Os cerca de 500 moradores do Bairro de Penajóia, em Almada, descobriram esta semana que as casas em que moram estão em risco de serem demolidas. O aviso estava escrito num edital colado nas portas do bairro de génese informal construído nos anos 70 que, 50 anos depois, continua sem ter nomes de ruas nem números de porta. E esse parecer ser um pormenor nesta história, mas não é.
É que as casas foram erguidas sobre terrenos públicos do IHRU (Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana), que no edital anuncia que serão demolidas apenas as habitações que não estiverem ocupadas. E isso, como explica à VISÃO André Escoval, do movimento Porta a Porta, faz com que os habitantes saiam de casa para trabalhar todos os dias em sobressalto. “Deixando as casas vazias, elas podem ser consideradas desocupadas?”, interrogam-se.
Para o evitar, movimentos como o Porta a Porta, o Vida Justa e o Chão das Lutas estão a ajudar os moradores a dar nomes e números de porta que lhes permitam atualizar as moradas que têm nos documentos para aquelas casas clandestinas, que hoje não são aceites como residência fiscal. Esta segunda-feira, estes movimentos foram até ao bairro ajudar os moradores nestes procedimentos, mas é uma luta contra um tempo que escasseia: o prazo dado pelo IHRU termina esta quinta-feira.
Um processo de resistência que se está a montar
“A intenção do IHRU pode ser mais rápida do que este processo burocrático”, admite André Escoval, que há muito acompanha a luta destes moradores, mas que atribuiu esta intenção de demolir o bairro com a mudança de Governo. “Isto constitui uma alteração de orientação política do IHRU. Até agora, o IHRU ou ignorava ou procurava diligenciar com a Câmara de Almada, que descartou sempre ter competências, para resolver os problemas destes moradores”.
Depois de anos neste jogo do empurra, o IHRU decidiu fazer o tal edital. “A demolição não era uma das opções consideradas. E agora foi feita da forma mais crua que existe com um técnico a colar um edital nas portas do bairro”, lamenta o ativista do Porta a Porta, que também deplora a forma como a Câmara de Almada “saudou a decisão do IHRU”.
No Bairro de Penajóia, os moradores começaram agora também a organizar escalas para assegurar que há sempre alguém em cada uma das casas durante todo o dia, tentando assim evitar o que muitas vezes acontece nestes bairros, que é sair de casa de manhã para trabalhar e encontrar os escombros do lugar onde se morava. “É um processo de resistência que se está ali a montar”, descreve Escoval.
Coletivos levam Bairro da Penajóia a reunião com o Governo
Esta quarta-feira, a plataforma Casa para Viver vai ser recebida pela secretária de Estado da Habitação, Patrícia Gonçalves Costa, para defender o direito dos moradores do Bairro de Penajóia a manter as suas casas e a legalizá-las, mas André Escoval admite que a esperança é pouca.
“Vamos ver. Mas não temos grandes expectativas. Estamos perante as táticas que se costumam usar nestas matérias, que passam por mensagens vagas, sem compromisso, e a tentativa de criar a divisão nas comunidades, num dividir para reinar, oferecendo soluções a uns e não a outros”, diz o ativista, que já viu no passado outros governantes a seguir a mesma estratégia para a demolição de bairros de origem informal em Loures e no Segundo Torrão, em Almada.
Casa para Viver promete grandes manifestações em setembro
A crise na Habitação faz, porém, com que os problemas afetem muito mais do que os moradores destes bairros ilegais. E é por isso que a plataforma Casa para Viver acredita que as manifestações que está a preparar por todo o País para o dia 28 de setembro podem ser ainda maiores do que as que tiveram lugar a 1 de abril de 2023 e a 30 de setembro de 2023.
“É uma coisa que tem uma expressão muito concreta nas vidas das pessoas”, contata André Escoval, que diz que todos os meses o Porta a Porta tem relatos de famílias em dificuldades para fazer face à renda ou à prestação do banco e que “há cada vez mais famílias que, quando assinam um contrato de arrendamento, a preocupação que têm é a de saber se daí a 12 meses terão onde dormir”.
Esta sensação de precariedade e insegurança não desapareceu com o anúncio das 30 medidas do Pacote para a Habitação apresentado há dois meses pelo Governo. “Para todos aqueles que não ganham mais de seis mil euros e não têm apoio do Estado para comprar casas de 600 mil euros, a questão do acesso à habitação está longe de estar resolvida. As políticas do novo governo acabaram com as poucas medidas do programa Mais Habitação [do Governo PS] que combatiam a especulação imobiliária, a turistificação total das cidades, a especulação financeira e a tímida limitação das rendas. A situação na habitação das pessoas que vivem em Portugal era má, agora é muito pior”, lê-se num comunicado da plataforma Casa para Viver.
Os riscos do Pacote para a Habitação, vistos pela banca e pelas imobiliárias
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), no terceiro trimestre de 2023, a renda mediana dos contratos de arrendamento subiu10,2%, em termos homólogos. Em algumas cidades, o aumento foi superior a 20%: no Funchal aumentou 23,1%, em Setúbal 21,1% e em Vila Franca de Xira 20,3%.
Até agora, ainda só a isenção de IMT e de imposto de selo e o fim da taxa sobre o Alojamento Local saíram do papel, mas a avaliação que os ativistas fazem das medidas do Governo da AD não podia ser pior.
“São medidas que incidem num nicho muito específico”, critica Escoval, defendo que só vai beneficiar das isenções fiscais “quem tenha dinheiro no bolso para comprar uma casa”.
Apesar de o Governo ter anunciado uma garantia pública para ajudar a que o financiamento bancário da habitação seja feito a 100%, sem necessidade de uma entrada inicial, André Escoval diz que a medida não chegará “à classe média, que tem salários de mil ou de 1200 euros, porque não consegue fazer face à taxa de esforço” requerida pelos créditos.
Para sustentar a sua tese, André Escoval cita uma notícia do jornal Eco desta segunda-feira na qual António Ramalho, antigo CEO do Novo Banco reconhece que existe “um problema de acesso” dos jovens ao crédito à habitação e pede revisão dos limites da taxa de esforço. “Este Governo endereçou o problema com a redução do IRS e com a garantia estadual, mas ainda não resolveu um problema mais grave, que é o da taxa de esforço”, dizia Vítor Ramalho citado pelo Eco.
Outro argumento de André Escoval para contrariar a ideia de que as medidas do Governo da AD vão ajudar a resolver a crise na habitação é a reação da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária à isenção de IMT e imposto de selo para menores de 35 anos na compra da primeira casa decretada pelo Executivo de Luís Montenegro.
Citada pela RTP, a Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária prevê que estas isenções fiscais possam fazer aumentar o preço das casas, fazendo com que a diferença de preço seja incorporada no valor da venda, admitindo que esta medida pode ter “um efeito perverso, fazendo com que os preços subam”.
“Com o aumento da procura, os preços das casas vão continuar a subir, se não houver oferta de nova habitação”, admitiu ao portal imobiliário Idealista Alfredo Valente, CEO da iad Portugal.
Movimento quer referendar AL em Lisboa
Em Lisboa, com o fim da taxa adicional de Alojamento Local criada pelo Governo de António Costa, os coletivos de luta pelo direito à Habitação temem que a pressão turística faça aumentar ainda mais os preços.
Esse é um dos argumentos do movimento Referendo pela Habitação, que já recolheu as assinaturas necessárias para levar o tema a votos na cidade e que quer pôr pressão política sobre o Executivo liderado por Carlos Moedas.
Esta quarta-feira, o movimento Referendo pela Habitação vai mesmo apresentar publicamente o testemunho de pessoas que foram desalojadas pelo alojamento local, numa iniciativa no Largo do Chafariz de Dentro, em Alfama.
Em comunicado, o movimento diz quer usar o referendo local – um instrumento político nunca testado em Lisboa – para “pela força do voto dos munícipes revogar todas as licenças de Alojamento Local atualmente em vigor em prédios destinados à habitação, devolvendo as casas hoje ocupadas pelo turismo à sua função social: serem habitadas”.
O exemplo de Barcelona
Este mês, a Câmara da cidade de Barcelona anunciou uma medida idêntica à que está a ser pedida por este coletivo. Barcelona vai cancelar a licença a cerca de 10 mil alojamentos locais em 2028.
O anúncio foi feito pelo presidente da Câmara socialista, Jaume Collboni, que com esta medida vai acabar com as cerca de 10 mil licenças que estão em vigor na cidade catalã, que expiram em 2028 e que não poderão voltar a ser renovadas após esse período.
Segundo o autarca socialista, nos últimos dez anos, o preço do arrendamento de casas em Barcelona subiu 68% e o de venda 38%. O objetivo, disse numa conferência de imprensa, é que em Barcelona “cesse completamente a atividade dos apartamentos turísticos e que nessa data 10 mil casas entrem no mercado de arrendamento ou de venda para serem habitados de forma regular pelos residentes de Barcelona”.