Jorge Fernando Branco de Sampaio, que estava a poucos dias de completar 82 anos, Presidente da República entre 1996 e 2001 (1.º turno) e entre 2001 e 2006 (2.º turno) teve, sobretudo na segunda metade, um dos duplos mandatos mais difíceis da democracia. Trabalhou com cinco governos e indigitou quatro primeiros-ministros, dois do PS (partido de que se manteve militante, mesmo enquanto PR), António Guterres (1999) e José Sócrates (2005) e dois do PSD, Durão Barroso (2002) e Pedro Santana Lopes (2004). Por duas vezes, dissolveu o Parlamento, a primeira forçado pelas circunstâncias (após a demissão de Guterres) e a segunda, forçando as circunstâncias (desfazendo-se de Santana Lopes). Assistiu, mais ou menos impotente, à degradação da situação económica do País, no início do século. Percorreu todos os concelhos de Portugal e foi uma voz diplomática forte, estabelecendo excelentes relações com algumas das figuras mais marcantes da política internacional – incluindo os reis de Espanha, a quem tratava por tu. O caso Moderna, tendo no centro uma guerra entre fações da maçonaria e uma empresa de sondagens liderada por Paulo Portas; o caso do urânio enriquecido; os 75 vetos políticos e 16 pedidos de fiscalização da constitucionalidade; o processo Casa Pia e a Operação Furacão; as mortes de grandes figuras nacionais como Amália, Costa Gomes, Melo Antunes ou Álvaro Cunhal; a independência de Timor, em que desempenhou um valioso papel, o que, só por si, justificou um mandato inteiro, e a transferência de Macau para a administração chinesa; dois referendos (interrupção voluntária da gravidez e regionalização) e uma revisão constitucional (1997); o 11 de setembro e a segunda guerra do Golfo; a estreia de Portugal no mapa dos mega-eventos (Expo’98 e Euro 2004) – a que se somaram inúmeros problemas de saúde, a que resistiu, e se recompôs, com estoicismo, traçam o resumo dos dez anos que mudaram o mundo e o País, na transição do milénio.
Como Presidente, lidou com cinco governos e deu posse a quatro. Trabalhou com quatro primeiros-ministros, dois do PS, dois do PSD
Em 2006, Jorge Sampaio despediu-se da Presidência com 71,6% de opiniões positivas, mais do que o próprio Mário Soares. Logo de seguida, os aerópagos internacionais reconheceram a sua estatura de estadista, o seu talento diplomático e a sua condição de cidadão do mundo. Experiente, prestigiado, poliglota, assertivo, dialogante, culto, foi indicado por Kofi Anan como “enviado especial do secretário-geral da ONU Para a Luta Contra a Tuberculose”, entre 2006 e 2007. Daí para a frente, até 2013, passou a ser o Alto Representante da ONU para a Aliança das Civilizações, uma missão que tinha em vista o diálogo entre o Ocidente e, sobretudo, o mundo árabe e muçulmano.
Senador entre os senadores de Portugal, embora sem intervenção política ativa, assistiu, ao vivo, no final de 2016, à posse de António Guterres como secretário-geral da ONU. Nova Iorque estava, então, no tempo e no espaço, muito distante do sotão de Algés, pertencente ao seu antigo aliado e, depois, adversário no PS, quando, com Victor Constâncio, Salgado Zenha e outros, todos membros do ex-secretariado do PS, conspirara contra Mário Soares – falecido poucos dias depois da cerimónia na ONU.
No culminar de um percurso pessoal que era, também, nacional, Jorge Sampaio tinha caminhado muito para chegar ali – e o País, também por sua influência, fizera uma caminhada paralela de afirmação no mundo. Poderíamos destacar centenas de episódios marcantes, no percurso do homem, que se confundem com o da própria História portuguesa da segunda metade do século XX. O jornalista José Pedro Castanheira, seu biógrafo, teve matéria para concluir dois volumes de mais de mil páginas cada um. Escolhemos lançar um olhar sobre nove momentos-chave. A começar pelo princípio…
Processo Casa Pia, Expo’98, Euro 2004, transferência de Macau, dois referendos, o 11 de setembro, a 2.ª guerra do Golfo: Sampaio assumiu a Presidência, em dez anos que mudaram o País e o mundo
1. Uma família “inglesa”
Jorge Sampaio era um jovem diferenciado. O pai, Arnaldo Sampaio, foi diretor-geral de Saúde e fica na História sanitária portuguesa como o grande pioneiro dos programas de vacinação. O jovem Jorge teve como cenário de infância as paisagens húmidas de Sintra. É verdade que nasceu, em setembro de 1939, na Rua da Beneficiência, em Lisboa, na Clínica Bensaúde, fundada por um dos seus antepassados. Mas a sua “criação” passa pelo chalé de família, na vila de Byron, rodeado de hortas, jardins, bosques e penedias. Aos oito anos, parte com a família para os EUA, reforçando a sua costela estrangeirada, reforçada por uma mãe, professora de Inglês, que fala, em casa, a língua de Shakespeare. Este background há de compor a sua coroa de glória, muitas décadas depois, na fluência e na clareza do discurso, numa célebre entrevista à CNN que se tornaria, de imediato, uma enorme vitória da dplomacia portuguesa. Mas não antecipemos.
Na América, o clã acompanha o pai, a terminar um mestrado em Saúde Pública na Universidade John Hopkins, em Baltimore. O magnífico Inglês que já exibe é aplicado, durante um ano, na escola pública americana e no Conservatório Peabody. No exame final de piano, interpreta duas complicadas peças de Schumann. No regresso à Pátria, passa a viver em casa da avó materna Sarah, em Lisboa, junto ao Liceu Pedro Nunes, que frequenta até ao 5.º ano.
No exame final de piano, aos dez anos, interpreta duas difíceis peças de Schumann…
2. O orador da crise estudantil
Em 1962, o jornalista Augustro Abelaira irá aplicar um golpe de rins à censura, numa altura em que qualquer referência à crise académica, espoletada pela proibição do Dia do Estudante, é proibida nos jornais. Um jovem estagiário de Direito brilha na liderança da contestação e na oratória que inflama a resistência estudantil. É sempre o último a falar. Sucede que, no seu enigmático artigo sobre oratória, Abelaira cita os grandes oradores da História: “João das Regras, o padre António Vieira, José Estevão, António José de Almeida, Jorge Sampaio…”. Neste bolo, o ilustre desconhecido passa despercebido aos censores, pouco dados à cultura geral. O mais ceto é que José Estevão lhes dissesse tanto como Sampaio, mas, para os bons e informados entendedores – e leitores… -, estava ali uma mensagem explícita. Foi a primeira vez que Sampaio viu o seu nome, em letra de forma, num jornal diário.
O “grande orador”, prestes a fazer 23 anos, concluíra o curso um ano antes. Presidente da Associação Académica de Lisboa, é delegado à RIA (Reunião Inter-Associações) de que, pouco depois, será secretário-geral. A RIA marca o Dia do Estudante para 24 de março de 1962. O ministro da Educação Nacional, Lopes de Almeida, proibe a realização da iniciativa e o Governo fecha a cantina. A Polícia de Choque invade a Cidade Universitária. Os estudantes pedem uma explicação ao reitor, Marcelo Caetano, e este pede explicações ao ministro. Liderada por Sampaio, uma delegação da RIA vai a casa de Marcelo, que é uma figura proeminente da Situação. Desta vez, porém, o professor coloca a dignidade da instituição universitária em primeiro lugar. Está de acordo com os estudantes (o que, mais tarde, o levará à demissão).
“Antes mesmo de iniciar a sua diatribe foi longamente ovacionado”, escreve a PIDE, sobre Sampaio, em plena crise académica de 1962
De Coimbra, chegam automóveis e autocarros para as comemorações em Lisboa. A multidão junta-se no Estádio Universitário, e os estudantes são seguidos pela polícia. Como Gandhi ensinara, 40 anos antes, no início dos protestos não violentos, os estudantes sentam-se no chão. Depois, entoam A Portuguesa. Alguns polícias estacam, a fazer a continência, como no velho velho filme português: “Toca o Hino!” No meio da tensão, vários estudantes dirigem gritos de “assassinos!” aos polícias. Mais tarde, haverá um plenário improvisado com palavras de ordem contra a polícia, que carrega brutalmente para dispersar os estudantes.
No dia seguinte, para contornar a proibição da greve às aulas, a RIA, de Jorge Sampaio, decreta Luto Académico. A tensão dura semanas. Sampaio pouco dorme, mantendo as hostes mobilizadas. Num relatório, a PIDE refere-se à intervenção «do já conhecido Jorge Sampaio» que, «antes mesmo de iniciar a sua diatribe, foi longamente ovacionado». Sampaio e Eurico Figueiredo, de Medicina, suscitam a curiosidade dos jornalistas. Impedidos de informar, recorrem a expedientes como o de Augusto Abelaira. É decretada uma greve da fome – e o luto académico está quase com dois meses. A 11 de maio, 300 efetivos da PSP cercam a cantina. São presos mais de mil estudantes. Muitos são suspensos e chumbam o ano e outros são compulsivamente incorporados no exército, que já combate em África. A crise internacionaliza-se e capta a atenção dos media de todo o mundo. Está lançada a semente política que inspirará muitos dos oficiais que, 12 anos depois, farão o 25 de abril. Jorge Sampaio é um dos detidos e passa duas noites numa cela da prisão de Caxias.
«Irrevogavelmente» é uma das palavras usadas na carta de demissão de Marcelo Caetano. Onde é que já ouvimos isto?
3 . Casamentos, profissão e família
Para colocar pão em cima da mesa, Sampaio torna-se um dos principais juristas especializados em propriedade industrial, conseguindo uma importante carteira de clientes nacionais e internacionais. Pro bono, porém, inicia uma carreira e uma reputação de defensor de presos políticos, nos tribunais plenários.
Pelo meio, defende causas mais improváveis, como a do jogador do Benfica, António Simões, que tem um diferendo com a entidade patronal e fica a um fio de se transferir para o (seu, dele, de Sampaio) Sporting. Com alguma nostalgia, o advogado conversa com Simões sobre os tempos do 6.º e 7.º anos, no Liceu Passos Manuel, onde se cotou como um duro lateral esquerdo da equipa da escola…
Advogado do futebolista Simões, num processo contra o Benfica, quase o consegue desviar para o Sporting…
Em 1967, casa com a antiga caloira de Medicina Karine Dias, quatro anos mais nova, filha do antropólogo Jorge Dias e da pianista alemã Margot Schmidt. Sem filhos, o divórcio acontece em 1971. Três anos depois, dá o nó com a algarvia, modelo e quadro da TAP Maria José Ritta, de quem terá os filhos Vera e André. Pilar afetivo continua a ser, também, o seu irmão mais novo, o conhecido psiquiatra e escritor Daniel Sampaio. Ao longo do percurso político pós 25 de abril, Maria José revelar-se-á uma companheira indispensável, com grande ascendente sobre ele. “A conselheira n.º 1”, como ela própria se intitula. De tal forma, que obriga Sampaio a inovar, com a criação do gabinete da primeira-dama (Gabinete de Apoio ao Cônjuge do Presidente da República), que se manteria com Maria Cavaco Silva.
4. Lisboa, a primeira brecha no muro
Às 18 e 30 de quinta-feira, 20 de julho de 1989, dois homens de fato escuro, gravata e ar grave, sobem discretamente pelo elevador da antiga sede nacional do PS, na Rua da Emenda, ao Chiado, em Lisboa. Tratam-se de Rui Godinho, candidato da CDU a Lisboa para as autárquicas de dezembro desse ano, e Luís Sá, dirigente do PCP que liderara, em representação dos comunistas, o processo negocial para a formação da coligação Por Lisboa. Suspeita-se, mas ninguém aposta que Sampaio se prepara para colocar um parêntisis num atrito de 15 anos, que vem do tempo do PREC, entre PCP e PS. Lá em cima, aguardam-os o vereador lisboeta do PS, Vasco Franco, o assessor para a imprensa de Jorge Sampaio, António Manuel, o engenheiro Fonseca Ferreira, futuro autor do planeamento estratégico para a capital, e o arquiteto Nuno Portas, velho companheiro de lutas de Sampaio e apoiante da candidatura. Numa salinha ao lado, senta-se o próprio secretário-geral do PS e candidato socialista a Lisboa.
Em 1989 ensaia, em Lisboa, uma “geringonça” que só tem sequência 26 anos depois…
À mesma hora, na sede do Largo do Rato, uma delegação do PS e outra do PRD discutem a eventual participação dos renovadores numa candidatura conjunta. Uma reunião sucessivamente adiada, e que ocorre naquele dia, e àquela hora, a pedido dos socialistas, que tomam o cuidado de convocar a imprensa. A manobra de diversão quase impede que algum jornalista saiba da reunião, mais importante, na Emenda. Apenas um órgão, o extinto semanário O Jornal, consegue furar o esquema, fazendo a sua manchete, no dia seguinte, com a descrição – e a indiscrição… -dos bastidores do encontro do Chiado, o último antes da oficialização do acordo entre PS e PCP, divulgada nessa mesma sexta-feira. Recorde-se o texto de primeira página daquele semanário: “Os partidos Socialista e Comunista chegaram a acordo, nas últimas horas, acerca dos principais pontos para uma coligação para a Câmara de Lisboa. A Comissão Nacional do PS e o Comité Central do PCP deverão ratificar, no fim-de-semana, os termos desse entendimento. O Jornal revela os pontos mais difíceis em que ‘esbarrou’ a negociação e os encontros, muitos deles secretos, que se efetuaram para se obter uma plataforma cujo significado ultrapassa o município da capital. Quinze anos depois do 25 de abril, aí está o primeiro acordo entre os dois maiores partidos da esquerda portuguesa”. Cheirava a um daqueles momentos em que se faz História. Mas iriam decorrer mais 26 anos antes que António Costa e Jerónimo de Sousa imitassem Sampaio e Cunhal…
5. O advogado de Timor-Leste
A 14 de janeiro de 1996, Jorge Sampaio é eleito Presidente da República, com mais de 3 milhões de votos e 53,91% dos sufrágios, ultrapassando em 440 mil votos o score do principal adversário, Aníbal Cavaco Silva (46,09%).
Pouco depois, em Belém, o novo Presidente cria e faz reunir um Conselho Económico, uma espécie de alternativa aos famosos superministérios da Economia e Finanças de António Guterres. Com a representação das várias escolas económicas, junta nomes como Silva Lopes, Miguel Beleza, Teodora Cardoso, Teixeira dos Santos, Vítor Bento, Nogueira Leite ou Augusto Mateus. Uma espécie de Bloco Central das Finanças. Um comité de sábios que, sem a responsabilidade executiva por atos concretos, pode dar-se ao luxo de mandar umas “bocas”, sob o beneplácito de Belém, condicionando a política económica e orçamental. Nem Eanes nem Soares tinham ido tão longe…
O estilo interventivo de Sampaio – que, vá lá saber-se porquê, entrou no imaginário nacional como um Presidente discreto… – dá frutos diplomáticos na saga da libertação de Timor. Após o referendo pela independência do território, a Indonésia e as milícias pró-Jacarta trazem o caos e a destruição. António Guterres exerce pressão máxima sobre a administração Clinton, e chega ao ponto de pôr em causa alguns dos compromissos na NATO. Jorge Sampaio convoca o embaixador dos EUA em Lisboa, Gerald McGowan, às cinco da manhã do dia 6 de setembro de 1999. Tem carta branca do Governo: neste dossiê, o Presidente já firmara os seus créditos e se mostrara decisivo.
A sua prestação, na CNN, na defesa de um Timor-Leste livre, vale por décadas de diplomacia portuguesa
Quando da entrega do Prémio Nobel da Paz a D. Ximenes Belo e José Ramos Horta, em Oslo, Sampaio dispusera-se perante o pivô da CNN, Jonathan Mann, para participaçar num debate de mais de uma hora sobre a situação de Timor-Leste. Enfrentando em direto o embaixador da Indonésia junto das Nações Unidas, Nugroho Wisnumurtio, que intervinha a partir de Nova Iorque, o Presidente esmagou, num Inglês perfeito, e com sólida argumentação diplomática, jurídica e humanitária, um a um, todos os argumentos da Indonésia. Numa intervenção de repercussão global, o PR tinha feito mais por Timor do que décadas de diplomacia portuguesa. E o próprio Sampaio confessaria ao seu biógrafo, José Pedro Castanheira, ter sido esse “um dos momentos mais altos” da sua vida política.
6. A pneumonia de Macau
A Presidência é abalada por vários problemas de saúde, que colocam em causa a sua continuidade. Depois de um basilioma do nariz, que obrigou a uma intervenção mista de dermatologia com reconstituição plástica, declarou-se-lhe, além de um prolapso da válvula mitral, um aneurisma da artéria coronária direita, que obrigou à implantação de uma válvula St. Jude. Tomou, por causa disso, anticoagulantes, o resto da vida. Sampaio estava no início do seu primeiro mandato e as especulações sobre a fragilidade da sua saúde disparavam. Até ao fim do segundo mandato, ainda volta várias vezes ao hospital com problemas de pele. Os basiliomas povoam-lhe a brancura da derme ruiva, e o sol, que tanto apreciava, não lhe fazia bem nenhum. Uma operação a uma hérnia inguinal foi o cumular de tantos achaques..
Em dezembro de 1999, uma doença grave interfere diretamente com as obrigações de Estado. Em Macau, Jorge Sampaio assiste à cerimónia da transferência de soberania do território, para a China, na noite de 19 para 20 de dezembro. Numa sofisticada decisão diplomática, decide abandonar Macau, noite dentro, logo após a transferência, sem pernoitar: o Presidente não quer acordar num território estrangeiro, por razões de protocolo – e por razões de princípio. Inventa-se uma visita oficial à Tailândia e dorme, nessa note, em Banguecoque. Um pequeno recuo a oeste, antes de voltar a voar para Oriente, para cumprir uma visita oficial a Timor-Leste, a primeira de um chefe de Estado português.
Só que, na antevéspera, na ilha de Coloane, em Macau, debaixo de chuva miudinha e algum frio, Sampaio resolvera fazer uma partidinha de golfe, num complexo turístico que aproveitou para inaugurar. E aquilo que começou como uma constipação acabou em grave pneumonia. Uma situação inédita: o Presidente da República tinha de ficar acamado, num País estrangeiro, por tempo indeterminado. Sem contar com o cancelamento do programa timorense, onde o esperavam já alguns ministros da República, empresários e líderes de diversas instituições.
Apanhado por uma pneumonia, na Tailândia depois de uma partida de golfe, à chuva e ao frio, em Macau, coloca um problema inédito ao protocolo de Estado…
As autoridades tailandesas providenciaram um programa oficial para a primeira dama, enquanto o Presidente fazia novos exames. E foi assim que Maria José Ritta ficou a conhecer a cidade de Ayutthaya, onde se encontram vestígios em pedra da presença quinhentista portuguesa. Depois de mais dois dias retido, Jorge Sampaio responsabilizou-se, pessoalmente, pelo regresso a Lisboa.
7. O dossiê Armando Vara
No final do ano 2000, Fernando Gomes é remodelado e abandona o cargo de ministro da Administração Interna, sendo substituído por Nuno Severiano Teixeira. Armando Vara, ex-secretário de Estado, é promovido a ministro da Juventude e Desporto. E o chefe de Gabinete de António Guterres, Luís Patrão, um homem do lóbi socialista da Cova da Beira, do distrito de Guterres (Castelo Branco) e amigo pessoal de José Sócrates, substitui com secretário de Estado da Administração Interna. É neste contexto que surge o escândalo da Fundação para a Prevenção Rodoviária, entidade privada destinada a gerir dinheiros públicos, para fazer o que o Governo deveria fazer diretamente: promover campanhas de prevenção rodoviária, avolumando-se suspeitas de colocações de boys e de favorecimento de empresas amigas fornecedoras. Sampaio entra em parafuso: está a um mês da sua própria reeleição e vê o principal partido que o apoia a embrulhar-se numa mal explicada operação. Guterres é chamado a Belém e, no dia seguinte, Armando Vara é forçado a demitir-se (arrastando o sucessor na secrearia de Estado, Luís Patrão). Com a determinação dos indecisos, quando “se passam”, Sampaio dera um forte puxão de orelhas ao primeiro-ministro, ameaçando-o: “Se não rolarem cabeças, não vou ficar calado!” E pede ao assessor e constitucionalista Jorge Novais que prepare uma declaração para, se necessário, ser lida a seguir à audiência com o chefe do Governo e pressionar a demissão de Vara.
“Se não rolarem cabeças, não vou ficar calado!”, diz, a António Guterres, forçando a demissão de Armando Vara, na sequência do escândalo da fundação para a prevenção rodoviária
Ao saber da demissão, a Presidência emite um comunicado bem explícito: “As instituições públicas e privadas financiadas pelo Estado devem ser constituídas com procedimentos insuscetíveis de crítica em Estado de Direito”. E os acontecimentos posteriores – a animosidade de Vara contra Sampaio, refletida de várias formas públicas – têm a sua explicação.
8. A cimeira da guerra
A 14 de janeiro de 2001, Jorge Sampaio é reeleito com 55,55% dos votos, contra os 34,68% de Ferreira do Amaral, apoiado pelo PSD. Como sempre tinha acontecido, com os seus antecessores, o 2.º mandato seria bastante mais atribulado. O ano de 2001 começa com a reeleição de Sampaio e acaba com a demissão de Guterres de primeiro-ministro, a 16 de dezembro, na noite eleitoral que ditou a derrota do PS nas eleições autárquicas
Ouvidos os partidos, o Presidente, em vez de convidar o novo líder do PS, o seu amigo e companheiro de décadas de luta, Eduardo Ferro Rodrigues, optou pela convocação de eleições antecipadas, para 17 de março de 2002.
Muito antes disso, um almoço em Belém, com um convidado de Sampaio, ocorrido a a 11 de Setembro de 2001, foi interrompido quando um segundo avião se despenhou contra os edifícios do World Trade Center, em Nova Iorque. “Bem, o almoço parece estar terminado…”, constata Sampaio. Um ano e meio depois, Durão Barroso, primeiro-ministro do PSD, saído das eleições de março de 2002, resolve ser o anfitrião da “Cimeira da Guerra”, quando o presidente americano George W. Bush, o primeiro-ministro britânico Tony Blair e outro falcão da Europa continental, o presidente do governo espanhol, José Maria Aznar, desembarcam nas Lajes, nos Açores, para decidir a invasão do Iraque (um local sugerido por Aznar, à revelia de Durão…). O líder iraquiano, Saddam Hussein, é acusado de esconder dos observadores internacionais um enorme arsenal de armas de destruição maciça, que usará a qualquer momento contra o Ocidente ou os seus aliados no Médio Oriente, como Israel, Koweit ou Arábia Saudita. Bush e Blair sabem que dificilmente Saddam poderá desmentir a posse de tais armas, sob pena de dar o flanco perante poderosos inimigos, como o Irão. Uma equipa internacional da AIEA (Agência Internacional de Energia Atómica), chefiada pelo sueco Hans Blix, percorre o país sem encontrar quaisquer dessas armas.
Enganado por Durão Barroso, no caso da Cimeira das Lajes, engole em seco, no momento mais tenso da sua Presidência
A Europa divide-se, com o presidente francês, Jacques Chirac, e o chanceler alemão Gerard Schroeder, a recusarem a intervenção militar ocidental. Mas Espanha e Portugal seguem a linha dura, no caso português, contra a opinião e as instruções do Presidente da República, que, nos termos da Constituição, além de chefe supremo das Forças Armadas, tem a exclusiva prerrogativa de declarar a guerra ou fazer a paz e possui competências na área da política externa.
Em declarações posteriores do antigo Presidente ao biógrafo José Pedro Castanheira, vindas a lume já em 2017, percebe-se a real dimensão do conflito institucional, depois de Barroso ter anunciado o apoio português aos EUA, no caso de uma intervenção no Iraque, mesmo sem a cobertura de um mandato da ONU. Finalmente, avisa o Presidente de que haverá uma cimeira entre Bush, Blair e Aznar, dois dias depois, e que ele próprio, Durão Barroso, estará presente na reunião, de que será o anfitrião. Segundo Sampaio, a cimeira é-lhe “vendida” como um último esforço para evitar a guerra. Foi o contrário. Sampaio não se associou ao evento nem se distanciou dele. O Presidente “apenas” dispõe da possibilidade de dissolver o Parlamento. Um dos requisitos é o de estar em causa o regular funcionamento das instituições. Que, neste caso, dada a quebra de confiança, existiu. Porque não agiu o Presidente? Indecisão, falta de coragem ou interpretação errada da gravidade dos acontecimentos? Terá ponderado fatores de ordem política interna? A grave crise económica desaconselhava uma crise política? O Governo dispunha de uma maioria parlamentar. E os ventos de guerra que se sentiam no horizonte não eram propícios a que se “inventasse”.
9. Santana Lopes para a rua
Quando o Presidente Jorge Sampaio indigitou Santana Lopes para primeiro-ministro, o líder socialista, Ferro Rodrigues, bateu com a porta e foi-se embora, abrindo caminho à liderança de José Sócrates. E só anos depois fez as pazes com Sampaio, de quem fora amigo dileto.
O Governo começara mal, logo na posse: Paulo Portas não disfarçou a expressão de espanto, ao ver associado o seu nome ao cargo de “ministro de Estado, da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar”. Os “Assuntos do Mar” foram surpresa, até para ele. A trapalhada prosseguiu com o discurso de posse, na AR, uma baralhada incompreensível que o novo primeiro-ministro justificaria pela tensão e pelas “falhas informáticas” que repetiam frases no mesmo print…
A mudança de pasta de Teresa Caeiro para a Secretaria de Estado das Artes do Espectáculo, poucas horas depois de ter sido anunciada por Portas para a Defesa surpreendeu toda a gente, incluindo a própria. Dois meses depois da posse, sucessivos erros no concurso de colocação de professores dos ensinos básico e secundário em Setembro e o consequente atraso no arranque do ano letivo não encontram qualquer explicação plausível da parte do ministério tutelado por Maria do Carmo Seabra. Em outubro, o ministro dos Assuntos Parlamentares acusa o comentador Marcelo Rebelo de Sousa de odiar o Governo. Mais tarde, a Alta Autoridade para a Comunicação Social conclui que o Executivo tentou limitar a liberdade de imprensa. Em Novembro, José Rodrigues dos Santos, diretor de informação da RTP, demite-se, alegando intromissão do conselho de gerência da empresa. Finalmente, apenas quatro dias depois de ter tomado posse do cargo de ministro, Henrique Chaves despede-se, sem sequer prevenir o primeiro-ministro e, à Lusa, acusa o chefe de “falhas de coordenação e falta de lealdade”.
Depois da revisão constitucional de 1982, foi o único Presidente a dissolver a Assembleia da República, fazendo cair um Governo de maioria. Em causa, o regular funcionamento das instituições.
Precisamente na véspera desta demissão, Cavaco Silva publicara o artigo em que criticava o fraco desempenho do Governo, defendendo ser tempo de “os bons políticos afastarem os maus políticos”. O célebre texto da “boa e da má moeda”.
Chamado de urgência pelo Presidente para uma reunião, a 29 de novembro, e novamente convocado para as 18 horas do dia seguinte, Santana soube que estava demitido. Jorge Sampaio comunicou-lhe que ia convocar o Conselho de Estado para discutir a dissolução da Assembleia da República. Em causa estava, no entender de Sampaio, o regular funcionamento das instituições. Posteriormente, Jorge Sampaio resumia: “Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o País à deriva”.
O resultado foi a primeira e única maioria absoluta do PS, liderado por José Sócrates. Foi o povo que o elegeu, quando podia ter reconfirmado Santana. E se os portugueses estavam longe de antecipar o que se passaria depois, por que havia Sampaio de o saber?…