Se no passado, António Costa se serviu da canção de Jorge Palma “A Gente vai Continuar” para lançar um apelo à esquerda para se abster na votação do Orçamento do Estado (OE) para 2022, entoando: “ainda há estrada para continuar”; esta quinta-feira, no regresso do debate sobre o OE ao Parlamento, o primeiro-ministro voltou a tirar da gaveta a mesma melodia, mas com uma adaptação na letra. “Há certamente muita estrada para andar e enquanto houver ventos e mares o Governo aqui está e não vai parar”, disse, perante uma conjuntura diferente, que António Costa fez questão de realçar do inicio ao fim do debate parlamentar. O governante interpretou a maioria absoluta socialista como uma forma de aprovação dos portugueses desta proposta orçamental, que poucas alterações traz em relação ao programa apresentado em outubro do ano passado. Costa recusou a austeridade e, em resposta à critica de todos os partidos da oposição sobre a falta de atenção dada à taxa de inflação, afirmou que qualquer atualização seria construir no desconhecido, prejudicando a política de contas certas, sem garantias nenhumas.
Da direita para a esquerda, todos os partidos agitaram a bandeira da inflação, deixando um repto para que na discussão na especialidade (que se seguirá o debate na generalidade, a decorrer esta semana) o Governo cumpra a promessa de diálogo, que deixou logo na campanha eleitoral, e inclua no documento medidas como atualizações salariais ou nas pensões. Mas António Costa não manifestou abertura para uma reformulação do documento (que tem aprovação garantia só com os votos da bancada socialista) neste aspeto, por acreditar que qualquer atualização se trataria de uma “ilusão, que rapidamente seria comida pela inflação” e defendendo que as projeções do FMI fazem crer que a inflação será “transitória”.
Paulo Mota Pinto, líder da bancada parlamentar do PSD, defendeu que este OE deixa “o Estado a ganhar e os trabalhadores do Estado a perderem”, argumentando que, por causa da taxa de inflação, no final do ano, os salários serão desvalorizados em metade do seu valor, e acusando o Governo de usar a técnica de “subestimar as receitas turísticas” propositadamente para ficar com esse dinheiro em vez de o devolver às pessoas “que vão ganhar menos”. Além disto, na sua intervenção, o social democrata confrontou o Executivo sobre a ausência de reformas na Administração Interna, na Justiça e na Defesa, lembrando o pedido do Presidente da República sobre o investimento na área das Forças Armadas.
O reforço do orçamento da Defesa foi também lembrado pelo líder do Chega, que dedicou o seu tempo no debate ainda “à perda do poder de compra” e à divida pública – “Portugal é o 12.º país com a divida pública mais elevada do mundo”, disse André Ventura, referindo que a última vez que isto aconteceu foi durante o Governo de José Sócrates, em 2010. “E todos sabemos o que aconteceu depois: Portugal ajoelhou-se e teve de pedir ajuda externa”, continuou o deputado, que antevê que esta proposta do Governo seja um orçamento de austeridade. Acusação rejeitada pelo primeiro-ministro, que garante que “a austeridade não é o nosso ADN. Não foi durante a crise do Covid e não será nesta crise”. “Este é um orçamento que contém medidas dirigidas às crianças, aos jovens, às famílias de classe média e aos pensionistas, reforçando a proteção social e sem deixar ninguém para trás”, apontou Costa.
“Só o peso na consciência de quem infligiu ao povo português cortes que nenhuma família esquece poderá justificar o argumento da autoridade”
— António Costa
Também o líder da Iniciativa Liberal insistiu na ultrapassagem do país por outros no indicador do Produto Interno Bruto (PIB), defendendo que com este orçamento “ainda não é desta” que Portugal subirá neste ranking. Pelo contrário, aponta João Cotrim de Figueiredo. “Temos mais dois países a morderem-nos os calcanhares”, a Roménia e a Letónia. Cotrim acusou ainda o Executivo de advogar uma política de contas certas à custa de um aumento generalizado de impostos.
À esquerda, António Costa ouviu pedidos repetidos de aumentos salariais, sob pena de aqueles que foram aplicados não servirem de nada por causa do aumento dos preços. Jerónimo de Sousa, do PCP, notou que “esta proposta não avança com a fixação de preços de alimentos e combustíveis”, referindo que se “a recusa do Governo há seis meses era grave, agora é muito mais”. “Os funcionários públicos foram aumentados em 0,9%, mas a inflação vai já no 5%”, disse o secretário-geral comunista.
Do BE, Catarina Martins voltou a bater na mesma tecla: “os preços já subiram 4 vezes mais do que os salários. Os salários estão mais curtos”. “O que o Governo aqui nos propõe é uma quebra real e permanente dos salários”, criticou a líder bloquista, acrescentando que “os argumentos que lhe ouvi [a Costa] distinguem-se muito pouco dos argumentos de sempre da direita”.
Da direita à esquerda, incluindo os dois deputados únicos do LIVRE e do PAN, o tema do aumento do custo de vida esteve no centro do discurso de todos os partidos e das criticas ao Governo. O debate na generalidade sobre o OE 2022 continua esta sexta-feira.