Durante quatro horas, logo ao início da manhã, Mário Centeno esforçou-se para fazer a defesa da (sua) honra. Numa audição parlamentar, o ministro das Finanças garantiu que a injeção de 850 milhões de euros no Novo Banco, feita no início de maio, não aconteceu “à revelia” de António Costa. “Não há nenhuma decisão que não passe pelo Governo e pelo Conselho de Ministros”, sublinhou. Quase à mesma hora, o Presidente da República, com o primeiro-ministro ao lado, dava um puxão no tapete do ministro que, noutros tempos, ajudou a manter em funções: se é verdade que “o Estado português cumpre o que tem de cumprir”, Marcelo considera que também é “politicamente diferente o Estado assumir responsabilidades dias antes de se conhecer as conclusões da auditoria ou ela ser concluída dias antes de o Estado assumir responsabilidades”. Foi a reedição da rábula humorista que já vimos no referendo ao aborto: Centeno devia ter transferido o dinheiro? Devia? Mas devia tê-lo feito quando fez? Não.
Se viemos cá [à Autoeuropa] no primeiro ano do atual mandato do Presidente da República e, agora, voltamos cá no último ano do mandato, a terceira data é óbvia: é no primeiro ano do próximo mandato do Presidente da República, e faço-me desde já convidado para acompanhar o senhor Presidente da República para aqui virmos para o ano partilhar essa refeição
António costa, primeiro-ministro
Num dia de muitos e quentes momentos políticos, há um outro que não poderia ficar de fora da fotografia da visita de Costa e Marcelo à Autoeuropa, em Palmela. Costa lançou um convite e o convite pareceu colher agrado. “Se viemos cá no primeiro ano do atual mandato do Presidente da República e, agora, voltamos cá no último ano do mandato, a terceira data é óbvia: é no primeiro ano do próximo mandato do Presidente da República, e faço-me desde já convidado para acompanhar o senhor Presidente da República para aqui virmos para o ano partilhar essa refeição”. Foi assim mesmo, à boleia de um auto-convite para uma almoçarada, que Costa lançou a recandidatura de Marcelo a Belém e lhe deu o braço do PS para se possa apoiar nessa corrida marcada para o início de 2021. O Presidente não quis “aprofundar a matéria” mas lá foi admitindo que o “espírito de equipa” alcançado é para manter “nos próximos anos”.
Podemos admitir e terá havido uma falha na comunicação entre o Ministério das Finanças e primeiro-ministro no momento do debate quinzenal, mas não houve nenhuma falha financeira nem incumprimento
mário centeno, ministro das finanças, em entrevista à tsf
Mas, primeiro, a porta de saída que o Presidente da República mostrou a Centeno, com o beneplácito de António Costa – estava ali ao lado e não acrescentou um ponto ao que o Chefe de Estado disse. Ainda esta semana, Centeno tinha dito, na TSF, que, sim, houve uma “falha de comunicação” entre o Terreiro do Paço e São Bento que fez com que António Costa pedisse desculpa ao Bloco de Esquerda. Porquê? Porque garantiu, na semana passada, no debate quinzenal, que não haveria qualquer nova injeção de dinheiro público no Novo Banco antes de a auditoria às contas da instituição estar nas mãos do Governo. Problema: a transferência de 850 milhões de euros já tinha feita quando Costa a rejeitou liminarmente.
Choque frontal
Ora, se Centeno começou por assumir a “falha” aos microfones da rádio, na terça-feira, hoje disse mais. Garantiu que a transferência foi tomada em Conselho de Ministros – e que, leia-se, mereceu o aval de António Costa. Com essa referência, o ministro recusava-se a assumir sozinho a responsabilidade por uma injeção de capitais que está a provocar um mal-estar poucas vezes visto de forma tão aberta entre dois dos principais membros de um Executivo.
Para os portugueses, não é indiferente cumprir compromissos com o conhecimento exato do que se passou num determinado processo ou cumprir compromissos e, mais tarde, vir a saber como foi esse processo
marcelo rebelo de sousa, presidente da república
A resposta viria quase em simultâneo, mas pela voz de Marcelo Rebelo de Sousa. Aos jornalistas, que o questionaram sobre o tema que escalda, o Presidente disse claramente que Costa “esteve muito bem” quando disse, no Parlamento, que “fazia sentido que o Estado cumprisse as suas responsabilidades, mas naturalmente se conhecesse previamente a conclusão da auditoria”. É a tal diferença política que, aos olhos de Marcelo, faz mesmo toda a diferença. “Havia uma auditoria que ficaria concluída em maio deste ano [e], para os portugueses, não é indiferente cumprir compromissos com o conhecimento exato do que se passou num determinado processo ou cumprir compromissos e, mais tarde, vir a saber como foi esse processo”. E, perante isto, António Costa não dizia nada? Resposta lacónica: “Depois do Presidente da República, o primeiro-ministro nada tem a acrescentar.” O recado estava dado e só não entendia quem não queria.
A questão que fica por esclarecer, e que o Governo tem pouco interesse em explorar para já, é qual o impacto final desta bomba política. Essa mesma questão ressoava no plenário da Assembleia da República, poucas horas depois, durante um debate de atualidade sobre… o Novo Banco. Ricardo Mourinho Félix deu o corpo às balas em nome das Finanças e ouviu da oposição a pergunta fatal: “Será que já não é ministro e os portugueses não sabem?”, perguntava, cáustico, Duarte Pacheco (PSD). “Ou estamos a assistir a uma remodelação em direto, e o ministro das Finanças sairá do Governo porque considera o seu primeiro-ministro irresponsável, ou já assistimos a uma remodelação e o ministro das Finanças passou a dirigir o Governo”, atirou Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda). As provocações ficaram, no entanto, sem resposta. E, à hora de fecho deste texto, em São Bento não havia qualquer encontro marcado entre António Costa e Mário Centeno.
A recandidatura à boleia do almoço
Quando Marcelo Rebelo de Sousa começou a sua intervenção, esta manhã, à porta da Autoeuropa, António Costa tinha acabado de falar. E não disse pouco. Primeiro, e naquele jeito de quem larga uma bomba política depois de introduzir uma ideia banal, o primeiro-ministro recordou que se criou “uma nova tradição” nos últimos cinco anos. Uma tradição em o chefe do Governo e o chefe de Estado “vêm, em conjunto, à Autoeuropa”. E prosseguiu: “Foi assim em 2016, no primeiro ano de mandato do Presidente da República, foi assim também no último ano do atual mandato.” Isso é história. O que veio a seguir foi desafio.
Cá estaremos todos, com o espírito de equipa que se formou e que nada vai quebrar. Cá estaremos todos, este ano e nos próximos, a construir um Portugal melhor
marcelo rebelo de sousa, presidente da república
Se ali estiveram em 2016 e se ali voltaram agora, não há surpresa sobre quando lá poderão voltar: “No primeiro ano do próximo mandato do Presidente da República”, desafiou o primeiro-ministro E Marcelo, quererá? “É prematuro falar nessa matéria”, começou por dizer. Seria prematuro? Talvez não. “Vamos continuar a confiar nos portugueses e vamos ultrapassar esta pandemia e os efeitos económicos e sociais este anos e nos anos próximos. E eu cá estarei – cá estaremos todos – com o espírito de equipa que se formou e que nada vai quebrar. Cá estaremos todos, este ano e nos próximos, a construir um Portugal melhor.”
O tema presidenciais devia ser um dos assuntos principais a definir no Congresso do PS, que estava marcada para daqui a duas semanas, no Algarve, antes de pandemia do novo coronavírus virar os calendários todos do avesso. Não há congresso, mas há secretário-geral do PS a segurar a batuta e a deixar um sinal de que a posição do partido, nas presidenciais do próximo ano, se aproxima cada vez de um apoio ao atual Presidente da República. A alternativa será não apoiar formalmente qualquer nome da família socialista e deixar o caminho aberto a mais cinco anos de afetos em Belém.