A distância entre a Rua de São Bento e a Rua D. Carlos I cumpre-se em pouco mais de 100 passos, mas, esta manhã, aquele curto caminho levava até dois mundos diametralmente opostos. A receção de Lula da Silva na Assembleia da República, por ocasião do 25 de Abril, serviu de pretexto para duas manifestações, uma a favor e outra contra a presença do Presidente do Brasil em Portugal. A VISÃO entrou em ambas.
Organizada pelo Chega, a manifestação contra Lula da Silva reuniu cerca de meio milhar de pessoas. O partido de André Ventura não olhou a esforços nem a despesas para fazer boa figura, com uma equipa numerosa, e faixas, cartazes e bandeiras novinhos em folha. As imagens de Lula da Silva e José Sócrates abraçados, enquadrados pelas palavras “Tolerância Zero à Corrupção”, enchiam o horizonte rua abaixo. Enquanto isso, militantes de base do partido, fiéis seguidores de André Ventura, começavam a puxar pelas gargantas, fazendo-se ouvir para lá das pesadas barreiras de segurança: “Lula, ladrão, o teu lugar é na prisão!”, repetiram, vezes sem conta. O resto do fôlego seria dedicado ao Chega e a Ventura.
Ao microfone, Manuel Matias, antigo assessor político do Chega – que saiu do cargo devido a incompatibilidade, uma vez que é pai da deputada Rita Matias – puxava pelos ânimos. Com o aproximar da hora prevista para a chegada de Lula da Silva ao Parlamento (que aconteceu às 09h39), a multidão foi engrossando, tornado-se uma mistura heterogénea, de portugueses e brasileiros, o que, daí a nada, culminou em trocas de insultos, perto mesmo do confronto físico. Mas já lá vamos a esse episódio.
MPT, PPM, Ergue-te e associação de ucranianos juntaram-se à manif do Chega. Até o neonazi Mário Machado esteve lá. Discussão quase acabou à pancada
Pequenas comitivas foram-se juntando à coluna, colorindo com as suas bandeiras a manifestação – partidos como o MPT de José Inácio Faria, o PPM de Gonçalo da Câmara Pereira ou o Ergue-te de José Pinto Coelho. Também foi notada a presença de Pavlo Sadokha, presidente da Associação de Ucranianos em Portugal (a convite do MPT). E ainda a do neonazi Mário Machado. O Movimento Brasil Portugal, liderado por Mónica Kalman, também apareceu. Assim como dois elementos da associação Partido Libertário – que, por estes dias, anda a esforçar-se por reunir as 7.500 assinaturas que lhe permitem tornar-se num partido político. A maioria dos brasileiros presentes, porém, marcou presença a título individual.
“”Ex-presidiário” e “urnas fraudulentas”. Os brasileiros que não aceitam a eleição
“Estou cá para demonstrar a minha indignação e para mostrar aos meu filhos que a corrupção não compensa”, diz Jorcilene Emídio, 33 anos, a viver em Portugal há oito. A brasileira, natural de Minas Gerais, afirma que foi à manifestação para “lutar pela democracia e pelos direitos do povo brasileiro, que foram muito difíceis de conquistar”
A presença de Lula da Silva em Portugal “envergonha”, garante. E esclarece que não aceita os resultados das eleições de 30 de outubro de 2022. “Uma grande maioria dos brasileiros queria o Jair Bolsonaro… e depois acabou por vencer o Lula. Não reconheço os resultados e sou contra o Lula estar no poder. É uma vergonha mundial um ex-presidiário liderar o Brasil, ainda por cima, uma pessoa que defende ditaduras”, afirma Jorcilene.
Já Carlos António, 42 anos, segue o mesmo guião… mas ainda vai mais longe. “O Lula foi condenado, é um corrupto. Não é justo estar aqui, no dia 25 de Abril, dia da liberdade, e ser recebido no Parlamento português… É alguém que defende ditaduras”, destaca.
A viver em Portugal desde os 22 anos, este “meio português meio brasileiro” concorda com a manifestação do Chega, que, refere, “também é contra a corrupção e os ladrões”. E apresenta uma teoria para explicar como conseguiu Lula regressar ao Palácio do Planalto: “As urnas eletrónicas são fraudulentas. Foi provado que as urnas foram hackeadas por um venezuelano, o povo brasileiro já sabe toda a verdade. A maioria do povo brasileiro não podia eleger o Lula, não é possível, alguém que não pode sair à rua para não ser linchado”. “O Bolsonaro arrasta multidões. O Brasil gosta dele, o mundo inteiro gosta dele. Não é possível ter perdido as eleições, não é justo…”, lamenta.
“Caldeirão” de movimentos quase acabou à pancada
MPT e meia dúzia de ucranianos, PPM, e Ergue-te. Não deviam ir além das três dezenas de pessoas, mas a presença destes grupos, com bandeiras próprias, incomodou (e de que maneira) os organizadores do Chega.
“Empurrados” para uma das alas do grosso, José Pinto Coelho e João Patrocínio (este último candidato do Ergue-te à Câmara de Lisboa, nas últimas Autárquicas) surgiram com duas bandeiras-gigantes, desejosos por protestar contra o que dizem ser “um regime corrupto e podre” instituído há 49 anos. Sem pedirem licença, os dois dirigentes do partido de extrema-direita (ex-PNR) posicionaram-se à cabeça da manifestação, destacando-se.
Manuel Matias, que tinha a batuta, abordou-os. E as coisas escalaram. Entre provocações e insultos, as coisas quase chegaram a vias de facto quando Patrocínio se envolveu numa acesa troca de palavras com outro dos mais ativos e dedicados militantes do Chega. “Já uma vez te dei uma chapada, pá, posso dar-te outra vez”, disse o homem apoiante de André Ventura. “Anda cá, não fujas, vamos…”, respondeu-lhe Patrocínio, enquanto se tentava soltar dos braços que serviam de cordão de segurança.
No meio da confusão, José Inácio Faria, líder do MPT, explodiu: “Esta manifestação é de todos, não é só vossa [Chega]”, gritou. A convivência geriu-se com “pinças”, até à desmobilização.
Vermelho, a cor da democracia e da esperança
O som da batucada guiava até um cego. Do outro lado da barricada, cantavam-se e dançavam-se ritmos brasileiros, intercalados por palavras de ordem como “25 de Abril, sempre!” ou “Fascismo nunca mais!”. A cor predominante, o vermelho. Do PT, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e dos cravos vermelhos, símbolos da Revolução de 1974.
Cerca de meio milhar de pessoas – deu empate com o outro lado –, preencheram o troço da Rua de São Bento, junto à Assembleia da República. Cartazes com o rosto de Lula da Silva, onde se podia ler “Amor Lula” pontuavam a artéria. “Amor” e “Democracia” decoravam, aliás, grande parte dos cartazes, das bandeiras e das t-shirts vestidas. E até Marielle Franco – a vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL, executada a tiro no dia 14 de março de 2018 – voltou a estar presente. “Quem mandou matar Marielle?”, questionava, uma vez mais, um manifestante.
O ambiente demorou a aquecer. Quando Lula chegou ao Palácio de São Bento, a manifestação estava ainda a meio gás, mas, hora e meia depois, quando Lula da Silva saiu do edifício, a euforia foi total, num misto de alegria e alívio. Lula da Silva acenou, de vidro encerrado, parando o carro oficial, por 10 segundos, frente à multidão. Acenou, com uma mão de quatro dedos. Foi o suficiente para os presentes darem o dia por ganho.
A marcar o ritmo dos cânticos, ocupou-se Marcos Pinheiro, de megafone nas mãos. Aos 65 anos, este brasileiro, com 35 de Portugal, explica que “esta presença [de Lula da Silva] representa que a democracia voltou ao Brasil, que voltou a educação, a saúde, a cultura e que o Brasil voltou a cuidar de quem mais precisa, que são os mais pobres”.
“Foram quatro anos muito difíceis [com a presidência de Jair Bolsonaro]”, recorda, destacando que “foi instalada a violência e a falta de ética” naquele país. E agora, o futuro? Marcos António acredita que “Lula tem capacidade para pacificar o Brasil, é um homem inteligente, um dos estadista com maior capacidade de discurso… Aliás, muita gente que votou Bolsonaro já se está a aperceber do que esse homem fez ao país”, destaca. “O pior já passou. Agora, é hora do Brasil voltar e de eu também voltar ao Brasil”, diz, de sorriso rasgado.
Em sentido inverso está Neide Maria de Almeida, 64 anos, que chegou ao Porto, há apenas 25 dias, mas não quis perder a oportunidade de acompanhar com os próprios olhos a visita do “seu” presidente Lula da Silva a Portugal.
“É maravilhoso. Um momento que representa a liberdade e a esperança de um Brasil mais democrático, mais desenvolvido e com mais igualdade social”, afirma. A emigrante brasileira desvaloriza os protestos “do outro lado”, dizendo que isso “faz parte da democracia”. “O Brasil é um país com um grande coração, onde cabem todos. Isto é um ciclo passageiro, vai passar… Dou dois anos para que tudo isto passe… Existe democracia e acredito que, em breve, se possa combater as fake news, a desinformação e a paz social regresse ao Brasil”, conclui Neide Maria de Almeida.
Nesse preciso momento, já a multidão dispersava, uma manifestante pró-Bolsonaro (e anti-Lula) atravessou o local, deixando um rasto de impropérios nervosos, que lhe valeram resposta (igualmente) ácida dos pró-Lula… O confronto foi rápido, mas serviu para recordar que o Brasil tem ainda um longo caminho para percorrer; e apenas 100 passos não chegam, certamente.