‘Amor de mãe” e “Angola 68” são clássicos que todos recordam, mas o imaginário da tatuagem portuguesa cresceu e, nos últimos anos, alcançou a legitimação artística.
Normalmente, quem gosta não pára. E o corpo passa a ser encarado como uma tela em branco.
Em Portugal, já se multiplicam os novos tatuadores. “Não me canso de namorar o espelho”, conta Néco, tatuador, de 37 anos.
Gravada na cintura, uma mulher alada, com pormenores desbotados, testemunha a primeira vez que foi tatuado, com 16 anos. Pouco demorou até que este carioca, filho de pai português, começasse a treinar o traço em estúdios de outros tatuadores. “Era a única forma de aprender.” Ainda hoje mantém essa vontade de “fazer diferente”, procurando novos estilos e ideias na Internet e em livros, participações em convenções, viagens, contactos com outros profissionais. Apesar disso, afirma: “Vou morrer sem saber como a tatuagem funciona correctamente. Cada pele reage de maneira diferente.” Do Rio de Janeiro, Néco veio para Portugal, onde se instalou há uma década. Passou algum tempo até conseguir estabelecer-se, abrindo o seu estúdio, Funtattoo, na Maia, local que preferiu a qualquer grande cidade. Quem gosta do trabalho, vai à sua procura. “Tatuagem não tem endereço”, diz.
É conhecido pelas reinterpretações das tatuagens old school, de origem anglo-saxónica, capazes de passarem uma mensagem.
As tatuagens orientais, em que um conjunto de imagens conta uma história, são outra das suas especialidades. No dia-a-dia, tem de ser versátil. “Apostar num único estilo é utopia, só não faço o que não tenho à-vontade para fazer e não me interessa, como o realismo.”
MUDANÇA DE MENTALIDADES
Em Portugal, é impossível falar de tatuagens sem mencionar a Bad Bones Tattoo, de Natacha e João Fontinha. Pioneiros no País, recusam-se a divulgar as suas idades. “É para manter um certo mistério”, graceja Natacha. “Costumo dizer que, em vez de idade, temos vontade.” Mas são, pelo menos, quarentões e há quase duas décadas que mantêm o seu mítico estúdio no Bairro Alto, em Lisboa.
Na Bad Bones, reconhecível pelo boneco à porta, que imita um Frankenstein de sombrero mexicano, Natacha e João acompanharam por dentro, desde 1990, a mudança de mentalidade dos portugueses. “A tatuagem tornou-se algo de muito pessoal e as pessoas procuram trabalhos cada vez mais artísticos.
Os locais do corpo escolhidos também passaram a ser mais visíveis: assume-se a tatuagem com orgulho”, observa João.
Não é raro serem os próprios tatuados a evitarem exibir os desenhos para lá do colarinho e da manga da camisa. “É um contrasenso com o qual sofrem, literalmente, na pele”, graceja o sociólogo Vítor Sérgio Ferreira, autor do livro Marcas que demarcam, Tatuagem, body piercing e culturas juvenis.
“São pessoas que valorizam a diferença, que usam o corpo como expressão da identida de, mas acabam por cercear essa manifestação.” A Bad Bones emprega cinco tatuadores a tempo inteiro e está aberta 12 horas por dia, durante toda a semana. Costuma estar presente nos maiores eventos mundiais de tatuagens e pretende “entrar, já para o ano, no mercado asiático “. A clientela é a mais variada possível, o que obriga Natacha e João Fontinha a um constante aperfeiçoamento. “É um desafio e uma procura permanente.” Mas a última palavra é sempre do cliente. “Lidamos com a sensibilidade da pessoa. É uma responsabilidade muito grande, pois trabalhamos com o corpo e não há margem para erros.” E até os pedidos mais inusitados, como o de um professor de Filosofi a que “quis cobrir de negro metade do corpo”, merecem todo o empenho. “Pode parecer estranho, mas fazia sentido, para ele. É esse lado íntimo e pessoal que torna esta arte tão atractiva.” Quem deseje, por exemplo, perpetuar o rosto de um familiar no seu próprio corpo, encontra no Gringotattoofi el o traço ideal.
Nélson Leite, 35 anos, fixou-se em Penafiel e, em quatro anos, conquistou uma carteira de clientes assíduos. “Alguns trazem, todos os anos, ideias novas e acabam sempre por levar alguma coisa tatuada. É uma forma de marcarem certas etapas da vida.” Os primeiros tempos não foram fáceis para Gringo (como é chamado), obrigado a lidar com os preconceitos de uma cidade pequena. Mas foi das suas mãos que saiu um rosto de Cristo perfeito, capaz de fazer vacilar as mães mais empedernidas. Nélson, homem religioso, tem uma predilecção especial por arte sacra.
“É uma maneira de abençoar as tatuagens.” Tudo começou em 1997. Para assinalar a conquista de um título de campeão ibérico de artes marciais, Gringo resolveu tatuar nas costas um enorme dragão, desenhado por ele próprio. “Achei muito curioso o montar das máquinas, a fluidez do traço, a mistura de cores. Ficou o bichinho.” Anos mais tarde, na Holanda, fez um curso de tatuador. Seguiram-se convites para curtas passagens pela Califórnia e pelo Brasil, onde apurou as técnicas do realismo e dos sombreados. No seu estúdio, aparecem todo o tipo de pessoas e pedidos, desde uma senhora com 68 anos, pronta a gravar no corpo uma coroa de Cristo, a um ferrenho adepto benfiquista, desejoso de ter um enorme e pormenorizado Estádio da Luz nas costas.
Apesar de Nélson torcer pelo FCPorto, não lhe tremeram as mãos.
LEGITIMIDADE ARTÍSTICA
Para Castor, nome pelo qual é conhecido, no meio, o romeno Constantin Lapusneanu, 33 anos, “é fundamental uma relação de confiança” entre cliente e tatuador. “Muitas vezes apresentam-me apenas uma ideia ou um conceito e depois dão-me liberdade para criar”, revela.
Com um curso de tatuagem tirado na universidade de arte George Enescu, em Lasi, Roménia, já era um tatuador de renome no seu país e conhecido na Europa quando, no final de 2002, recebeu um convite da El Diablo Tattoos para passar uma temporada em Portugal. “Há algum tempo que decidira mudar-me para outro país, mais central”, diz. Tinha pensado em Espanha ou França, mas encontrou aqui um mercado em crescimento e estabeleceu-se, com um estúdio no Barreiro, o Queen of Hearts, a partir do qual se tornou numa referência nacional.
Tal como João Vieira, 35 anos. Os que conhecem o seu trabalho elogiam-lhe a competência.
Das suas mãos nascem criaturas medonhas, trabalhadas com sombras e expressões carregadas, mistura de cartoon e de representações realistas. “Quem faz um bom retrato, faz tudo.” Já frequentava o curso de Escultura da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa quando teve o primeiro encontro com a tatuagem, aos 22 anos. Foi de tal modo crítico do trabalho do tatuador, dando-lhe instruções, que este ripostou: “Não queres que te passe o material para as mãos?” Desafiado, encomendou uma máquina e entregou-se à prática, em napas sintéticas. “É outra arte, só a técnica e o material diferem.” Quinze dias depois, começou a colaborar com o estúdio El Diablo. E após dez anos a trabalhar em Lisboa, procurou a tranquilidade do Algarve, instalando o seu próprio estúdio, Lucky 13, na Quarteira. “Tenho mais tempo para os clientes, muitos vêm de longe. Gosto de pessoas que cultivem a tatuagem.” Tal como Castor, fala de um trabalho conjunto, em que a opinião do tatuado conta muito, porque a tatuagem é uma peça com a qual vai conviver toda a vida. “Quanto melhor o conhecemos, mais a tatuagem vinga.” João Vieira é mais um exemplo da mudança no recrutamento social dos tatuadores, assinalada por Vítor Sérgio Ferreira. “Muitos deles vêm agora do filão das escolas de arte.” Em alguns destes casos, defende, “não se trata de uma vocação, mas de uma via profissionalizante com vantagens em termos expressivos e identitários. Através desta profissão, podem continuar a ser como são e não precisam de se corromper com uma imagem de fachada”.
COMO NA TELEVISÃO
Cada tatuagem tem uma história para contar é este o ponto de partida do Miami Ink, um programa televisivo centrado no dia-a-dia de um estúdio de tatuagens de Miami Beach, que passa no canal People and Arts.
Verdadeiro sucesso de audiências nos Estados Unidos, onde, de acordo com um estudo da Universidade do Ohio, um em cada sete adultos tem uma tatuagem, a influência do Miami Ink fez-se sentir também por cá. “Toda a gente passou a querer carpas koi [lendário peixe migrador chinês],”, ironiza Natacha, que até nem é grande fã do programa. “É um pouco lamechas, mas reconheço que abriu mentalidades.
Muitas pessoas perceberam que a tatuagem não é apenas estética, tem também um lado emotivo muito importante.” Por outro lado, sublinha Joaquim Pedro, 33 anos, “mostrou qualidade artística e ajudou à normalização da tatuagem”, algo que ele próprio procura, como editor do Anuário de Tatttoo&Piercing e organizador da convenção Tattoo & Rock Fest. A quarta edição do certame efectuou-se em 2008, no Pavilhão Atlântico, e mobilizou 10 mil visitantes.
Castor reconhece que, nos últimos anos, o público português se tornou mais interessado e exigente. “Sabem o que querem, pesquisam muito e a maior parte das vezes já trazem o trabalho feito.” Quanto a tendências: “Hoje, anda tudo na onda da mitologia oriental, que é um universo que abre muitas possibilidades ao tatuador.” Efeito Miami Ink? Castor sorri e encolhe os ombros: “Reconheço que ajudou a mudar uma certa imagem de marginal, mas não retrata a realidade do dia-a-dia.” Apesar da moda das carpas, dos dragões e das geishas, Castor elege os desenhos mais sofisticados como o seu tipo de trabalho favorito. “Fazer uma letra ou uma estrela é trabalho, mas quando alguém nos pede uma peça mais elaborada é um estímulo, porque vamos fazer algo único. Uma obra de arte que fica para o resto da vida…”