Se o líder de um partido chega a um frente a frente e falha a oportunidade, logo no início, de explicar com clareza o que não conseguiu transmitir três dias antes sobre algo que se tornou um caso político, como foi a questão da prisão perpétua, tudo o que vier a seguir arrisca-se a ter a mesma toada. E assim foi com Rui Rio, no embate com Catarina Martins, na noite desta quarta-feira, ao quarto dia de debates.
Mesmo tendo apelado por “read my lips” [trad.: “leiam-me os lábios”], para que melhor entendessem a sua mensagem, o líder do PSD, confrontado com a necessidade de apresentar as medidas que defende para importantes setores do Estado, mais atingidos pelo esforço com a pandemia, como a Segurança Social e o Serviço Nacional de Saúde, agarrou-se a umas quantas ideias soltas, atirando para um programa de Governo que só verá a luz do dia no final desta semana.
A coordenadora do BE acabou por aproveitar a dificuldade discursiva de Rio, insistiu nas suas bandeiras para o seu eleitorado, colou o social-democrata à gestão de Passos e da Troika, e até chegou a frisar que “o BE é dos que mais têm contribuído” para o equilíbrio das contas públicas. E tudo isto com o feito de nunca ter falado nem no PS, nem em António Costa.
PRISÃO PERPÉTUA
RUI RIO
“Ficou claro que eu sou contra a prisão perpétua as ficou claro que o que André Ventura não defende a prisão perpétua, mas um regime mais equilibrado”
“Read my lips”. Já disse que não. O que ficou provado, e foi isso que eu queria, é que o Chega não quer a prisão preventiva mas uma coisa mitigada”.
CATARINA MARTINS
“Confesso que fico preocupada quando ouço Rui Rio, porque, mais que explicar porque é que a prisão perpétua é inaceitável, está a tentar normalizar as coisas que diz a extrema-direita”.
Contexto: Com um sorriso nos lábios, como se o caso não tivesse sido cavalgado pelo líder do PS e principal opositor do PSD – que até fez um vídeo para apontar baterias ao assunto -, Rui Rio explicou que não concorda com mexidas na moldura penal, que comporte penas perpétuas, como defende André Ventura. “O problema da Justiça não é a dimensão das penas, quando olha para os casos que tem em cima da mesa”, disse, salientando que “o que ficou provado não é uma normalização da extrema-direita, mas algo” sobre o qual o Chega não será honesto a explicar.
Catarina Martins adotou um tom oposto ao de Rio, muito mais circunspeto e grave, apontou que “a Justiça não é vingança” e que “também não temos um problema das penas leves”. “Acreditamos que cumprida a pena deve haver reinserção”, acrescentou a líder do BE, frisando que o mesmo se aplica nos casos que envolvam terrorismo.
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
RUI RIO
“Portugal gasta mais que a média europeia em termos de saúde e tem uma prestação da Saúde muito pior que essa média”.
“O que precisamos é chamar o setor social e privado, não para privatizar o SNS mas para complementar o que o SNS não consegue fazer”.
“Temos de ter uma politica de recursos humanos – não vou dizer o salário – que leve aqueles que mais que produzem a que tenham um prémio”.
“Neste momento atirar mais dinheiro para cima do SNS não; [a solução] é gerir melhor”.
“Também não desisto do SNS, mas há mais de quatro milhões de portugueses que pagam um seguro. Eu quero gerir bem o SNS”.
CATARINA MARTINS
“O BE é dos partidos que mais tem contribuído mais para o equilibro orçamental. Bem sei que o Rui Rio não gosta da forma como conseguimos equilibrar orçamentos”.
“O que me pergunto é: qual é o programa que tem o PSD? Parece que o PSD quer aproveitar a crise pandémica para fazer da saúde um negócio”.
Contexto: Rui Rio defendeu que, perante a falta de resposta do SNS, que o PSD abrirá a porta a uma maior participação dos setores social, privado e até jogar mão ao recurso das parcerias público-privadas. Admitiu ainda estender às consultas a possibilidade que o voucher cirurgia já permite – uma medida que o PSD tinha no seu programa de Governo, em 2019, e que o líder laranja deixou no ar como sendo algo de novo.
“Também não desisto do SNS, mas há mais de quatro milhões de portugueses que pagam um seguro. Se o privado ganhar e se o Estado ganhar, estamos todos bem. Não é pôr os ossos no Estado e a carne nos privados”, disse Rio , provocado por Catarina Martins, que o acusou de querer transformar a saúde dos portugueses num negócio. “O João Semedo costumava ter uma frase que é elucidativa: nunca vi ninguém entrar num serviço público de Saúde e perguntar: como é que vai o negócio?”, atirou a líder bloquista.
SALÁRIO MÍNIMO
RUI RIO
“O salário mínimo pode ser e é definido por decreto, mas tem de estar de acordo com a economia”.
“O que gerou o aumento do Salário Mínimo? A aproximação do Salário Médio Nacional ao Salário Mínimo. Ou seja, esta política nivelou por baixo”.
“A Catarina Martins quer acabar com os ricos, eu quero acabar com os pobres”.
CATARINA MARTINS
“Não houve nem falências nem desemprego pelo aumento do Salário Mínimo”.
“O País não pode ser uma gigantesca Odemira, de baixos salários”.
“Se o Salário Médio não cresce é pelas leis que o seu partido [PSD] também colocou na legislação do trabalho, que fez com que despedir fosse fácil e barato; e há tantas grandes empresas que estão a despedir trabalhadores e a substituí-los por outro em outsourcing com salário mais baixos”.
Contexto: Rui Rio não se comprometeu nem com uma política para o Salário Mínimo se vencer as eleições, nem falou sequer em valores, como o PS fez nas suas principais medidas apresentadas na terça-feira. O líder do PSD preferiu, com alguma dificuldade, alertar para o facto de o País manter salários médios muito baixos, face à fraca produtividade e ao tipo de tecido empresarial, e aumentar o Salário Mínimo a um ponto que se cole aos rendimentos da classe média. Catarina Martins usou tal tese para lembrar que os salários médios não sofrem alterações devido às alterações laborais do tempo da Troika, em que o valor do trabalho foi desvalorizado. Rui Rio não tratou de defender a herança de Passos nesse momento.
SEGURANÇA SOCIAL
RUI RIO
“Temos de olhar a sério para a sustentabilidade da Segurança Social, em nomes das pensões e reformas de futuro, e dos mais jovens que têm de receber mais à frente”.
“A base da Segurança Social tem de ser pública. Peço atenção às pessoas, mesmo aquelas que se colocam à minha direita: se nós privatizássemos por completo, ou quase, a Segurança Social, colocávamos as futuras pensões e reformas na bolsa e fundos de pensão. Imagine-se o perigo. Coisa diferente é podermos termos um sistema misto, onde há uma base pública que tem de ser sempre público, complementado com uma base de capitalização”.
CATARINA MARTINS
“É incompreensível que Rui Rio reconheça que colocar uma parte das pensões na bolsa é um perigo e defenda que os trabalhadores devem colocar parte do dinheiro na bolsa em vez da Segurança Social”.
“Se alguma coisa que o BE provou é que consegue fazer o melhor pela Segurança Social”.
“Bem sei que Rui Rio não gosta, mas existe uma coisa que ficou conhecido por imposto Mortágua, uma taxa sobre o património imobiliário de luxo – uma taxa sobre milionários – e que financia a Segurança Social. E que, só entre 2018 e 2020, deu ao Fundo de Sustentabilidade da Segurança Social mais 477 milhões de euros. Rui Rio queria acabar no seu programa de 2019 com esta taxa”.
Contexto: O líder do PSD falou de uma hipótese – capitalização de parte da Segurança Social – sem se perceber se a defende no seu programa e, se sim, quais os seus moldes. Quando confrontado com a possibilidade de fuga de contribuintes para outros tipos de planos de reforma, que não o sistema público, Rui Rio não soube dizer ao que vinha, deixando Catarina Martins enaltecer as qualidades do chamado “imposto Mortágua” já no fim do debate.