“Depois de ter estado aqui a levar pancada de todos, tenho direito a defender-me…”. A frase é de António Costa e não há melhor para legendar o que se passou ao longo de duas horas no único debate (na RTP) com todos os partidos que elegeram representação parlamentar em 2019. Foi, de facto, a noite do “tiro ao Costa” ou “tiro ao PS”, se quiserem. E não se pode dizer que os disparos tenham falhado o alvo nem que o secretário-geral socialista tenha feito uso de uma velha máxima cunhada pelo antigo ministro Jorge Coelho. “Quem se mete com o PS leva”? Nem por isso. Por momentos, Costa pareceu até disposto a dar a outra face, embora, a dada altura, quando “metralhado” pelos argumentos da direita e colocado cirurgicamente na mira pela esquerda – só o PAN abdicou da “violência” e não esgravatou as feridas – tenha reagido.
O ainda primeiro-ministro foi mecânico, murcho, não fugiu da cartilha que leva às eleições – “estabilidade, estabilidade, estabilidade” – e fez das perguntas mais diretas e escorregadias autênticas rotundas. Quando alguns julgavam tê-lo encurralado ou ferido à séria, Costa, apesar de atingido, lá ia sobrevivendo a papaguear as virtudes dos últimos seis anos, de sobrolho levantado, sorriso irónico e ar pachorrento. Provavelmente, dera já este debate como perdido, dadas as desvantajosas circunstâncias: foram 7 contra 1, ainda que com nuances. Só o PAN se manteve em registo…zen, embora não cedesse à tentação de massajar o ego socialista a bem de um futuro entendimento. De resto, Costa nem sequer pôde contar com uma ténue solidariedade à esquerda, em nome das conquistas passadas da “Geringonça”: Catarina Martins (BE) e João Oliveira (CDU, no lugar de Jerónimo de Sousa, a recuperar de intervenção cirúrgica delicada) lembraram-lhe, por mais de uma vez, tudo o que não foi e podia ter sido feito para evitar o desenlace eleitoral a que chegámos. Apesar disso, a líder do Bloco propõe um novo “contrato” de governação. “Entendam-se!”, pedem-lhe na rua. Diz ela.
DIREITA ASSANHADA, ESQUERDA MODERADA
André Ventura (Chega), mais domesticado que nunca, soltou a ironia da noite: “Ouvir António Costa é como sentarmo-nos no sofá e ver o filme da nossa vida”. Por vezes, parece, de facto. O chefe de Governo foge a tentação de dizer que vivemos o idílio mesmo em tempos de pandemia – o que ninguém, por certo, acreditaria – mas não sai do registo “se isto foi bom, imaginem sem covid”, passe a caricatura. O moderador Carlos Daniel bem tentou que ele dissesse o que faria se não tivesse maioria. Mas o líder do PS continuou a debitar, de forma monótona, os feitos da governação e a estabilidade que só os socialistas, em modo mãos livres, garantem. O chefe de Governo assumiu, finalmente – questão semântica – que a maioria que deseja é mesmo “absoluta”, mas mais não destapou caso o cenário o coloque diante de uma “ecogeringonça” ou um “bloco central”. João Oliveira recordou-lhe que “a vida das pessoas com governos de maioria absoluta são as mais instáveis”, mas, à esquerda, só Rui Tavares (Livre) desvaloriza a conversa e os semáforos que se anunciam: o o candidato rejeita conduzir em contramão, atrapalhando o trânsito: “Não vale a pena ter grandes jogos de sombras chinesas”, advertiu. “No dia a seguir às eleições, António Costa vai dizer «vamos lá ver», que é o seu bordão de linguagem, e a seguir vamos ver…”, afirmou, certo de que o primeiro-ministro será forçado a contratualizar nova “geringonça” para governar, seja em versão “eco” minimal ou “mais alargada”, onde a variedade das esquerdas possa fazer os “pesos e contrapesos” necessários.
Do primeiro ao último minuto, as direitas declararam aberta a caça ao PS. E vinham bem recheadas de munições. Rui Rio (PSD) foi o único a manter o registo institucional, “sensato”, a bem da nação, da governação e da crítica construtiva. “Não quero fazer uma revolução, não quero partir tudo”, frisou. Mas os restantes estavam assanhados. “Seria bom que trouxesse o Pedro Nuno Santos para este debate”, provocou, logo de início, Francisco Rodrigues dos Santos (CDS-PP). O líder democrata-cristão vê no putativo “sucessor” de Costa a concretização dos sonhos húmidos da “ala bolchevique do PS” que, com o apoio do BE e PCP, possa garantir a estabilidade “dos tempos do PREC”. Pelos vistos, o presidente do CDS é também o único, à direita, a perceber que, em 2015, foi inaugurada “uma nova praxe parlamentar”, já reproduzida nos Açores. “O voto útil acabou”, avisou. O “elefante na sala” é agora “a possibilidade de um voto no PSD ir parar ao bolso de António Costa”, garante. Quando o secretário-geral do PS driblou uma pergunta de Carlos Daniel sobre os motivos pelos quais Portugal foi alegadamente ultrapassado por países que só mais recentemente aderiram à União Europeia – “a História explica” respondeu Costa, sem explicar – o presidente do CDS-PP não perdeu a deixa: “O PS é responsável por dois terços da governação democrática”, incluindo “duas bancarrotas”, afirmou, aproveitando para desmontar o “conto de fadas da esquerda” da última meia-dúzia de anos.
João Cotrim de Figueiredo (IL) preferiu acusar António Costa de dramatizar o futuro do País – “parece que se o PS não for governo vem aí perigos imensos, um filme de terror” – e recordou-lhe o facto de ter coordenado a moção de estratégia de José Sócrates em 2011: a tal, lembrou Cotrim, que prometeu a estabilidade que teria curta duração, ao embater na troika. Se a direita tem um futuro conjunto, isso já é outra conversa. André Ventura exigirá participar num governo se tiver mais de 7 por cento dos votos. João Cotrim de Figueiredo reclama, no mínimo, cinco deputados, para se sentar com o PSD com algum poder negocial. “Há uma cultura democrática comum”, admite, mas recusa facilidades nas negociações. “Sabe-se como começam, não se sabe como acabam..”.
ECONOMIA, SAÚDE E…O DESERTO
Dezenas de debates depois desaguou-se no debate onde tudo estaria em cima da mesa. Mas o banquete de assuntos anunciado foi, afinal, uma refeição frugal. Falou-se de Economia e Saúde, com uns laivos ambientais e pouco mais, se excetuarmos o habitual momento justiceiro de Ventura: “Temos décadas de bandidos a roubar o nosso País. Não podemos continuar a ser o País em que todos gamam e ninguém vai para a prisão”. Cultura, Ciência, Habitação, Regionalização e Demografia foram alguns dos parentes pobres dos debates a dois e também deste, por maioria de razão.
No resto, nada de novo: as direitas querem menos impostos para pessoas e empresas, mais parcerias público privadas na Saúde, menos Estado, melhor Estado e até zero de Estado “a que chegámos”. E o CDS pede mais apoio para os idosos que têm de escolher entre comprar alimentos ou aviar uma receita na farmácia. As esquerdas querem reforço dos serviços públicos, um SNS blindado, salários dignos, pensões melhoradas e que ninguém fique para trás. Neste debate, a direita até pareceu unida, mesmo com Ventura presente. A esquerda apresentou-se desunida, mas à antiga, com novos muros erguidos e pontes em ruínas, exceção feita a Rui Tavares, que não dramatiza os desentendimentos. Foi, de resto, o único a testar a calculadora digital da IL na Internet para saber se, na verdade, os mais desfavorecidos iam pagar menos impostos, tal com está no programa: feita a simulação, concluiu que quem ganha mais teria, afinal, reduções de “centenas e milhares de euros”.
Conversas cruzadas houve poucas. Costa e Rio lá se pegaram por uns minutos por causa da narrativa do “paga-não paga” na saúde, com o líder socialista a acusar o advesrário de querer colocar a classe média a pagar o SNS. O presidente do PSD desmentiu-o e ficou-se por ali. Catarina Martins provocou a irritação geral das direitas ao acusá-las de cumplicidade com o grande negócio da Saúde. “Quem a ouvir, até parece que fomos nós que aprovamos os orçamentos dos últimos seis anos”, atirou-lhe Ventura.
Costa não chegou a ir ao tapete, como se diz no boxe, mas andou lá perto. Alvo principal das críticas de uns e de outros, ora pela oportunidade perdida à esquerda, ora pelo País que é o pesadelo da direita, terminou o debate a pedir ao País para ajudar o PS a “virar a página”. Mas virar a página, naquele momento, era mesmo sair dali para fora.
O MAIS SAUDADO
Uma nota final para o desempenho de Carlos Daniel, bastante saudado por Cotrim de Figueiredo e Rui Tavares pelos “apertos” que ia provocando com as suas questões: o apresentador e moderador do debate esgotou um assinalável reportório de perguntas incisivas, bem preparadas, com refinadas cascas de banana e ironia inteligente. Nada ficou por indagar e as insistências para que as respostas concretas fossem dadas foram bem urdidas, como quem desenha um círculo em terra batida aos perus. Acontece, porém, que o Natal já passou e os “perus” deste caso sobreviveram sem degola, apesar de terem ficado bem expostos nas suas contradições, fragilidades, meias-verdades ou vãs filosofias. O jornalismo, esse, saiu por cima, pelo menos.
FRASES MARCANTES
ANTÓNIO COSTA
“São os portugueses que decidem quais são as ferramentas que põe ao meu dispor”.
“Uma maioria de direita não é de governo: é de desgoverno”.
RUI RIO
“Se perder as eleições, nesse dia à noite não saio. Acho isso uma manobra teatral”.
CATARINA MARTINS
“No dia a seguir [às eleições] vamos estar a discutir um contrato de governo”.
JOÃO OLIVEIRA
“[Na noite das eleições, em 2015] António Costa já tinha deitado a toalha ao chão, já tinha dado os parabéns a Pedro Passos Coelho e a Paulo Portas”.
“O SNS está a ser alvo de um processo de desmantelamento médico a médico, enfermeiro a enfermeiro”.
FRANCISCO RODRIGUES DOS SANTOS
“Como dizia Adriano Moreira, o voto só é útil para quem o recebe”.
“O sucesso escolar está limitado pela carteira do papá e da mamã ou pelo código postal”.
INÊS SOUSA REAL
“Chegámos a ser acusados de ser folclore parlamentar”.
“Tivemos aqui quase uma aula de Economia, mas os portugueses querem soluções”.
RUI TAVARES
“Não podemos ter um País a jogar como a seleção, para o empate. Quando se joga para o empate perde-se”.
ANDRÉ VENTURA
“Gastamos 300 milhões por ano em observatórios, fundações, instituições, observatórios contra o racismo, contra o diabo que os carregue…”.
A GAFFE…
…da noite vai para André Ventura. Ao tentar dizer os nomes dos países de Leste que supostamente já ultrapassaram Portugal em termos de crescimento económico e boa saúde financeira, citou a já defunta…Checoslováquia.