À beira do precipício, há dois tipos de pessoas: as que voltam para trás e as que dão um passo em frente. Paulo Domingues é dos que avançam, aconteça o que acontecer. O electricista, de 27 anos, já viu, mesmo à sua frente, um amigo estatelar-se e deslocar um ombro, depois de se lançar por uma ravina de oito metros, montado na sua bicicleta todo-o-terreno. Mas, em vez de interpretar o acidente como um sinal dos céus para estar quieto, apenas esperou que tirassem o acidentado do caminho e saltou também. Teve mais sorte: aterrou de pé.Paulo não consegue explicar por que razão se atirou. “Achei que me podia magoar, mas fui. Se calhar, pelo orgulho de fazer uma coisa a que poucos se atrevem. Ou para provar a mim mesmo que era capaz de ultrapassar o medo.” Os amantes de desportos extremos são empurrados por uma força que, aos olhos de quem prefere encarar o perigo de longe, parece invisível. Mas eles sentem-na. É assim que encontram – e esticam – os seus limites.A popularidade de actividades associadas ao risco nunca foi maior. Entre 2001 e o mês passado, nasceram 415 empresas de animação turística (dedicadas a desportos de natureza), com alvarás atribuídos pela Direcção-Geral de Turismo. Um indicador claro da popularidade dos hobbies radicais. Mas como se explica essa força que, parecendo um vírus, leva cada vez mais pessoas a abandonarem o conforto de uma vida segura para se atirarem, nos tempos livres, de ravinas de oito metros? O que passa pela cabeça de quem decide pôr o corpo (e a vida) em perigo em troca da emoção de escalar um penhasco de 30 metros, subir uma montanha de 6 mil, saltar de um prédio com um pára-quedas às costas, surfar ondas que esbarram em perigosas rochas ou mergulhar em grutas inundadas?Risco para todosOs praticantes de desportos extremos não têm vergonha em admitir que têm medo – porque sentem orgulho em o enfrentar olhos nos olhos. “É esse desafio que me move”, diz Ruben Gonzalez, 29 anos. E move-o para águas perigosas. O tricampeão nacional de surf está entre os três ou quatro portugueses que procuram ondas junto a costas rochosas. Começou aos 12 anos (sem os pais saberem), quando se deixou contagiar por aqueles “tubos” desertos, apesar de serem muito mais perfeitos do que os das ondas habituais. Claro que há uma boa razão para estes locais não estarem apinhados de surfistas: qualquer erro pode atirar o atleta contra às pedras. “Tenho um amigo que já bateu com o cóxis na rocha e ficou uns tempos sem se poder mexer.” Mas o risco vale a pena. “Torna tudo mais intenso.” Adrenalina saudável Pela primeira vez, uma dúzia de toxicodependentes, alcoólicos e ex-reclusos do Centro de Emprego do Seixal está sozinho perante um desafio – conseguir vencer os diversos obstáculos do circuito aéreo instalado na Mata da Machada, perto do Barreiro. “Isto lá de baixo parece mais fácil!”, alguém grita nas alturas, agarrando com unhas e dentes um dos troncos de árvore que lhe serve de apoio. E o sociólogo Ricardo Martinez, 54 anos, mentor da associação Uma Questão de Equilíbrio, decifra: “Quando estamos afastados dos problemas, eles parecem-nos mais fáceis.” Depois de uma manhã inteira a tentarem equilibrar-se, com cordas atadas ao corpo, sentam-se à sombra das árvores para tirar da experiência algumas lições. “É uma nova adrenalina. Se conseguimos fazer isto, temos capacidade para outras coisas, aprendemos a controlar os nossos medos.” Numa frase, Ricardo Martinez, resume a mensagem a reter. Os desportos de aventura jogam com muitos sentimentos, mas acima de tudo mostram que afinal “vale a pena estar vivo”. O número de pessoas que busca essa intensidade não pára de crescer. Ana Barbosa, 57 anos, vice-presidente da Associação Portuguesa de Empresas de Congressos, Animação Turística e Eventos, confirma que, desde meados dos anos 90, tem havido um enorme aumento de procura, sobretudo por grupos de empresas, mas também famílias e, até, despedidas de solteiro. “As pessoas buscam emoções fortes que lhes permitam fugir do quotidiano. Há uma grande necessidade de evasão. Ninguém gosta de estar duas horas parado no trânsito. No meio da natureza, temos o tempo por nossa conta.” Carlos Neto, investigador da Faculdade de Motricidade Humana (FMH), acrescenta que essa necessidade é de tal forma intensa que as actividades radicais já estão “a criar uma estrutura semelhante à do desporto tradicional.”Margarida Reis, 44 anos, directora de marketing da Vida É Bela, empresa pioneira na oferta de “experiências” (saltos de pára-quedas, voos de balão, passeios de helicóptero), aponta o stress como responsável por este boom. “As pessoas dispõem de tão pouco livre que precisam de o viver intensamente e acrescentar mais emoção à sua vida.” Sobretudo as que têm algum poder de compra, vivem nas cidades e com idades até aos 50 anos, explica. As ofertas mais radicais, no entanto, gozam de maior popularidade entre os jovens, na casa dos 20 anos.O terror da primeira vezNão hão-de ser os cabelos grisalhos ou o quase meio século de vida a impedir Mário Pardo de continuar a lançar-se do alto de prédios, antenas e precipícios. Afinal, anda nisto das alturas vai para 26 anos. Com efeitos terapêuticos. “Sempre fui uma pessoa insegura, com imensos medos”, confessa, “mas na queda livre, arranjei coragem para os enfrentar.” Poderia até dizer-se que pegou no boi pelos cornos – ganhou três campeonatos nacionais, participou em várias provas mundiais e, mais tarde, tornou-se no primeiro português a aderir ao BASE (acrónimo para Building, Antenna, Span, Earth). “Estava perfeitamente aterrorizado quando me estreei, no monte Brento, em Itália. Ter medo é bom, desde que não nos deixemos paralisar por ele.” Especialmente no seu caso. Dos locais, todos eles ilegais, de onde se atira Mário Pardo – Ponte 25 de Abril, Cabo Girão, Barragem de Vilarinho das Furnas, Hotel Alfa – o tempo até ao impacto no chão ronda os cinco segundos e a altura pode não exceder os 50 metros. Ou seja, ao mínimo descuido, zás… E nesta prática não têm sido poucos os desfechos fatais – num site dedicado às fatalidades do BASE jumping, a contabilidade vai nos 112 mortos.Mas, quando corre bem, quando a mão abre o único pára-quedas mesmo antes do impacto, a sensação é difícil de traduzir em palavras. Mário tenta: “Gratificação… Conquista… Gozo… Dá-me gozo empurrar os limites para mais longe.”Preparado para o piorO contacto com a natureza, em forma de evasão, é um dos grandes aliciantes para os radicais. “Nestas actividades não há bandeiras nem balizas”, justifica Albertino Gonçalves, 47 anos, sociólogo. Sem regras escritas, consegue-se assim fugir da rotina, onde tudo está bem delimitado. O perigo é um pequeno preço a pagar por uma recompensa incalculável – esquecer a angústia do dia-a-dia, longe do barulho e da poluição. “Os desportistas desenvolvem uma relação de cumplicidade com a natureza: têm o vento mas aproveitam-no para voar, há uma onda mas é nela que vão surfar.”Há uma gruta inundada e é nela que mergulham, acrescente-se. Pelo menos assim o faz João Neves, 48 anos, vai para duas décadas, um dos poucos mergulhadores espeleológicos que existem em Portugal. “Tive receios enquanto não dominei as técnicas e o meio. É isso que nos mantém dentro dos limites do razoável. Nesta actividade, quem não tem medo, está morto.” O ambiente das grutas não é benevolente, nem perdoa a mais pequena distracção. “Se algo corre mal lá em baixo, estamos impedidos de voltar imediatamente à superfície, como quando se mergulha no mar. Há que fazer todo o percurso inverso para se sair do ambiente subtecto”, explica.A espeleologia aquática está cheia de obstáculos, que desanimam o mais persistente: o equipamento é pesado e complexo, tem de se saber gerir muito bem o oxigénio para o percurso de ida e volta, há um constante risco de derrocadas, tudo num meio labiríntico e desorientador. Um conselho? “Estar sempre preparado para o pior.” Nos desportos de aventura, o mínimo erro pode ser fatal. Quem não tem disciplina e organização, ou não leva a sério a miríade de regras de segurança, arrisca-se a baixar a sua esperança de vida.’Lá no alto somos todos iguais’Mas tudo isso pouco pesa na balança, quando no outro prato está a exploração, o pisar terreno virgem, o ir aonde nunca ninguém foi. Ou aonde muito poucos conseguem ir. Ângelo Felgueiras, 43 anos, conhece bem essa sensação. Desde que se estreou a subir montanhas, no Kilimanjaro, na Tanzânia, há dez anos, o bicho nunca mais o largou. Por estes dias, estará a deixar o monte Denali (6 165 metros de altitude), no Alasca, depois de mais de três semanas de dura expedição. Se conseguir superar esta etapa, ficará a mais de meio da sua promessa: conquistar as sete montanhas mais altas do mundo.”Nos desportos de evasão, descobrem-se capacidades e competências que de outro modo não seriam encontradas. Em situações-limite, as pessoas surpreendem-se a si próprias”, nota o sociólogo Albertino Gonçalves. Há uns anos, por exemplo, não passava pela cabeça de Ângelo que viria a ter prazer com as coisas mais básicas. Mas quando se anda em cima de gelo durante dias a fio, com a casa às costas dentro de uma mochila, se dorme em tendas no meio da neve, se morre de frio à noite (as temperaturas oscilam entre os dez e os 40 graus abaixo de zero), há um pormenor que dá conforto. “Sente-se uma anestesia social. Lá no alto somos todos iguais.”Vencida a montanha, recebe-se um novo prémio. “Atingir o topo é a recompensa pelo esforço despendido até lá se chegar. Mas depois ainda há que fazer o percurso inverso, a descer…”, lembra Rui Rosado, 31 anos, professor de escalada e montanhismo na Universidade Lusófona, em Lisboa.O vício do perigoÂngelo move-se pelo prazer de ir mais longe, de conhecer novos sítios, de tratar por tu a natureza. E também gosta da sensação causada pela oxigenação do cérebro. “Os desportos de aventura confrontam o corpo com a imprevisibilidade do meio natural, com o perigo”, realça Carlos Neto. Quando as pessoas são colocadas perante essa situação, o corpo desenvolve uma resposta ao stress. Como explica o especialista em medicina desportiva, Luís Horta, 49 anos, o organismo sofre uma descarga de hormonas – a mais conhecida delas é a adrenalina – para conseguir ultrapassar o perigo iminente. “Isso sente-se através do aumento do tónus muscular, da frequência cardíaca e respiratória e do estado de alerta.” Ao mesmo tempo, quem pratica um desporto por um período longo de tempo, produz mais endomorfinas – substâncias do hipotálamo com uma constituição semelhante à morfina. “Ao fazermos uma actividade física intensa ficamos dependentes dessas substâncias”, nota o médico. Estes dois factores aliados podem desencadear comportamentos de adição. “Os desportos de aventura são viciantes, causam vertigem, e garantem a existência ao se confrontar com a morte”, resume Carlos Neto, da FMH. Por falar em vertigem, Kimie Kon, 27 anos, prepara-se para escalar, pela enésima vez, uma ravina extraprumada (com inclinação para fora), na Arrábida. Lá em baixo, no sopé da serra, estende-se uma das mais belas paisagens do País, com o mar a rodear a Península de Tróia e a banhar praias de areia quase branca. Um postal perfeito, mas que não merece nem um olhar de soslaio da professora de Educação Física. É aquela simples parede nua que a chama. “Quando dou por mim a meio da subida, sinto-me feliz.”Coração na bocaSempre que tem algum tempo livre, pega no equipamento e segue para as melhores paredes naturais que conhece. Cada uma delas é um desafio a vencer. “Todos os escaladores têm um projecto, um percurso específico numa parede. O meu, agora, é esta, a Rampa. Ando há algum tempo a tentar subi-la.”Os seus onze anos de escalada já lhe provocaram muita dor. Certa vez, rompeu o retináculo que segura o tendão ao osso do dedo e ficou semanas sem poder, sequer, abrir um frasco. Outra, lesionou os ombros de tal forma que nem conseguia andar de bicicleta. E chegou a ter de ser levada para casa ao colo, depois de bater com as pernas numa rocha. Apesar destes episódios, Kimie acha que até tem tido sorte, recordando os amigos que já partiram a bacia, mãos e braços – um deles caiu mesmo de uma altura de 17 metros. Mas nem umas mazelas, ou uns exemplos menos felizes, a fazem desistir. “A adrenalina e a intensidade são tão fortes… Fica-se com o coração na boca, com a sensação de podermos cair a qualquer momento, e no final sentimo-nos bem, por termos conseguido ultrapassar o medo.”Está aqui uma das explicações psicológicas para o que leva tanta gente a procurar o risco, garante Susana Veloso, 35 anos, coordenadora do gabinete de Psicologia Clínica e Desporto da Universidade Lusófona. “Quem se dedica a estas actividades habitua-se à sensação de prazer causada pelo alívio que sucede ao medo. Daí que se arrisque cada vez mais: maior o medo, maior o alívio. E isso alimenta-lhes a auto-estima e a confiança.”À custa de cicatrizes, diria Paulo Domingues. O betetista já deslocou dedos, duas rótulas, tendões, sofreu entorses e cortou o lábio. “A gente não pode fugir do nosso destino.” E lançar-se de uma ravina com oito metros, de bicicleta não é forçar esse destino? “Bem… É…” Ri-se. O medo vai sempre acompanhá-lo, sim. Mas, se ele não existisse, Paulo também não podia enfrentá-lo.
Atracção pelo abismo
Coleccionam sustos e ossos partidos, mas isso não os faz parar. O que leva cada vez mais pessoas a abandonar o conforto da rotina, para arriscar a vida, em nome da aventura? Veja o vídeo.