Pela manhã desta sexta-feira, primeiro dia do resto de um confinamento nacional que se espera ser de um mês, Marisa Matias foi ao encontro daqueles para quem o retraimento e o isolamento têm sido palavras de ordem durante a pandemia.
Após uma entrevista à rádio pública, a candidata à presidência da República rumou à SOS Animal, em Lisboa, que, com as receitas do negócio veterinário, alavanca ações de resgate de animais domésticos, cujos abandonos estão a aumentar nos últimos dias devido à partida de imigrantes, de gente que perde fontes de rendimento e de quem teve de deixar tudo para regressar a casa dos pais – de acordo com aquela organização.
Pouco depois das 11 horas, a bloquista entrou nas instalações daquela associação instalada na Horta Nova, junto ao Bairro Padre Cruz, conhecido há mais de 40 anos como o bairro das famílias pobres, onde cerca de dez moradores que a viram chegar acabariam por aguardar que saísse para fazer valer o seu descontentamento.
Perante o espaço exíguo do hospital veterinário da SOS, cada dupla de jornalistas que entrou à vez no espaço encontrou Marisa embevecida com Cometa, um cachorrinho magrela que, tal como Vénus e Dançarina, carrega um olhar triste pelas condições que o levaram até ali, a pequenas jaulas onde estão em tratamento devido a maus tratos que lhes foram infligidos. “Ai, ele não me para de me beijar e de me comer o cabelo”, riu a candidata, quando a VISÃO lhe perguntou se tem animais domésticos.
“Adoraria ter [animais domésticos de companhia], porque na minha família sempre tivemos cães, mas em Bruxelas é completamente impossível. Não teria condições, para grande pena minha. Mas lembro-me muito do nosso XL“, respondeu, ao estender a mão a Vénus enquanto Cometa lhe mordiscava o cabelo. XL? “Sim, não se percebe logo, era gigante”, ri. Mais em baixo, Dançarina aguarda que tal aparato dê pela sua presença, numa jaulinha.
Segundo a presidente da SOS, Sandra Duarte Cardoso, Dançarina foi atirada para o lixo num saco e ali está, com um ar amedrontado e um pouco perdido, em tratamento para conseguir ultrapassar mais um obstáculo e esperar por uma outra família.
Contestação de moradores pobres
É a mesma dirigente que, já cá fora, há de confessar que convidou todos os sete candidatos presidenciais. Levou nega de seis. “Mais nenhum candidato nos respondeu, nem às questões sobre o transporte vivo de animais, sobre quais eram a suas posições sobre touradas, a utilização de animais em circo ou delfinários. sobre a lei da caça ou a proteção animal…”, admitiu, frisando que “é bastante complicado” ter “20 ou 30 animais em permanência” ali internados, já que o espaço está “aberto ao grande público para financiar este projeto”.
Foi aí que o grupo de dez moradores, que tinham ficado ali a olhar o aparato, reagiu. “Já estive para fechar aquilo [a SOS]”, gritou um. “Levaram-me 120 euros para me tratar do cão. Ladrões!”, acrescentou outro. Mais tarde, confessaram à VISÃO que, por estarem num bairro pobre, a associação deveria levar-lhes “preços em conta” pelos tratamentos prestados aos companheiros de quatro patas.
Sandra Duarte frisou ainda que se, “durante o primeiro confinamento, houve uma grande preocupação em relação à desinformação sobre a Covid-19 – porque os animais têm coronavírus, mas outros [que não o Covid], e receavam que fossem transmissores. Agora, assistimos novamente a abandonos porque as pessoas estão a regressar aos seus países de origem ou obrigados a ir viver com familiares ou para melhorar as suas condições de vida”.
Pedidos de ajuda sucedem-se
Marisa defendeu depois que “qualquer sociedade que se preze não pode passar ao lado de muitas atrocidades que têm acontecido contra o bem-estar animal”, pedindo mais apoios para o setor. “Não podemos esperar que sejam só estas associações a ter essa resposta [para o abandono de animais]”, disse, lembrando que no currículo sobre tal matéria contra com um lugar “na comissão [europarlamentar] de inquérito ao transporte de animais vivos”
Quando alertava para o fato de o Governo ter de arranjar apoios céleres para as empresas “unipessoais”, entre outros setores, já que “estes tempos exigem novos respostas a tempos sem precedentes”, uma cidadã brasileira, Dalila Teixeira, foi se aproximando à direita da candidata, enquanto ia limpando lágrimas do rosto.
“Está difícil demais a minha vida, principalmente por estar noutro país”, disse Dalila, de mãos abertas, assim que Marisa acabou de falar. A cidadã brasileira, que já conseguiu um visto de residência ao casar com um primo afastado português, em maio de 2020, desfiou a sua história: chegou a Portugal em agosto de 2019, vinda do outro lado do Atlântico onde durante anos fora repórter, animadora de rádio e assessora [no Brasil, a assessoria e o jornalismo não são deontologicamente incompatíveis]. Nos primeiros meses, trabalhou num restaurante, até ao primeiro confinamento.
“Desde então não consegui mais nenhum trabalho. Me ajudem por favor. Qualquer coisa, sei lá, eu fui repórter lá. Meu marido, aquele ali na janela, me disse: vai lá [ajuntamento de jornalistas] pode ser que dê sorte. ‘Tá’ muito difícil a barra, ainda pior quando se é mulher brasileira, né?”, disse Dalila, com uns óculos de sol enormes, que não impediam de se ver as lágrimas escorrerem-lhe pela maçãs do rosto. Emocionada, Marisa mostrou-se impotente: “Oh, minha querida, queria tanto abraçá-la.”
O aparato desapareceu. Marisa colocou a mão na testa, como que a segurar o peso do que acabou de ouvir. “Tem sido assim durante toda a campanha. Há muita gente a quem a pandemia destruiu vidas e que me vêm pedir ajuda”, admitiu à VISÃO, antes de partir para as Caldas da Rainha, onde tinha encontro marcado com uma trabalhadora do Serviço Nacional de Saúde que, em tempos de Covid-19, está numa frente dupla de combate, ao bater-se contra a precariedade.
Ao longe mantiveram-se os tais dez moradores. Três deles vivem ali desde o Estado Novo, quando foram realojados em casas pré-fabricadas, arrancados de bairros de lata da periferia devido a obras infraestruturais do regime. Depois, há cerca de 30 anos, viram as casas irem abaixo para entrarem nos prédios que foram então construídos à luz dos planos especiais de realojamento. “Até pensei que ela [Marisa] ia prometer alguma coisa. Vá lá, pelo menos teve vergonha na cara, porque os outros vêm aí e não fazem nada”, disse uma moradora, que deixou um aviso. “O Ventura que não meta cá os pés.”