor ao ponto de uma das suas graças preferidas ser emendar a frase corriqueira de “vou almoçar, tenho fome”: “Fome? Isso é no Biafra. Tu tens é apetite!” Era esse mesmo rigor que a jornalista aplicava ao seu trabalho, desde 1950, quando começou a escrever n’O Intransigente, um bissemanário de Benguela, Angola, com apenas 16 anos. O seu primeiro director contava que tinha o lugar guardado para ela desde que a Edite fizera 4 anos, porque a achava muito perspicaz e curiosa.
No entanto, antes de se apaixonar pelo jornalismo, apaixonou-se pelo desporto.
Enquanto estudou nas Doroteias de Sá da Bandeira jogou básquete chegou a ser considerada a melhor defesa do distrito de Benguela. A sua arma era a força de braço, qualidade que apurou com mestria quando, no final dos anos 60, tinha de levar as páginas da revista Notícia à censura. Edite reclamava sempre contra os cortes. Sempre.
Às mulheres era proibido entrar de calças na sede dos serviços de censura. Mas Edite vestia quase sempre calças. É que dava mais jeito, para andar em serviço, quer em Lisboa, nas cheias de 1967, quer no México, cobrindo os Jogos Olímpicos de 1968, durante quase um mês, quer nos bidonvilles de Paris, para uma grande reportagem a que mais gostou de fazer sobre a emigração portuguesa, publicada em fascículos, no Notícia, revista editada em Portugal e em Angola, com uma mini-redacção em Lisboa, chefiada por ela, e que passava pelo crivo de duas censuras.
À chegada a Lisboa, em 1962, tinha então 28 anos, entrou na redacção da revista Flama, onde não conhecia ninguém, com umas crónicas debaixo do braço -Silva Costa gostou do que leu e deu-lhe trabalho. Daí transitou para o Notícia. E à Flama voltaria, já como chefe de redacção, em 1973. Pelo meio, ficaria conhecida, entre os leitores de Angola, como “a maravilhosa Edite”.
Durante os 57 anos de profissão, distinguidos em 2006 pelo Clube dos Jornalistas com o Prémio Gazeta de Mérito, pela “qualidade das suas reportagens, entrevistas e crónicas, e a capacidade de chefia e edição demonstradas, que a tornaram numa referência ética, cívica e profissional do jornalismo português”, Edite só interrompeu o exercício do jornalismo durante 30 meses, para trabalhar na editora Ulisseia.
Ao recordar os locais por onde passara, referia sempre as pessoas com quem havia trabalhado a lealdade e a solidariedade eram outras das suas características muito fortes. Tinha a mais completa agenda de aniversários de familiares, amigos e companheiros de trabalho, a quem fazia, naquelas datas, um telefonema carinhoso.
Convidada por Beça Múrias para o semanário O Jornal em 1977, as longas entrevistas de Edite Soeiro publicadas no semanário Se7e, também da Projornal, muitas delas a figuras do desporto, marcavam golos. Edite adorava desporto. Sabia tudo, lia tudo, comentava tudo e não só sobre o “seu” Sporting.
Chefiou o Jornal Ilustrado, suplemento de O Jornal, sendo, mesmo já nos anos 80, uma das poucas mulheres jornalistas em cargos de chefia. E fez parte do Conselho de Imprensa, órgão regulador do sector, a partir de 1986, durante seis anos.
Nascida em Benguela a 31 de Março de 1934, filha de uma transmontana de Chaves, Edite era uma mulher à frente do seu tempo. Ainda adolescente, escandalizava meia Angola ao entrar nos cafés de cachimbo na boca para jogar bilhar, com o mesmo à-vontade com que se tornou numa das primeiras jornalistas desportivas em Portugal e, nos anos 70, mãe solteira, chefiou a redacção de uma revista que nada tinha de rendas e bordados. E quando os computadores chegaram à redacção de O Jornal, ela, que já trabalhava nos tempos da composição manual, gostou da mudança.
Fundadora da VISÃO, era, muitas vezes, a primeira a chegar e a última a sair. Adorava aquilo que fazia. “Acho que é preciso fazer as coisas com convicção. Fiz pouco, mas sempre com muita convicção.” Na sua longa vida profissional, ensinou dezenas e dezenas de jornalistas. Trabalhar com ela era uma lição não só de jornalismo como de vida. Em 1998, já depois de um problema cardíaco grave, um cancro atingiu-lhe a bexiga. Mas a sua tenacidade de ferro (a que se aliava, nos momentos difíceis, uma invejável serenidade) ditaram–lhe o destino. Sujeita a uma complicada operação cirúrgica, Edite submeteu-se, depois, à quimioterapia sem nunca deixar de trabalhar. De manhã, hospital, à tarde, redacção. E deu cabo da maldita doença.
Já reformada, continuou a trabalhar na VISÃO, onde integrava o gabinete editorial da revista. “Ponho-me à prova em cada dia que vou à VISÃO”, confidenciou-me, numa entrevista para a JJ, revista do Clube dos Jornalistas. “Quem trabalha comigo não sabe, mas estou a testar-me, a ver se ainda tenho possibilidades de continuar a dar tudo aquilo que penso que devo dar.” Trabalhou até ao dia, há cerca de dois anos, em que, depois de um fecho, tarde e a muito más horas, da revista, caiu na rua, à porta de sua casa. O nome dela, porém, nunca saiu da ficha técnica da VISÃO. Porque é uma referência para todos nós.
Aqueles olhos azuis ficam connosco.