Quatro estreantes e um veterano das lides parlamentares. Quatro representantes de partidos e uma deputada não inscrita. Com experiências (e críticas) muito próprias, estiveram juntos na mesma sala das sessões, no Parlamento, este sábado, a viver um 25 de Abril que foi, em todos os sentidos, um momento único até hoje – e que todos desejam irrepetível.
Há 20 anos, José Luís Ferreira percorreu, pela primeira vez, os corredores do Palácio de São Bento. Inês Sousa Real, André Ventura, João Cotrim de Figueiredo e Joacine Katar Moreira estrearam-se ali fez esta semana meio ano. E se o deputado d’Os Verdes defendeu até ao último minuto que a sessão solene “não podia não se realizar” num momento como o atual, a líder parlamentar do PAN e o presidente da Iniciativa Liberal disseram desde o início que o Parlamento não podia abrir portas a convidados quando os portugueses estão há semanas confinados às quatro paredes das suas casas. André Ventura não queria, de todo, qualquer festejo.
Joacine corre noutra pista. Chegou a S. Bento como representante única de um partido, naquelas que foram três estreias absolutas nas legislativas de 2019. Mas, pelo caminho, o Livre retirou-lhe a confiança política e, depois, a Assembleia da República estreitou-lhe o espaço de intervenção. Este sábado, apesar dos protestos e dos reparos à própria esquerda, ficou em silêncio.
À VISÃO, os quatro contam como foi viver na primeira fila um dia sem paralelo na história da democracia. Um 25 de Abril em pleno estado de emergência, com todas as limitações que a pandemia implicou na organização da cerimónia e apesar da polémica que a decisão do presidente da Assembleia da República gerou. No fim, diz José Luís Ferreira, “valeu a pena”.
Sem desfile, mas com lugar reservado no coro
Antes de entrar para a sessão solene, na sala do plenário, havia sempre fotos de cravo na mão, cumprimentos nos corredores do Parlamento e andava por ali muita gente, muito mais gente do que em qualquer outro dia. Este ano, confessa José Luís Ferreira, foi tudo “um pouco estranho”. Ainda assim, o deputado d’Os Verdes garante: “A emoção é a mesma, bate cá dentro.”
Habituado a uma sala preenchida por muitas centenas de pessoas, entre deputados, membros do Governo, convidados, jornalistas e funcionários parlamentares (foram mais de 700, no ano passado), José Luís Ferreira falou, este ano, perante um público quase inexistente. Não seriam sequer 100 as pessoas na sala, pelas contas dos serviços da Assembleia da República.
A intervenção do deputado d’Os Verdes serviu, em parte, precisamente para defender que era ali que todos deviam estar, porque a situação de emergência não suspendeu a democracia. “Valeu a pena, fizemos bem, para mostrar que a Assembleia não está parada e porque isto também traz sossego às pessoas” que não sabem o que o dia de amanhã da pandemia lhes trará. “Há quem esteja, não contra as comemorações, mas contra o próprio 25 de Abril”, defende José Luís Ferreira. E, diz, “há muita gente ingénua nesta polémica” em que se pôs em causa a realização da cerimónia no Parlamento.
A sessão solene aconteceu, ainda que com limitações. Mas o mais estranho, num dia carregado de simbolismo e de “rotinas”, viria depois. “Saía daqui [da Assembleia da República] e ia para o desfile [na Avenida da Liberdade], já fazia parte da tradição”, conta. “Vou estranhar, sobretudo, a cantoria às 15 horas”, admitia, pouco antes da hora convocada pelos capitães de Abril para um coro nacional.
Vasco Lourenço pediu que, à hora marcada, e impedidos de participar nas celebrações tradicionais, os portugueses se juntassem à janela para cantar uma das senhas do 25 de Abril, “Grândola, Vila Morena”. José Luís Ferreira prometia não faltar.
A estreia cinzenta
É outra presença habitual no desfile da Avenida da Liberdade. Nesse percurso que desce uma das principais vias da capital e em que se assinala mais um ano do triunfo dos capitães de Abril, Joacine Katar Moreira cumpria sempre a tradição. “Embora, até recentemente, nunca tenha feito parte de um partido político, mesmo nessas épocas em que não estava filiada escolhia marchar ao lado do PCP”, revela à VISÃO.
“Herdeira” de duas revoluções – a do PAIGC, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, e a de 1974, em Portugal –, diz que se afastou da linha comunista devido à “relação muito pouco exata” do partido com o movimento anti-racista. Joacine entrou na Assembleia da República nas listas do Livre mas, três meses depois desse seu momento inaugural na atividade política, deputada e partido afastaram-se. Chega, por isso, ao 25 de Abril como deputada não inscrita e num ano em que tudo foi diferente.
Por um lado, não houve desfile; por outro, Joacine pôde viver o 46º aniversário da Revolução num lugar inédito, ocupando o seu lugar de deputada na Sala das Sessões do Parlamento. De manhã, foi uma das primeiras a entrar, ainda Ferro Rodrigues se dirigia à porta da Assembleia para receber o Presidente da República. Encontrou o lugar que lhe estava destinado, sentou-se e, na hora seguinte, ouviria cada uma das intervenções dos vários partidos. Falaram todos menos ela. É isso que a leva ao desabafo: “Pela primeira vez, celebro o 25 de Abril sem muito ânimo e alegria.”
“Isto tem grande ironia porque é a primeira vez que celebro o 25 de Abril na casa da democracia, como deputada eleita pelos portugueses”, começa por dizer. Mas depois atira. “Desde a minha eleição, até hoje, a Assembleia da República tem-me mostrado um ambiente de imensa violência simbólica.” É essa, e não outra, a sua justificação para a forma como vive a data.
“Não posso falar de tristeza pelo facto de não podermos descer a Avenida da Liberdade ou por não haver hipótese de toda a gente circular e estar com quem mais ama, porque estas medidas de restrição têm como origem a enorme preocupação nacional em proteger indivíduos e famílias”, explica. “Não é a situação ideal, mas é a única capaz de nos garantir segurança perante o combate à Covid-19”, continua. A “desilusão” vem da sua própria experiência naqueles corredores. “A desilusão é com o fim da ilusão”, diz. “Esta esquerda nacional mostrou ser tão discriminadora quanto qualquer partido de direita:”
Presidente “não foi equidistante”
No PAN, só André Silva foi “repetente” na evocação da Revolução dos Cravos. Da legislatura passada para a presente, o partido aumentou a sua representação no hemiciclo, passando de um para quatro deputados. Inês Sousa Real, a líder parlamentar, assinala como “positivas” as comemorações, mas lamenta, em declarações à VISÃO, que tenha havido “alguma confusão” na preparação dos festejos.
Para o seu partido, realça, “nunca esteve em causa” assinalar-se a efeméride, com um deputado em representação de cada grupo parlamentar. Assim, aponta o dedo ao Presitente por “ter focado o discurso nas diferenças” em torno do modelo de celebração, “colocando-se de um dos lados”. Marcelo Rebelo de Sousa foi mais jogador do que árbitro? Inês Sousa Real mede as palavras: “Não foi equidistante o suficiente, como se impunha.”
Tanto o chefe do Estado como o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, “representam todos os portugueses, não os seus partidos ou as suas próprias visões”. Por isso, a líder da bancada do PAN mostra-se dececionada com a circunstância de a crise sanitária ter feito com que os partidos “tenham perdido o foco dos discursos” – faltou falar do SNS, do clima e da nossa “casa comum”, de justiça, de igualdade e de bem-estar animal, aponta.
Excesso de “espuma dos dias”
Quanto a Cotrim de Figueiredo, outro novato nestas andanças, também não se mostrou particularmente entusiasmado com o plenário especial deste sábado. O deputado, que escreveu uma carta ao filho Miguel, que entrou na maioridade, reconhece ter ficado “triste” pelo que viu e ouviu no hemiciclo. “Não mencionei sequer o estado de emergência, porque acho que a cerimónia do 25 de Abril, apesar dos condicionalismos, deveria ter sido menos sobre a espuma dos dias”, fundamenta.
O presidente da IL lamenta que da esquerda à direita – “e até o Presidente da República” – tenham subido ao palanque para “tentar justificar a própria cerimónia”, quando a situação em que o País está imerso poderia ter sido uma “oportunidade para inovar e para chegar a mais pessoas”.
Cotrim confessa que a carta ao filho serviu também para alcançar o eleitorado mais jovem, sobretudo aqueles que, nascidos depois do 25 de Abril, dão “sentidos pífios à liberdade”. A evocação parlamentar e as comemorações fora do Palácio de S. Bento, por isso, devem “modernizar-se”. Os tempos são de “reanimação, a sério, da democracia”. Em síntese, o deputado único dos liberais apela a que nos próximos anos se mude o chip: “Foi um 25 de Abril muito virado para dentro e para o passado, quando devia ser virado para fora, para o futuro e para as novas gerações.”
Discursos “sem sal, sem entusiasmo, sem conteúdo”
Já fora do hemiciclo, André Ventura não desarmava: “A sessão não deveria ter sido realizada, mas não vale a pena insistir na polémica.” O presidente do Chega é taxativo e mantém a postura anti-sistema que evidenciou desde o primeiro momento do mandato parlamentar: “Achei os discursos de Ferro Rodrigues e da maioria dos líderes partidários sem sal, sem entusiasmo, sem grande conteúdo”, aponta.
As críticas mais mordazes são, porém, dirigidas a Marcelo Rebelo de Sousa, com o qual vai digladiar-se nas presidenciais do próximo ano. “A intervenção do Presidente teve conteúdo, mas foi divisivo: insistiu na questão da cerimónia sabendo que uma parte dos portugueses tinha e tem uma opinião diferente.”
“Gostei de estar presente, mas lamento que a Assembleia da República continue muito presa ao passado e com muita dificuldade de olhar para o futuro. Hoje falou se pouco de futuro”, sentencia. Ventura não fala em oportunidade perdida, mas quase…