É no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, mais conhecido como “Ticão”, que está a ser acompanhado o processo da Operação Marquês – cujo principal arguido é o antigo primeiro-ministro José Sócrates. Nas salas onde se julgam os casos mais complexos da criminalidade nacional trabalham apenas dois juízes: Carlos Alexandre, que agrada mais aos procuradores do Ministério Público (MP) por ter um espirito colaborativo com as autoridades, e Ivo Rosa, que deixa a defesa mais satisfeita por não acreditar em provas indiretas. O mediático processo começou por ser atribuído a Carlos Alexandre, mas, esta sexta-feira, é Ivo Rosa, responsável pela instrução da Operação Marquês, a quem caberá decidir o que se segue.
Os dois magistrados judiciais julgaram os seus primeiros casos com a mesma idade: 26 anos. Também têm ambos raízes modestas. Mas não haverá muito mais que una Carlos Alexandre, de Mação (Santarém), e Ivo Rosa, de Santana (Madeira). São opostos, daqueles que parecem não se atrair. Têm uma relação fria, distante; passados meses a trabalharem juntos, Carlos Alexandre, contava, numa entrevista ao Expresso, em 2016, que não chegaram a trocar números de telefone “apesar de sermos o substituto legal um do outro”.
Na forma como olham para o Direito, também não se cruzam. Carlos Alexandre tem por hábito respeitar as acusações do Ministério Público, como aconteceu em casos como o dos Vistos Gold ou Face Oculta. Enquanto Ivo Rosa é mais minucioso, só aceita o que as provas diretas, cientificas, mostrarem – o que em casos mais abstratos, como sendo os de corrupção, tem levado a que o juiz deixe ficar pelo caminho muitas das acusações. Isto criou-lhe inimizades com procuradores e investigadores da Polícia Judiciária, que se queixam de verem o seu trabalho “desvalorizado”.
No caso EDP, por exemplo, que tem contributos de ambos os juízes, Ivo Rosa não permitiu que o Ministério Público fizesse buscas ao arguido Manuel Pinho por ausência de uma necessidade sólida, nem permitiu o acesso aos dados bancários de António Mexia. E, no final de março deste ano, decidiu mesmo devolver as cauções “desatualizadas” de um milhão de euros a cada um dos antigos administradores da EDP, aplicadas pelo colega Carlos Alexandre.
A Operação Marquês tem 28 arguidos (19 pessoas e 9 empresas). José Sócrates é acusado de 31 crimes, entre os quais, corrupção passiva de titular de cargo político, fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e falsificação de documento.
Sob os protestos de Sócrates, que chegou a sugerir que a entrega do processo fora manipulada (“só as ditaduras escolhem juízes”, março de 2020), a fase de inquérito da Operação Marquês foi presidida por Carlos Alexandre. Tendo sido realizadas mais de 200 buscas, inquiridas mais de duas centenas de testemunhas e recolhidas informações bancárias de 500 contas, em Portugal e no estrangeiro.
Durante o tempo que esteve responsável pelo processo, Carlos Alexandre ordenou a detenção do antigo primeiro-ministro (que aconteceu a 21 de novembro de 2014, às 23:00 no Aeroporto de Lisboa, depois de ter vindo de Paris); do seu motorista, João Pena; do amigo e empresário Carlos Santos Silva; do advogado Gonçalo Trindade Ferreira; do ex-vice presidente do Grupo Lena Joaquim Barroca; do antigo ministro socialista Armando Vara e do ex-presidente do Grupo Espírito Santo, Ricardo Salgado.
O início da Operação Marquês, quando ainda havia apenas três pessoas em contacto com o processo (o juiz, o procurador do Ministério Público responsável pelo processo, Rosário Teixeira, e o inspetor que liderava a equipa de investigação das finanças no MP, Paulo Silva), ficou ainda marcado por fugas de informação.
Mesmo assim, para a defesa a tensão adensou-se no momento em que se decidia quem seguiria o caso na fase facultativa de instrução – quando um magistrado judicial avalia se há razões suficientes para os arguidos avançarem para julgamento e acusados de quê. Apesar de se tratar de um processo eletrónico aleatório, vários elementos da defesa fizeram questão de assistir ao momento em que se carrega no botão, a 28 de setembro de 2018. O escolhido, como já mencionado, foi Ivo Rosa. E a defesa não escondeu o alívio, dado o histórico dos dois juízes.
“Neste processo, há um juiz legal e não um juiz escolhido pelo Ministério Público. Tenho um grande conforto, porque foi cumprida a lei”, reagiu, na altura, João Araújo, um dos advogados de Sócrates, que morreu em julho do ano passado.
Pelo contrário, Carlos Alexandre não largou a Operação Marquês de ânimo leve, tendo lançado suspeitas, numa entrevista à RTP, de que a distribuição teria sido influenciada pelo número de processos que cada um tinha em mãos. As declarações do juiz foram inclusive alvo de um inquérito do Conselho Superior da Magistratura, órgão com funções disciplinares, que entretanto as arquivou.
A alteração de juiz também não foi do agrado dos procuradores do Ministério Público, que, um ano depois, fizeram uma reclamação ao Tribunal da Relação de Lisboa, argumentando que Ivo Rosa estava a reter os recursos da acusação, alertando para “consequências catastróficas” e para um julgamento “minado”.
“O que se constata é que o meritíssimo Juiz de Instrução Criminal vem decidindo oficiosamente nestes autos, a pouco e pouco, tipo ‘conta-gotas’, pela invalidade ou pela impossibilidade de utilização de provas deste tipo, em vez de guardar essa decisão para o momento oportuno ou adequado, que é o da decisão instrutória”, escreveram Rosário Teixeira e Vítor Pinto, na queixa apresentada.
Ivo Rosa. “É humanamente impossível decidir em dez dias”
Durante a fase de instrução do caso, que durou entre março e julho do ano passado, realizaram-se mais de 11 interrogatórios, durante 133 horas, a arguidos e a 44 testemunhas. Os procuradores do MP reiteraram os fundamentos da acusação que defende que Sócrates recebeu, entre 2006 e 2015, 34 milhões de euros em comissões ilícitas, enquanto chefiava o Governo português, depositando-as em nome do seu primo José Paulo Pinto de Sousa e do seu amigo e empresário da construção civil, Carlos Santos Silva, para afastar eventuais suspeitas de si. Enquanto os advogados do antigo governante alegaram não haver sustentação factual e apontaram o dedo à acusação “monstruosa, injusta, completamente absurda” e “cheia de ilegalidades”.
No final, Ivo Rosa – o juiz que nunca se atrasou com um prazo, como afirmou o próprio, em 2017, numa rara entrevista que deu à RTP Madeira – teve de pedir mais tempo, antes de marcar a leitura da decisão instrutória. “É humanamente impossível decidir em dez dias [o tempo definido na lei]”, apelou, justificando-se com com a “dimensão e a complexidade do processo”.
O despacho – que deverá contar com cerca de 6 mil páginas – vai ser finalmente apresentado esta sexta-feira, dia 9, às 14:30 no piso zero do Edifício A, no Campus da Justiça, em Lisboa. A decisão de Ivo Rosa pode seguir três caminhos diferentes: apresentar um despacho de não-pronúncia e arquivar todas as acusações contra o antigo governante; fazer com que Sócrates seja julgado pelos 31 crimes de que é acusado pelo MP ou com que seja julgado apenas por parte desses crimes.
Em todo o caso, perante as características de Ivo Rosa, é provável que a acusação do Ministério Público não siga ilesa para julgamento. Se, quanto aos crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais seja provável que transitem para julgamento, uma vez que Ivo Rosa até aumentou o número de crimes fiscais sugeridos na acusação do MP. Já quanto ao crime de corrupção, este poderá ser mais difícil de provar de forma direta. E o próprio magistrado, no dia em que dá por terminado o debate instrutório, apontou que irá focar-se “única e exclusivamente nos elementos de prova legalmente obtidos no âmbito do processo e nunca com base em rumores, clamores públicos, opiniões extra processo ou comentários de analistas”.