O ex-presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) Victor Reis defendeu esta terça-feira, no Parlamento, que as alegadas fraudes em Pedrógão Grande, denunciadas em primeira mão pela VISÃO, não foram apenas responsabilidade dos cidadãos que recorreram individamente a donativos, mas também dos decisores políticos que geriram o processo de reconstrução de casas no pós-incêndios de junho de 2017.
Na primeira audição da comissão parlamentar de inquérito à atuação do Estado na atribuição de apoios na sequência dos fogos no Pinhal Interior, Victor Reis pediu que “não tentem culpar o mexilhão”, uma vez que os acusados pelo Ministério Público (MP) “não praticaram intencionalmente” as presumíveis irregularidades. “As pessoas foram arrastadas para uma situação em que estavam convencidas de que estavam a agir de forma legal”, afirmou o antigo líder do IHRU, que, conforme já fizera em declarações à VISÃO, queixou-se de ter sido afastado pelo Governo de todo o processo de recuperação de habitações nos três concelhos leirienses mais atingidos pelos fogos.
Victor Reis manteve a tese de que “muitas destas pessoas estão a ser tratadas como uma bola num jogo de flippers“, pois “há quem ande a justificar-se com elas”, isto é, com o expediente de alteração das moradas fiscais para aceder aos donativos dos portugueses. Esses responsáveis, disse na comissão, “não foram os técnicos” do fundo criado pelo Estado, o Revita, nem da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC). Foi, atirou, sem mencionar diretamente o nome da atual ministra da Coesão Territorial, “quem tem responsabilidades políticas”.
“Os técnicos cumpriram ordens”, defendeu o ex-líder do IHRU, militante do PSD, acusado pela deputada do PS Marina Gonçaves de ter passado a audição a “levantar suspeições” e não a reportar-se a factos. Também o BE e o PCP procuraram ilibar o Governo de responsabilidades na gestão da solidariedade dos portugueses. O deputado comunista João Dias chegou mesmo a desafiar Victor Reis a revelar as fontes que o ajudaram a identificar as fraudes, acusando o antigo dirigente público de ter ido à Assembleia da República fazer “chicana política” e de “transformar as vítimas em pequenos vigaristas” no processo de recuperação de imóveis.
Na audição, Victor Reis notou que as mudanças de domicílio fiscal, detetadas em julho de 2018 pela VISÃO, aconteceram “por sugestão dos responsáveis” locais – sem apontar diretamente o dedo ao presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, Valdemar Alves -, mas ironizou sobre a ineficácia da fiscalização, que “propiciou a acusação do MP: “Isto é habitação permanente ou habitação ambulante? Os códigos tributários não resistem a uma coisa destas.”
Reiterando que em Castanheira de Pera e Figueró dos Vinhos também se verificaram suspeitas de irregularidades – relatadas, de resto, pela VISÃO -, o depoente voltou a asseverar contra a “total opacidade” dos regulamentos do Revita e do processo de decisão da Comissão Técnica e do Conselho de Gestão do Revita, chefiado por Rui Fiolhais. “A uns foi arranjada uma espécie de via verde para uma casa em ruínas ser tratada como uma habitação permanente”, declarou, insistindo na necessidade de que tivessem sido tornados públicos os critérios para a afetação dos recursos públicos e privados. “Era assoprado aos ouvidos de uns umas coisa e de outros outra”, sublinhou.
A rematar, e frisando que o problema esteve desde o início na “cadeia hierárquica” – com Ana Abrunhosa à cabeça -, Victor Reis advogou que “não houve uma única mudança” nos responsáveis que geriram os processos (do município ao poder central), “nem se conheceu nenhuma alteração” que visasse melhorar as metodologias de gestão dos apoios e a fiscalização à sua concessão. “Aqueles que tinham o poder para mudar o rumo das coisas não mudaram nada. Nada! Continuou tudo exatamente como estava até hoje”, disparou.
Em suma, frisou, “se tivesse havido equidade”, o dinheiro canalizado para o município mais fustigado pelos fogos a 17 de junho de 2017, que vitimaram 66 pessoas, podia ter sido aplicado também em segundas habitações.
O MP, recorde-se, deduziu acusação contra 28 arguidos, entre os quais o presidente da Câmara de Pedrógão Grande, Valdemar Alves, reeleito nas listas do PS em 2017, e contra o ex-vereador Bruno Gomes (a ambos são imputados 60 crimes). O Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Coimbra concluiu que houve uma aplicação indevida de apoios, “provenientes de crimes”, no montante global de 716 mil euros.
Além disso, o Tribunal de Contas, com uma auditoria ao Revita, veio expor a falta de transparência de todo o processo, a escassa coordenação e fiscalização de entidades como a CCDRC, então presidida por Ana Abrunhosa, e do próprio fundo estatal, pelo qual passaram todos os casos que mereceram ajudas públicas ou privadas.
Na audição desta terça-feira, que teve início pouco depois das 17h30 e terminou por volta das 22h00, ficou decidido que o PSD, que forçou a realização do inquérito parlamentar (por via potestativa), ficou com uma posição-chave na investigação. O relator será o deputado social-democrata Jorge Paulo Oliveira.