Chama-se StayAway Covid, é uma aplicação móvel e permite, a partir da proximidade física entre smartphones, rastrear de forma rápida as redes de contágio por Covid-19 – informando os utilizadores que estiveram, nos últimos 14 dias, no mesmo espaço de alguém infetado com o novo coronavírus. Lançada no início de setembro, já foi descarregada por um milhão e 400 mil pessoas, segundo fez saber, esta semana, o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales. Um número que, segundo o governo, é muito inferior ao desejável.
“Entendam que é um dever cívico descarregar esta aplicação e sinalizarem se vierem a ser diagnosticados como testando positivo”, afirmou António Costa logo no lançamento da iniciativa – um apelo que agora voltou a repetir, pouco antes de revelar que pretende tornar o seu uso obrigatório. As dúvidas e as críticas sobre o diploma, cuja proposta já foi entregue no Parlamento e que deverá ser debatida na próxima semana, surgiram logo de seguida.
Graves questões de privacidade, aponta CNPD
A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) foi das primeiras a manifestar-se. Em comunicado, considera que a sua obrigatoriedade “suscita graves questões à privacidade dos cidadãos” e que deverá dar conta disso quando se pronunciar sobre o caso no parlamento. No mesmo documento, a CNPD insiste ainda que “pugnou sempre pelo caráter voluntário da aplicação de rastreamento de proximidade” por várias razões.
“Impor por lei a utilização da aplicação Stayaway, seja em que contexto for, suscita graves questões relativas à privacidade dos cidadãos, retirando-lhes a possibilidade de escolher, se assim entenderem, não ceder o controlo da sua localização e dos seus movimentos a terceiros, sejam estes empresas multinacionais fora da jurisdição nacional, seja o Estado”, sublinha. No seu entender, a medida pode ainda acentuar a discriminação de cidadãos, dado que “a maioria das pessoas não consegue ter acesso a este tipo de aplicação” – alundido assim ao facto de, como foi divulgado pouco depois do seu lançamento, uma percentagem significativa de telemóveis em Portugal não conseguir tecnicamente descarregar a aplicação.
“Intrusão inédita e antidemocrática”, acrescenta Associação D3 – Defesa dos Direitos Digitais
“Tal obrigatoriedade, a acontecer, estaria em explícita contradição com as recomendações da Autoridade Europeia de Proteção de Dados, com a recomendação da Comissão Europeia e ainda com as recomendações do Conselho da Europa no que toca a este tipo de ‘apps’”, sublinha a Associação D3 – Defesa dos Direitos Digitais, mostrando-se disponível para avançar com uma providência cautelar.
Em comunicado, aquela associação defende mesmo que “a obrigação de instalação de uma ‘app’, qualquer que seja, é uma intrusão inédita e antidemocrática, digna do autoritarismo chinês e não do modelo europeu de sociedade”. Segundo o seu vice-presidente, Ricardo Lafuente, “cada cidadão tem o direito de colocar o que entende nos seus dispositivos” e “este direito de escolha é agora eliminado, em muitas circunstâncias, forçando o uso de uma aplicação sem provas dadas e de eficácia muito questionável”. Lafuente acrescenta ainda que os próprios proponentes da ‘app’ sempre fizeram questão de salientar que a Stayaway é um mero complemento ao rastreio manual”. E que, com este anúncio de intenções, “há uma quebra de confiança por parte dos cidadãos” face ao caráter voluntário da aplicação garantido pelo Governo até agora.
“O Governo falta agora ao prometido, e arrasa com qualquer capital de confiança que pudéssemos ter no que toca às premissas desta ‘app’. Que certeza temos agora de que, em próximas atualizações, a ‘app’ não comece a registar a localização das pessoas? Como podemos estar seguros de que o nosso anonimato será mesmo mantido? Depois disto, o que podemos esperar?”, questiona. Os cidadãos, sublinhou ainda, “ficarão à mercê da arbitrariedade não só das decisões do Governo, mas também da Google e da Apple. “Sabe-se lá que surpresas as próximas atualizações da ‘app’ vão trazer aos telemóveis de cada um e uma de nós”, acrescenta, esperando que “a sensatez prevaleça e esta ideia grotesca fique pelo caminho”.
Inaceitável, classifica Bloco de Esquerda
A reação dos outros partidos também não se fez esperar. Numa nota enviada à agência Lusa, o Bloco de Esquerda começou por lembrar que “não são novas” as reservas sobre uma aplicação “cuja eficácia se provou muito limitada e cujo princípio compromete de forma inaceitável a privacidade dos cidadãos”. Além disso, adianta o partido no mesmo documento, “a intenção de tornar obrigatória a utilização de uma aplicação de telemóvel, até contra a vontade dos seus utilizadores, seria de difícil exequibilidade e inaceitável num Estado de direito”.
Segundo os bloquistas, que aguardam a entrega da proposta de lei no parlamento, “nenhuma aplicação de telemóvel, ainda por cima comprometendo dados dos cidadãos sem a sua autorização, pode substituir o trabalho essencial dos técnicos de saúde pública no rastreamento ou acompanhamento de infetados e contactos de risco”. O caminho para conter a pandemia, na perspetiva do partido liderado por Catarina Martins, deve antes passar pelo “pelo reforço do Serviço Nacional de Saúde ou pela resolução das condições sociais que determinam as condições de propagação do vírus”, como a precariedade laboral ou sobrelotação dos transportes. E deixa a crítica. “O governo tem mantido, como se sabe, o impasse sobre estas matérias”.
“Reservas de fundo”, manifesta CDS
“Juridicamente é muito complicado obrigar as pessoas a utilizar uma aplicação que monitoriza os seus comportamentos”, observou também a deputada do CDS Ana Rita Bessa, relembrando que a mesma foi “criada, desenhada e anunciada” para ter um uso voluntário. “Portanto, parece-nos muito complicado que possa ser de uso obrigatório, quer em termos jurídicos quem em termos técnicas”, acrescentou ainda, “porque isso implicaria que todas as pessoas tivessem um dispositivo capaz de suportar a ‘app’, o que não acontece.
Assim, a deputada do CDC pede uma “avaliação muito séria” da intenção, que “é altamente perturbadora do que são as liberdades individuais”. E insiste: “Mesmo a favor do bem comum, entendemos que deve ser avaliada com muito, muito cuidado”.
Inconstitucional, acusa Iniciativa Liberal
Também a Iniciativa Liberal (IL), numa outra nota enviada à Lusa, demonstrou já a sua total oposição à intenção do primeiro-ministro de tornar a StayAway Covid obrigatória, nos diversos contextos sociais e laborais – que são, considera, praticamente todos da vida diária fora de casa.
“Se a proposta chegar ao Parlamento, a Iniciativa Liberal tem a firme intenção de, por todos os meios legais e parlamentares, obter a declaração da óbvia inconstitucionalidade desta medida”, antecipou o partido. Na perspetiva de João Cotrim Figueiredo, deputado único do IL, “a instalação de aplicações ou ferramentas similares só é admissível se tiver caráter voluntário e for fruto de uma decisão livre e informada de cada pessoa”.
Risco de uso indevido, avisara já a DECO
Recorde-se que foi logo após o lançamento daquela aplicação móvel que foram conhecidas as reservas da associação DECO – Defesa do Consumidor. Num texto publicado no seu portal, o organismo referia mesmo que a decisão deveria ficar do lado do consumidor porque “existe a possibilidade de uso não-declarado e indevido dos dados pessoais por parte da Google e da Apple”.
Em causa, o facto de a StayAway Covid recorrer ao sistema ‘Google/Apple Exposure Notification’, conhecido pela sigla GAEN, que disponibiliza o acesso a funcionalidades ao nível do sistema operativo do telemóvel, seja Android ou iOS. Um sistema que, considerou aquela associação, “não segue o princípio da abertura de código e transparência sobre entidades envolvidas no tratamento de dados” e, por isso, não permite “um total escrutínio” do seu uso.