Mais de uma semana após a polémica saída de Cristina Gatões da direção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), o ministro da Administração Interna resgatou da reserva o ex-comandante-geral da GNR Botelho Miguel para levar a cabo a reestruturação já anunciada da polícia de imigração nacional, que está debaixo de fogo desde o assassinato do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk.
Eduardo Cabrita anunciou, esta sexta-feira, que caberá ao tenente-general do Exército fazer na instituição, que tem pela primeira vez um militar a liderá-la, a “separação orgânica entre as suas funções policiais e as funções administrativas”.
A aposta de Cabrita acabou por ser percecionada, por especialistas em segurança interna e associações do setor ouvidos pela VISÃO, como um balde de água fria para Magina da Silva, diretor-nacional da PSP, que foi a Belém, no último domingo, defender a fusão das duas polícias civis, a exemplo do que acontecia há mais de 30 anos, apanhando o titular do Ministério da Administração Interna (MAI) de surpresa.
Conhecendo-se a rivalidade entre as duas forças de segurança, PSP e a GNR, o gesto do governante terá sido assim “uma machadada final no sonho do superintendente-chefe Magina de ter a sua Polícia Nacional”, apontou José Manuel Anes, fundador do OSCOT – Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo.
Porém, na polícia da imigração a entrada do tenente-general, que liderou a GNR entre 2018 e 2020, é vista com “estranheza e como uma fuga em frente do Governo”, tendo em conta “a opção da tutela por um militar”. “É a primeira vez que o SEF tem uma direção militar, que contrasta com a tradição civilista da instituição ao longo de 30 anos”, disse Acácio Pereira, Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras – SCIF/SEF.
Reencontra militares que saíram em colisão
Com 62 anos, Botelho Miguel vai reencontrar os 17 antigos militares da GNR a quem não terá permitido que progredissem na carreira através de formação para oficiais e que rumaram ao SEF. Uma situação que levou Associação Nacional Autónoma de Guardas (ANAG) da GNR a queixar-se na altura à Provedora de Justiça.
“Enquanto comandante-geral da GNR sempre recusou reconhecer como uma mais valia as qualificações deste militares, que já eram licenciados e mestrados”, explicou Pedro Gouveia, presidente da ANAG, que assegurou que Botelho Miguel “não deixou saudades nenhumas e foi uma lufada de ar fresco aquando do seu desaparecimento da instituição”.
Segundo Pedro Gouveia, “desde colocar militares longe das suas famílias 500 e 600 quilómetros, sem ganharem mais por isso, a uma prática de inexistente diálogo, nada no seu percurso deixa boas lembranças, principalmente quando se compara com a prática dos anteriores responsáveis”.
“Não aceitava críticas, nem dos mais próximos”
Luís Francisco Botelho Miguel entrou na GNR em 2010, vindo de um percurso do Exército, tendo ocupado diversos cargos de alta responsabilidade. Quando foi nomeado por Eduardo Cabrita comandante-geral da Guarda, em 2018, já se sabia que a sua liderança estaria a prazo, tendo em conta que se aproximava da idade de reforma. Daí ter saído no início deste ano.
Na instituição, sublinhou César Nogueira, presidente da Associação dos Profissionais da Guarda/GNR, a “sua passagem foi, se não a pior, uma das piores”. “A sua postura era como se a GNR estivesse em permanente guerra contra o ‘outro’: o cidadão que é inimigo e não tem direitos. O nosso principal dever é a defesa do cidadão e não a de combater o inimigo”, defendeu, lembrando o acumular “de processos disciplinares movidos por questões associativas”.
“Não aceitava críticas, nem da APG, e, pelo que fomos sabendo, nem dos mais próximos, como os seus pares. Principalmente, aqueles que tivessem uma posição mais crítica em relação à sua intransigência”, lembrou César Nogueira.
Contra reformas na presidência portuguesa da UE
De acordo com José Manuel Anes, especialista em Segurança Interna, “finalmente o SEF tem um diretor forte, credível e competente”.
“Depois da passagem da senhora Cristina Gatões, que foi uma péssima escolha – até me custa a acreditar naquela opção -, chega finalmente à instituição a disciplina necessária, que impeça que ‘cancros como o que aconteceu no aeroporto [morte do cidadão ucraniano] se repitam”, acrescenta, frisando que “Magina da Silva talvez tenha percebido a mensagem do ministro – de que não deveria ter falado do que não devia e sem ter comunicado à tutela o que iria defender publicamente”.
Contudo, o fundador do OSCOT, mostra-se crítico quanto ao risco de Botelho Miguel avançar com as reformas prometidas pelo Governo nos últimos dias. “Fazer reestruturações em cima do joelho não é a melhor estratégia, ainda por cima no rescaldo de uma agitação como a que tem sido vivida no SEF nos últimos meses. O Governo tem de ter em conta que durante a presidência portuguesa da União Europeia era muito má ideia desmantelar a instituição”, disse.
O ministro Eduardo Cabrita anunciou no Parlamento, na terça-feira, que a reestruturação do SEF arrancará já em janeiro e decorrerá ao longo do primeiro semestre, envolvendo quatro ministérios.
GNR pode sair beneficiada
Além de estranhar “que se coloque numa polícia de imigração um militar experiente”, o tenente-coronel António Costa Mota, líder da Associação dos Oficiais das Forças Armadas (AOFA), receia que, “tendo a instituição problemas muito complexos a resolver, talvez Botelho Miguel não sirva para se tentar resolver de forma rápida situações que exigem cautela”.
“Esperemos que os funcionários do SEF não reajam mal em ter um militar à frente. A GNR é uma força militar, com uma realidade muito diferente da do SEF. Neste caso, aconselha-se ao tenente-general, como se costuma dizer, ‘paninhos quentes’ para lidar com uma nova realidade. E espero que as estruturas sindicais não sejam maltratadas, tendo em conta um certo historial relatado”, referiu Costa, criticando o gesto do diretor-nacional da PSP, no último domingo.
“Num momento em que há uma organização, tão importante como o SEF, a passar por um mau momento, não fica bem tentar tirar dividendos da situação”, acrescentou.
Para o tenente-coronel, Eduardo Cabrita deu um sinal que, ao colocar alguém vindo da GNR, “será esta força, possivelmente, a absorver algumas das competências operacionais do SEF, como o reforço da fiscalização nas fronteiras terrestres e costeiras”.
Cabrita fala do homem certo para “a revolução”
Após o anúncio da nomeação, o ministro da Administração Interna fez questão de frisar que Botelho Miguel conta com “as condições ideais” para “liderar um trabalho que irá sendo desenvolvido ao longo do ano de 2021″, que passará pela “separação das funções policiais e das funções administrativas do SEF”.
Eduardo Cabrita recusou associar a sua escolha às declarações de Magina da Silva, optando por destacar que irá ser levada a cabo “uma verdadeira revolução” na instituição como qualificou Marcelo Rebelo de Sousa.
Nos últimos dias, a direção do SEF esteve nas mãos de José Barão, que era adjunto de Cristina Gatões e que chegou àquela polícia em março, dias depois do homicídio do cidadão ucraniano. Antes, Barão tinha sido chefe de gabinete de Eduardo Cabrita no MAI.