“Vocês nem sabem o que perdem das aulas do professor Marcelo!” A frase, proferida numa noite de outubro de 1985, e dirigida pelo então estudante António Costa aos seus colegas e amigos Diogo Lacerda Machado e Francisco Oliveira, faz parte de uma cena descrita ao pormenor no livro “Marcelo & Costa, a insólita sociedade que governa Portugal”, do jornalista Diogo Torres (Editora Cultura – Infinito Particular/Aceleradora de Conteúdos), e que conta muitos aspetos, alguns inéditos, de uma longa relação que une, desde os bancos da faculdade, um como professor e o outro como aluno, os atuais Presidente da República e primeiro-ministro. A admiração mútua, a lua-de-mel dos primeiros tempos de coabitação política, o arrufo a propósito do episódio Caixa Geral de Depósitos/António Domingues ou o caldo entornado, com os incêndios de 2017 – eis a história de uma parceria improvável.
Defender o indefensável
No livro, Diogo Torres conta como a encenação da coleta mínima, num dos governos de António Guterres, ideia do então líder da oposição, acabou por contar com o contributo decisivo do seu antigo aluno, então secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. Recorde-se o episódio, em poucas palavras: a inclusão de uma “coleta mínima” no orçamento de 1998 foi sugerida a Guterres por Marcelo, como condição para a aprovação do documento, no Parlamento. Tinha de haver uma medida inaceitável para o PSD, essa medida teria de ser nova e Guterres teria de a deixar cair, para dar a ideia de que o Orçamento só seria aprovado depois de uma exigência do PSD, numa matéria fundamental, ter sido aceite pelo Governo. Marcelo e Guterres inventaram, então, uma “coleta mínima”. Mas era preciso que mais alguém entrasse no plano, dando a cara, nos jornais, em defesa da medida. Quem? Marcelo lembrou-se do antigo aluno, que teria a missão de defender a coleta mínima como imprescindível – mas sabendo, de antemão, que ela nunca faria parte do orçamento. A combatividade de Costa já era, assim, reconhecida por Marcelo…
Uma conversa delirante
Dos encontros, muitas vezes ocasionais, entre Marcelo e Costa, o autor destaca uma noite, no Porto, a uma semana do desastre eleitoral autárquico que provocou, em 2001, a queda do guterrismo. Costa e o amigo Lacerda Machado tinham viajado para o Porto, para participarem numa conferência agendada para as 9 da manhã do dia seguinte, no Palácio da Bolsa. Ao chegarem, já tarde, ao Hotel Ipanema, onde estavam hospedados, ponderavam se ainda dariam um passeio ou se recolhiam aos quartos quando, na colorida descrição de Diogo Torres, “eis que entra, esvoaçando pelo Hotel, Marcelo Rebelo de Sousa”. O professor gritou “António!” e logo os intimou a sentarem-se, para dois dedos de conversa. Os dois dedos do monólogo de Marcelo prolongaram-se até às quatro da manhã e o tema principal foi o das autárquicas da semana seguinte: “Vocês vão ter uma vitória extraordinária”, disse Marcelo. “Estas eleições vão fazer com que o engenheiro Guterres tenha um final de legislatura de grande nível. Já o PSD vai sofrer uma derrota estrepitosa, de tal maneira que, por volta das 9 e meia da noite, vai haver uma reviravolta no partido”. Perante os boquiabertos circunstantes, Marcelo concluíu, numa tirada dramática de grande efeito: “Vão ver que, por essa hora, Luís Filipe Meneses vai tirar a espada e cortar a cabeça do Durão Barroso [então presidente do PSD]!”
Como se adivinha, Marcelo talvez tivesse estado a divertir-se. As perspetivas para o PS já eram sombrias e a reviravolta deu-se, isso sim, mas entre os socialistas, com a demissão, na própria noite eleitoral, de António Guterres, face a resultados eleitorais “estrepitosamente” desastrosos…
Um funeral duplamente antecipado
Depois de descrever os primeiros tempos de coabitação, o autor do livro, que também conta com textos de António Costa Pinto, Rita Figueiras, André Azevedo Alves – e Luís Marques Mendes, que escreveu o prefácio -, desenvolve pormenorizadamente os acontecimentos, na sequência da nomeação e demissão de António Domingues da Caixa. E revela como, apesar de inflexível relativamente à apresentação das declarações de rendimentos e património dos administradores, Marcelo exortou Domingues a prosseguir com a recapitalização, antes de se demitir. Se preciso fosse, apresentando uma contestação em tribunal, relativamente à entrega dos documentos, só para ganhar tempo…
Pelo meio, o livro conta outros episódios curiosos, como o da visita que Marcelo fez a Mário Soares, no próprio dia da tomada de posse como Presidente das República, a 9 de março. O novo inquilino de Belém encontrou o ex-PR em casa, muito mais debilitado do que teria imaginado. Nesse mesmo dia, Marcelo inicia o seu mandato a tratar de… um funeral! Manda chamar o embaixador António de Almeida Lima, que estava prestes a deixar o cargo no protocolo de Estado, e pede-lhe que fique mais tempo, de forma a que, com a sua experiência, ponha em andamento um programa de… cerimónias fúnebres para o moribundo Soares (que só viria a morrer, apenas, em janeiro do ano seguinte!). É que nunca a atividade protocolar se tinha deparado, antes, com a morte de um Presidente da República eleito em democracia. Ora, quando a “encomenda” chegou às suas mãos, Marcelo caíu em si: aquele bem podia ser o modelo futuro dos funerais presidenciais. Pelo que, de um certo modo, e sem o saber, ele, Marcelo, podia ter definido o modelo a seguir no seu próprio funeral…
Costa: “Eu perco sempre”
No momento em que um pujante António Costa se prepara para o último ano da legislatura, com todas as sondagens a favorecer o PS, para as legislativas de 2019, talvez seja curioso recordar a conversa, descrita no livro e mantida entre ele e Lacerda Machado, quando, na sequência do abandono de Guterres, o PS tratava da sucessão. Já nessa altura, Lacerda via Costa como o líder dos socialistas: “Acho que podes ser tu. Porque tu podes perder tranquilamente as legislativas e, ainda assim, manter o teu capital político intacto”. E Costa respondeu: “Eu percebo o que queres dizer. Mas não vou concorrer. Não vou, porque perco sempre”. Na memória, pugnas eleitorais na Associação Académica, na Câmara de Loures, na federação socialista de Lisboa: sempre à pele, e sempre derrotado. Porque haveria de ser diferente, na candidatura a secretário-geral? E reforçou: “E, como é para perder, nem sequer se vai a jogo”.
Em 2015, voltando a perder, António Costa transformou a derrota eleitoral numa vitória. Em 2019, pode contrariar o destino, como já fez na Câmara de Lisboa e nas primárias socialistas de 2014. Se for esse o caso, decerto haverá quem anote que, nisso, também pode haver a mão do velho professor da faculdade de Direito.