Foi quase na 25ª que o Governo pôde respirar de alívio. A meio da manhã, quando já pouco tempo faltava para o arranque do longo debate sobre o Orçamento do Estado para 2020 – que é votado esta sexta-feira na generalidade -, o Bloco de Esquerda concretizou aquilo que já tinha deixado adivinhar no fim de semana: os 19 deputados bloquistas vão abster-se. Juntam-se, assim, aos 10 deputados do PCP e, ainda, aos dois deputados d’Os Verdes (que anunciariam pouco depois a sua posição) e abrem caminho para que a discussão siga para a especialidade.
Para aqui chegar, foram precisas várias semanas de reuniões, com intensas negociações entre o Governo e cada um dos partidos que na anterior legislatura formavam a chamada “Gergingonça”. No final, António Costa – que chegou a ser acusado de agir como se tivesse conseguido a maioria absoluta – teve de ceder. Partido a partido, reunimos as “garantias” e as “possibilidades” de conquistas que cada um dos partidos à esquerda e à direira (o PSD/Madeira também acaba por entrar neste jogo) conquistou.
Saúde, pensões e propinas: as cedências ao Bloco de Esquerda
A abstenção do Bloco de Esquerda na votação de sexta-feira “não encerra a negociação”. No fim de semana, Catarina Martins fez questão de dizer que a negociação com o Governo “decorreu em negociações difíceis”, desde logo porque o Executivo “deu sinais tardios para a sua abertura negocial” – uma ideia que já não era nova, até porque a coordenadora do Bloco já tinha lembrado publicamente António Costa de que o PS não tinha chegado à maioria absoluta nas eleições e estava, por isso, obrigado a negociar para viabilizar o Orçamento do Estado.
Com “questões ainda em aberto”, para aprofundar no debate da especialidade, o Bloco de Esquerda anunciou as “garantias” que recebeu do Governo – inclusive, com formulação escrita – e que abriram caminho à abstenção na votação do Orçamento na generalidade. Pontos que se desdobram em áreas como a Saúde, as pensões e o Ensino Superior e que se traduzem em medidas como:
Saúde
– O compromisso de que a verba a injetar na Saúde vai ser reforçada, e que acresce à “surpresa” dos 800 milhões que a ministra da Saúde já tinha anunciado em dezembro
– Mais 180 milhões de euros investidos em meios complementares de diagnóstico, num investimento que arranca já este ano e que se prolongará durante a legislatura
– A eliminação total das taxas moderadoras nos cuidados de saúde primárias já em 2020, quando o que estava previsto pelo Governo era uma eliminação progressiva ao longo de vários anos
– Alargamento do fim das taxas moderadoras aos meios complementares de diagnóstico, análises e exames prescritos pelos médicos de família; medida que será concretiza em duas fase e que ficará concluída até ao final do ano
– Criação de um regime de incentivos para que os médicos exerçam a sua atividade em exclusivo no setor público, e que deverá passar pela aplicação de uma modalidade facultativa e outra obrigatória, reforçada por um conjunto de incentivos que não foram, ainda especificados; a modalidade obrigatória deverá ser progressivamente aplicada aos coordenadores das Unidades de Saúde Familiar e aos diretores de Centros de Responsabilidade Integrados, sendo posteriormente alargada aos dirigentes hospitalares de ação médica
– Ainda neste setor, o Bloco avança com a garantia de que haverá um reforço da Saúde Mental, com a criação de equipas de saúde mental que vão atuar nas comunidades locais e com a possibilidade de internamento psiquiátrico nos hospitalares que ainda não possuem essa valência
– Ficou acordada a possibilidade de serem entregues medicamentos anti-psicóticos aos utentes atendidos nas consultas de especialidade nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde e nas consultas de medicina geral e familiar, além de ficar garantia a oferta de cuidados de saúde continuados e de saúde mental em todas as regiões de saúde e a requalificação da Unidade de Psiquiatria Forense do Hospital Sobral Cid, em Coimbra
Pensões
O Bloco anunciou ainda que tinha chegado a um acordo com o Governo num conjunto de medidas relacionadas com as pensões e contribuições sociais, algumas ainda em termos genéricos e outras já numa fase mais avançada das negociações.
– Recuperação das pensões mais baixas, com uma atualização extraordinária “semelhante e em linha com as realizadas anualmente na anterior legislatura”
– Alargamento do Complemento Solidário para Idosos com a eliminação da ponderação do segundo e do terceiro escalões de rendimento dos filhos na definição da componente de solidariedade familiar deste regime
Ensino Superior
Na área da Educação, foi também anunciada uma medida que começou a ser aplicada na legislatura e que não será interrompida
– Redução, em 20%, do valor das propinas nas licenciaturas, passando dos atuais 871 euros para os 697 euros
PCP: a abstenção com um aviso à mistura
Apesar de estar “hoje menos condicionado do que na anterior legislatura” – leia-se, por prever um excedente orçamental no final de 2020 –, o PCP identificou “insuficiências e limitações relevantes” na proposta de Orçamento do Estado que o ministro das Finanças apresentou na Assembleia da República a 16 de dezembro. “O Governo acentua a sua opção de submissão às imposições da União Europeia e do euro e aos interesses do grande capital”, acusa o partido. Ainda assim, os comunistas vão – pela primeira vez – abster-se na votação na generalidade.
“Não se ignora a possibilidade admitida pelo Governo de concretizar alguns passos de sentido positivo”, diz o partido para justificar o voto desta sexta-feira. Mas, ao contrário do Bloco de Esquerda, que avança medidas concretas como estando acordada e até escritas, o PCP regista apenas as “possibilidades” que identificou de “avançar com medidas” numa série de áreas que foram bandeira na campanha eleitoral, mas sem as “garantias” de que fala o Bloco, nomeadamente: aumento das pensões; gratuitidade das creches; concretização do fim das taxas moderadoras; redução dos custos da energia; aumento de prestações sociais como o abono de família ou o subsídio de desemprego; reforço do Serviço Nacional de Saúde; criação do Laboratório Nacional do Medicamento
Há pontos que os comunistas apresentam como determinantes para a negociação na especialidade, entre os quais se encontram medidas já alvo de negociação nas últimas semanas mas que ainda terão de ser aprofundadas. Para já, fica o aviso: “A apreciação definitiva sobre o que de concreto resultar de avanço na fase da especialidade, e o quadro político mais geral em que o OE será discutido determinarão o sentido da votação final global que o PCP assumirá.” Ou seja, nada garante que, apesar da abstenção de amanhã, os comunistas não votem contra a versão final do documento. Tudo dependerá da abertura que o Governo demonstrar nas próximas semanas para negociar matérias como a contratação de trabalhadores para o setor público, rever os escalões do IRS, reduzir os impostos sobre o trabalho, reduzir os custos da energia, reforçar o investimento público, reforçar uma série de prestações sociais, acabar com as portagens nas auto-estradas, reforçar o setor público de transportes, acabar com as Parcerias Publico-Privadas, reforçar o orçamento da cultura, entre outras.
Tal como o PCP, o PEV também anunciou que se vai abster nesta fase do processo. E, como os comunistas, também deixam a nota de que a posição agora assumida “em nada compromete o sentido de voto em relação à votação final global”. A palavra de ordem é negociar.
PAN: os sem-abrigo e o ambiente
Quem também já anunciou que vai abster-se na votação foi o Pessoas-Animais-Natureza (PAN). Numa conferência de imprensa na Assembleia da República, a líder parlamentar definiu, genericamente, as áreas que o partido vai, depois, privilegiar para afinar o OE. “Esperamos que na especialidade o Governo tenha o particular cuidado de acolher não só as preocupações do PAN para aquilo que são as necessidades do País como também que temos, de facto, de perceber que temos de ser mais ambiciosos quer de matéria social, quer em matéria das alterações climáticas e do combate a este desafio no século XXI”, afirmou Inês Sousa Real.
Embora não se tenha alongado, a dirigente do PAN assumiu que “alguns dos aspetos” que reivindicava já tinham sido acolhidos pelo Executivo. Entre eles incluiu o alargamento do Housing First (programa de alojamento para sem-abrigo) ao País todo, a antecipação do fecho das centrais termoelétricas de Sines e do Pego e as medidas de apoio à agricultura biológica, Ainda assim, concluiu que o documento fica “muito aquém” do que ambicionava, até porque, recorde-se, o partido já tinha apresentado 50 propostas que pretendia ver inscritas no OE – e que iam da saúde à educação, passando pelo emprego, ambiente, habitação ou proteção animal.
PSD-Madeira: o desafio a Rui Rio
Mais controversa é a abstenção dos representantes do PSD-Madeira. Os três deputados eleitos pelos sociais-democratas na região autónoma vão ajudar a viabilizar o OE – mesmo que isso lhes valha um processo disciplinar – a troco de alguns ganhos que Miguel Albuquerque há muito reclamava. “Não me importo que fique conhecido como o Orçamento da poncha”, chegou até a gracejar o presidente do Governo Regional e líder “laranja” na Madeira.
“O Orçamento do Estado pode depender do PSD-Madeira e apenas de uma coisa: é das justas reivindicações da Madeira serem satisfeitas pelo poder central. Nós temos que olhar para o Orçamento em função dos interesses da região e nós confiamos, como sempre dissemos, a nossa votação em função daquilo que são os legítimos direitos do povo madeirense”, fundamentou no jantar de Natal dos sociais-democratas, revelando pouca preocupação com eventuais braços de ferro com Rui Rio: “Em primeiro lugar está a Madeira, os madeirenses e porto-santenses. Em segundo lugar está a nossa autonomia política. Em terceiro lugar está a defesa do desenvolvimento da região e só em quarto lugar está a defesa do partido, quer no quadro nacional, quer no quadro regional.”
A principal bandeira de Albuquerque era o hospital do Funchal e está assegurada: a ministra da Saúde, Marta Temido, já anunciou a comparticipação em 50% da obra orçada em cerca de 340 milhões de euros. Igualmente bem encaminhada estará a questão dos juros do empréstimo à Madeira, que o Governo Regional tencionava indexar à taxa média que o Estado português paga aos seus credores, ideia que, a ser aprovada, significaria um alívio de sete milhões euros nos cofres da Madeira.
De olhos igualmente postos nas negociações na especialidade, Albuquerque quer ainda soluções para as ligações marítimas e aéres entre o arquipélago e o continente – falta, por exemplo, operacionalizar a medida que permite voos a 86 euros sem necessidade de adiantamento do valor dos bilhetes.