O caso das acusações de assédio de antigas investigadoras do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra contra Boaventura Sousa Santos voltou a colocar no topo da agenda mediática o tema da violência sexual e moral.
No Irrevogável, podcast de entrevistas da revista VISÃO, Daniel Cotrim, responsável pelas áreas da violência doméstica e de género e da igualdade da Associação Portuguesa de Apoio à Vitima (APAV), destaca que “parece que todos os anos, por esta altura, nos lembramos de tentar discutir e pensar sobre estes temas”, lamentando, porém, o que considera ser a falta de consequências e soluções em momentos anteriores – recordando, por exemplo, o escândalo que, há um ano, abalou a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).
Sem se fixar num caso contreto, Cotrim admite que os pedidos de ajuda de vítimas de violência sexual e moral, que chegam à APAV, “são muito residuais, não atingindo o 1%” das queixas que associação regista. Ainda assim, o especialista acredita que “este número é apenas a ponta do icebergue (…) e não representa a realidade do fenómeno”, que, acredita, “é muito maior e está muito mais disseminado” no país.
“Não há denúncias, porque estamos a falar de um tipo de crime marcado por uma relação de poder, hierárquica, em contexto académico e profissional. Por um lado, as pessoas precisam de trabalhar para viver; por outro, quando falamos da academia, é ainda mais difícil, pois existe a figura do mestre e da aluna. “[A violência sexual e moral] trata-se de uma forma de crime que se alimenta da precariedade, do poder e do medo e, por isso, é mais difícil para as vítimas se exporem”, afirma.
“Um crime invisível” que ‘pune’ a vítima
Formado em Psicologia, com vasta experiência neste setor, dedicando (grande) parte da sua carreira a casos em que mulheres e crianças são vítimas de violência doméstica e sexual, Daniel Cotrim considera que nos casos de violência sexual e moral “continua a ser retirada às vítimas a capacidade de poderem fazer denúncias”, sobretudo, porque este tipo de violência “continua a ser uma forma de crime invisível, que deixa poucas ou nenhumas provas, em que as testemunhas deixam de existir assim que as vítimas precisam delas”.
“O grande problema é que da voz das vítimas é retirada a capacidade que elas necessitam. Às denúncias das mulheres, principalmente, é retirada importância, colocando em causa a veracidade do que elas relatam. Aliás, não é raro vir associado a uma denúncia a pergunta: ‘Porque demorou ela tanto tempo a denunciar?’. Enquanto a socidade continuar a fazer esta pergunta é difícil às vítimas darem um passo em frente para contar as suas experiências…”, garante.
Segundo Daniel Cotrim este é, aliás, o primeiro passo que sociedade deve dar no futuro: “Não duvidar das vítimas”. “A presunção de inocência prevista na lei presume que as vitimas são mentirosas. As pessoas precisam da presunção de inocência, obviamente, mas as vítimas também merecem a presunção de que dizem a verdade, e não a presunção da dúvida. Temos de nos habituar, enquanto sociedade, que as vítimas dizem a verdade, e depois têm de existir mecanismos para confirmar ou não essas denúncias, refere.
Comissões? “É preciso instrumentos permanentes”
A criação de mecanismos eficazes de comunicação e reporte nas instituições é, para Daniel Cotrim, “prioritário”. O dirigente da APAV lamenta que, quando surgem estes casos, “parece que toda a gente percebe a importância de existirem ou serem criados mecanismos de comunicação e reporte eficazes, mas, depois, percebemos que nunca nenhuma instituição possui estes mecanismos…”. “Depois, vamos a correr constituir comissões, que vão investigar os casos que são denunciados naquele momento, mas que, pouco depois, fecham… Ou, então, cria-se uma nova comissão a correr. E as coisas pouco mudam. O que é preciso, de facto, é que existam instrumentos permanentes, avaliados permanentemente para que funcionem sempre eficazmente. E que sejam verdadeiramente transparentes e independentes”, sublinha.
O especialista acredita que, desta forma, “o número de denúncias iria aumentar” (o que não tem acontecido entre 2020 e 2022), até porque, hoje, “as pessoas estão mais informadas e sensibilizadas em relação a este fenómeno”.
“A lei tem de ser alterada”
O movimento Me Too – contra o assédio sexual –, nascido nos Estados Unidos da América, multiplicou-se pelo mundo ocidental, colocando o tema na ordem do dia. Daniel Cotrim não crê que o movimento se tenha instalado, de facto, em Portugal, reconhece-lhe méritos, mas também exageros.
“O Me Too teve o mérito de destapar este fenómeno, dando-nos a possibilidade de debater a violência sexual e moral, o que antes não acontecia com tanta facilidade. Claro que houve exageros, mas, na verdade, no final das coisas temos sempre a tendência para nos focarmos naquilo que correu menos bem, esquecendo as consequências positivas. Em portugal, porém, a violência sexual e moral é, ainda, claramente um tema tabu. Simplesmente, não é um tema debatido, sobre o qual se pense ou se faça aja”, lamenta.
Daniel Cotrim recorda que, “em Portugal, o assédio sexual e moral está apenas previsto no contexto do código do trabalho, não existindo no código penal”. “No nosso país, a lei apenas prevê a importunação sexual reiterada como algo punível criminalmente, e isso tem de ser alterado”, defende.
“Preocupante”, também, é aquilo que Daniel Cotrim identifica como “uma espécie de endoutrinação, através das redes sociais, para uma nova forma de misoginia”. “Vemos isso nas redes sociais, como o Tik Tok, por exemplo, através do qual influencers e mesmo especialistas partilham mensagens machistas e misóginas. É um fenómeno que temos de debater e combater para podermos prevenir os mais jovens”, diz.
A fechar, Daniel Cotrim recorda que “a violência sexual e moral pode ser reiterada ou não”, tratando-se de “um conjunto de comportamentos inadequados e indesejados pela outra pessoa”. “A linha é ténue, é verdade, mas sempre que alguém diz ‘não’, ou mesmo que não o diga, a outra pessoa tem de parar. Temos de perceber, nas relações com os outros, com quem podemos ter determinado tipo de comportamentos. O que podemos fazer com umas pessoas, por serem nossas amigas, serem próximas há muitos anos, pode ser considerado inadequado para outras. Depende se existe, de facto, essa autorização… Não podemos pensar que podemos ter os mesmos comportamentos com todas as pessoas”, realça.
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